Cemitérios e a sua imprescindível faceta social
Se nos primeiros tempos da nossa juventude, os mortos e os cemitérios nos infundiam respeito e talvez um certo medo referencial, perante o drama da passagem para o outro mundo, os mais velhos pouco caritativamente procuravam assustar os mais novos com o local onde descansavam todos os que já tinham partido desta vida. Lembro-me bem de ter aceite um desafio de imberbe, apostando de que era capaz de ir à noite dar uma volta dentro do cemitério.
Aceitei para não ficar mal, já se vê. Lá abalei meio atordoado para missão tão melindrosa, com o meu inseparável companheiro José Joaquim Murilo à ilharga, com tanto medo como eu, com o pavor estampado no seu comportamento, bem agarrado ao meu braço, para assim percorrer o caminho através das campas, de um lado ao outro, em todos sentidos do Campo Santo Sampedrense. No fundo, estávamos a tirar ridiculamente a certidão de machos. Bem procurávamos pensar naqueles que ali estavam e de quem gostávamos mais, para tentar sacudir o terror que sentia estar próximo de nos invadir pelas mangas do casaco, agravado pela estranha sugestão de que alguém invisível nos agarrava pelos cabelos. Enfim, chegámos ao fim daquela peregrinação nocturna tão pouco habitual, mas, à saída, ainda tivemos a terrível e imprevisível surpresa de encontrar o portão simplesmente fechado. Era o fim da picada para aqueles intrépidos aventureiros. Os nossos amigos mais crescidos pretendiam assustar os dois criançolas mas, bem vistas as coisas, não conseguiram, pois o Zéquinha Murilo não desatinou e eu tive a compostura aparente de um macho tonto que não fez chichi pelas pernas abaixo, por pura coincidência. Aberto o portão pelo Zeca Barros, mais maduro do que nós, e que pretendeu pôr à prova a coragem dos seus amigos, respirámos fundo e aldrabámos os ouvintes, falando no ambiente sobrenatural, de contos de fadas, que lá tínhamos sentido e que nos tinha entusiasmado de sobremaneira. O Zéquinha Murilo Couceiro, olhava para mim espantado, e nem queria acreditar no seu religioso silêncio, no que o seu companheiro de aventuras estava a romancear. Há cada um…! Que grande lata….!
Não me lembro bem quem era o resto da compita, mas, após ter instigado a memória do meu bom amigo Arlindo Carvalhas, não me devo enganar muito se referir o próprio Arlindo, o Barros Carcereiro, o Alcides Pereira, o Manel Rocha e o Grupo da Ponte, e talvez o Gui Correia de Paiva. Enfim, depois de passada a borrasca de temores, veio a bonança da gabarolice. Claro que contei aos meus Pais, ufano da minha valentia, aquela façanha nocturna. Todavia, os meus Progenitores não mostraram qualquer entusiasmo pela aventura do seu caseiro Harry Potter e apenas lamentaram que eu, pelo menos, não tivesse rezado pela Alma dos que lá estavam. Na verdade, o medo era tanto, que nem me atrevia a balbuciar uma prece ao meu Anjo da Guarda, além do silencioso e mental “Ai Jesus” dito para o interior de mim próprio, com medo que o José Joaquim adivinhasse o meu recôndito pensamento e perdesse a tramontana.
Mas, os saudáveis costumes da nossa terra acabavam sempre por canalizar o modo de pensar e de agir dos mais novos para outros caminhos bem mais profundos e apaziguadores do nosso espírito, em matéria de Cemitérios e do fim dos nossos dias. Na verdade, o sentido da vida, como passagem transitória por este Mundo de Cristo, levava-nos a encarar o passamento dos humanos com uma filosofia completamente diferente e totalmente arredia dos temores infundidos pelos filmes de terror com mortos vivos como estrelas principais, a tirar o sono dos assistentes.
Devo dizer que outrora, por estes confins da Europa, os corpos eram enterrados em monumentos funerários, muitas vezes escavados na própria pedra. Posteriormente, nas célebres antas, que ainda se podem ver por Lafões. Com a cristianização, começaram a ser sepultados dentro de monumentos funerários, evoluindo o local para os edifícios das Igrejas. Porém, em meados do Século XVIII, os mais cultos, acertadamente, atendendo à evolução da medicina e dos novos conceitos de higiene pública, assumiram que era um atentado contra a colectividade e a sua saúde, fomentar permanentemente um foco de doenças e de epidemias, enterrando os corpos dos entes queridos debaixo das lajes das criptas das Igrejas, locais onde toda a gente se reunia e respirava. Como era normal, quando a população colocou o valor saúde acima de costumes a que estavam agarrados e a própria Igreja mais culta e mais evoluída colocou o bem-estar sanitário do homem acima de tudo, durante o Liberalismo, os responsáveis políticos proibiram os enterros dentro das Igrejas. Mas não pensem que o cumprimento dessa prescrição legal foi pacífica. O escritor e médico, Júlio Dinis, no seu fascinante romance “A Morgadinha dos Canaviais”, foca exactamente a perturbação causada no espírito da população menos culta, por essa alteração radical de um ancestral costume. Os corpos teriam que ser sepultados, não dentro das Igrejas, mas num campo especial, para não empestarem o ambiente dos lugares de culto com os miasmas das doenças contagiosas e das pandemias, como agora se diz.
E para testemunhar com mais cor e movimento os episódios vividos nessa altura, basta recordar a Revolução da Maria da Fonte, movimento popular ocorrido em 19 de Março de 1846, na Freguesia de Póvoa de Lanhoso, em Fonte de Arcada, quando o pobre Pároco tentou cumprir a lei da proibição de enterramentos dentro da Igreja e se viu impedido, pelo seu rebanho de paroquianos, de fazer o enterramento num local já anteriormente escolhido para o efeito. Os populares começaram a tocar os sinos a rebate e vieram para a rua de escopetas e empunhando agressivamente as alfaias agrícolas. Tal movimentação teve o apoio das populações vizinhas, amotinadas pela gritaria do mulherio local, e nomeadamente pela demagogia das palavras de ordem da célebre Maria da Fonte. Comportamento nada progressista e que a história tentou retocar, referindo os políticos da oposição que aquela insurreição generalizada tinha por finalidade exigir a demissão dos Cabrais e afastar a sua decisão de aumentar os impostos. Os Cabrais eram o Primeiro Ministro Costa Cabral e o seu irmão José Cabral, ministro da Justiça, que apesar de todos os erros que lhes possam ser assacados, formaram um governo competente, eficiente e activo.
Enfim, a costumeira lavagem da história, pois tal argumentação partidária não teve qualquer fundamento em tão exuberante e bizarro levantamento popular. Foi então feito um lindíssimo hino alusivo a este evento, já com a cara lavada do atroz reaccionarismo que o motivou, com música do maestro Ângelo Frondoni, adoptado pelo Partido Progressista da altura e, no nosso tempo, pelo PPM, após a revolução de Abril. Embora em louvor a uma pura mistificação, ficou o hino na nossa memória colectiva.
Eu me confesso. Gosto franca e sinceramente de o ouvir e de o cantar a plenos pulmões. Sinto-me mais português. ”Viva a Maria da Fonte/ Com as pistolas na mão, /para matar os Cabrais que são falsos à Nação. É avante Portugueses/ É avante sem temer/ Pela Santa Liberdade/ Triunfar ou perecer/ Triunfar ou perecer”. Claro que para mim os Cabrais são uma alegoria dos responsáveis políticos que se governam e enriquecem à custa do erário público, dum país pobre como Job, como é o nosso.
• António Moniz Palme 2014
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Redação Gazeta da Beira
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