
• António Moniz de Palme*
Edição 824 (31/03/2022)
Carrapichana ou um modo original de matar vícios
Aguarela da autoria de António Moniz de Palme
As feiras e os mercados eram, durante a Idade Média, o local de encontro de gente que raramente se via devido às grandes distâncias entre os locais onde moravam. Assim, aproveitavam aqueles acontecimentos mercantis para se abastecerem dos produtos que não produziam, para venderem o excesso da produção que sobrava do seu consumo e para confraternizarem com amigos e parentes. Na verdade, as feiras faziam parte integrante da vida social das famílias medievais. Era nesses dias de encontro de gente vinda de longe, que se ajustava a aquisição e a venda de terras e se consertavam casamentos, bem como, claro está, os respectivos dotes. Estas as razões por que os reis viam com bons olhos estes centros de dinamização da economia, tantas vezes ainda na fase da troca directa. E para facilitar a vida das populações espalhadas pela imensidão do território do interior, eram criadas as feiras, isentando de impostos os negócios lá celebrados por bufarinheiros, recoveiros e comerciantes com loja própria, que lá se deslocavam para vender os seus produtos. Mais, o Poder Real criava uma especial vigilância nos acessos ao local das feiras, contra assaltantes e grupos de bandoleiros que costumavam aproveitar a concentração de pessoas, de bens e de dinheiro para fazerem a sua inoportuna aparição, não se coibindo de matar e estropiar os pobres feirantes e os que a feira procuravam.
Desde tempos imemoriais que as feiras sempre foram um lugar de atracção social para o homem da montanha que se deslocava não só para vender e comprar, mas para estar com familiares, amigos e conhecidos, negociando as uniões conjugais dos seus descendentes e até preparando revoluções, como aconteceu nos tempos da dominação filipina do território português. Claro que os locais onde passavam os pastores com os seus gados eram factores importantes na localização das feiras, aproveitando-se a passagem obrigatória dos pastores com os seus rebanhos, na transumância, com destino às brandas mais distantes. E nas terras da Beira iam aparecendo locais onde os vendedores e compradores de gado se encontravam, geralmente orientados por datas determinadas pelo calendário litúrgico e que a autoridade real transformava em feiras oficiais, fonte de rendimento e locais onde os visitantes das feiras eram protegidos contra as quadrilhas de malfeitores, como já referi.
A Beira, como sabemos, é um vasto planalto, rodeado de montanhas, havendo nas zonas mais elevadas fortificações, onde se refugiavam as populações ao mínimo sinal de alarme. A zona que passava por Longroiva e Marialva era o caminho preferido pelos pastores devido à proximidade da necessária protecção. O mesmo se passando, mais a Sul, com as terras de Linhares, povoação fortificada, fundada no Séc. VI a.C., pelos Túrdulos e que foi atraindo gente de fora, estando amplamente povoada mesmo antes do Séc. XII Nestes termos, a Zona de Linhares transformou-se num fatal local de passagem dos grandes rebanhos que se deslocavam em transumância, dos vales e zonas baixas para o alto das serras, no Verão, e percorriam caminho inverso no Inverno. Era tal zona predominantemente agrícola, cujos borregos eram procurados por gente vinda de longe, pois a sua carne era considerada excepcional. Na altura, como actualmente com os leitões da Bairrada, era a terra dos gostosos borregos de leite, procurados para as grandes refeições das mais diversas festividades, tanto da corte, como das casas senhoriais, como das festividades religiosas e festas excepcionais de elementos da população. Segundo consta, El Rei D.Dinis, o “Lavrador”, mandou escolher em tal zona, um terreno apropriado para instalar um mercado de gado, reunindo num único local todos os pontos das cercanias onde tradicionalmente se encontravam os negociantes de gado e onde apareciam as populações para fazer os seus negócios. Tal terreno, junto à actual Estrada da Beira, fazia parte do Concelho de Linhares, passando com a sua extinção em 1855, a pertencer ao Concelho de Celorico da Beira.
Pois bem, a Feira foi aumentando paulatinamente de frequentadores e crescendo significativamente o número de negócios, tornando-se conhecida em toda a Beira e nas restantes terras mais longínquas do Reino. E se, no seu início, eram realizadas em determinadas datas religiosas, passaram tais eventos a acontecer mensalmente, sendo actualmente quinzenais. Verificou-se então que aquele local, onde se realizava a feira era conhecido, pelos populares que a frequentavam, pelo estranho nome de Carrapichana, nome esse que não lembra a ninguém de bom senso. Na altura, acharam que haveria qualquer coisa de demoníaco no raio daquele nome. E, perante o perigo de os clientes e vendedores se assustarem com algum mau olhado ou com as manobras diabólicas do Demo, que sempre atenta a vida do pobre cristão, um senhor abade resolveu fazer um estudo profundo sobre a origem de tão estranha denominação, ainda por cima de uma terra onde abundavam lugares santos e os respectivos oragos protectores, havendo ainda por cima encantos vários da bela natureza local. Na verdade, a boa carne de borrego que se podia comprar no local não podia ser etiquetada com uma denominação que podia ter nascido das profundezas do Inferno!!! E, segundo consta e reza a lenda, o nosso bom clérigo investigador, descobriu que gente que vivia perto do local, passou a servir aos visitantes vinho a copo e febras de borrego com outros possíveis manjares que caíram no goto dos comensais, pois o improvisado restaurante, isto é, a nascente taberna, foi um sucesso. Mas havia um problema. Ao fim do dia era necessário meter ordem naquele barracão que tinha ficado com as mesas cheias de copos com restos de vinho. E a responsável por aquele improvisado restaurante, Ana de seu nome, quando levantava os copos para os submeter às límpidas águas da lavagem, metia à boca antecipadamente cada um deles e bebia gostosamente o vinho que no fundo restava !!!. Claro que no fim das limpezas e de ter metido pela goela abaixo tantos restos de vinho deixados pelas dezenas de clientes, apesar do vinho ser uma pomada de primeira qualidade, a patroa começava a ver tudo a dobrar e a ter que se recolher para curar a grande bebedeira que apanhava, naquela actuação sábia de poupança dos restos de vinho abandonados. E os amigos e desconhecidos, não compreendendo a sã política de aproveitamento, tão necessária à economia do País, não a viam como uma gestora de excelência e, em ar de troça, deviam rosnar entre dentes” Escorropicha Ana” E de Escorropicha Ana os copos dos fregueses, tal frase, de boca em boca, foi sintetizada na palavra CARRAPICHANA.
Devo informar que, actualmente, existe na Carrapichana um óptimo restaurante com carne de borrego e enchidos fantásticos da Região, com saborosos pratos, a meter num chinelo as mimosas iguarias com estrelas Michelin, que por aí vagueiam para perdição das almas dos bons apreciadores da comida portuguesa.
António Moniz Palme – 2022

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