A. Moniz de Palme (Ed. 677)

A lenda e o espólio da campanha – 3ªParte.

Perguntar-me-ão agora. E o que aconteceu à sua família com a saída do General Sir Brent Spencer e do seu Quartel General da casa da Quinta da Póvoa? Aliás, devo referir que uma das propriedades da Família, Vale do Corvo, já tinha servido de abrigo estratégico e apoio logístico à resistência, no tempo das Primeiras Invasões chefiadas por Junot. Na verdade, o parente João de Miranda, conhecido por “O Alferes”, das Quintas do Vale do Corvo e da Póvoa, organizou um grupo de resistentes que, sempre que podia, atacava as tropas francesas. Após os primeiros recontros, começou a ser perseguido, sem quartel, pelas tropas napoleónicas e acabou por cair numa emboscada, onde pereceu assim como os que o acompanhavam. Ele era conhecido pelo “Alferes”, mas não quer dizer que esse epítome correspondesse a uma patente da hierarquia militar. Na verdade, antigamente “Alferes” era o porta-estandarte das milícias locais. Por consequência, João Miranda levava a bandeira nos desfiles das milícias ou nas cargas militares com a participação daquele agrupamento local militarizado. Além do mais, exibia orgulhosamente uma bizarra espada com um punho e uns copos (guarda) antigos, do séc. XVI, enxertados com uma lâmina do séc. XIX. Por mais que procurassem o seu corpo para lhe dar uma sepultura condigna, os restos mortais de João Miranda nunca foram encontrados e desapareceram misteriosamente da face da terra. Naturalmente, o seu corpo foi feito desaparecer pelas chefias francesas para que o local onde fosse enterrado não se transformasse num centro de romagem e de rebelião permanente contra o poder napoleónico. Muito mais tarde, nuns trabalhos agrícolas em que foi necessária a remoção de enorme quantidade de pedras, nas faldas da Serra do Socorro, apareceu a inimitável espada do valente “Alferes”, ficando-se então a conhecer o local exacto onde tinha tombado esse heroico português.

Mas, voltemos à Terceira Invasão. Na realidade, após a saída dos ingleses daquelas paragens, perdurou para sempre uma firme e franca amizade entre os meus Parentes da altura e o General inglês e os membros do seu quartel general. Talvez devido a essa amizade e à forma como foram tratados, deixaram ficar nas instalações que usaram muitos artefactos militares privados e Sir Spencer até as esporas e peças das fardas abandonou bem como armas do seu uso pessoal. Os meus parentes nem sequer tocaram no bonito quarto onde Spencer pernoitava, com paredes pintadas, continuando até à data a cama pronta para o receber, rodeada dos objectos que lá ficaram, incluindo umas botas dos meus antepassados, na altura emprestadas ao cabo de guerra, com todos os objectos alinhados em cima das cómodas.

Uma Tia minha, Maria Sofia Barreiros Cardoso de Araújo de Barros e Vasconcellos, que ainda tive a felicidade de conhecer e que faleceu próximo de celebrar o seu centenário, procurou preservar cuidadosamente todos os objectos abandonados pelas casas e pelo espaço daquela exploração agrícola, para memória futura. Os seus descendentes têm as mesmas cautelas e preocupações. Em entrevistas com historiadores dos países então beligerantes, e com o responsável da Revista Itinerante, o seu descendente Eng Gonçalo de Barros e Vasconcellos Guisado fez uma circunstanciada descrição do dia a dia dos ingleses naquela propriedade da família, relatando pormenorizadamente o acervo histórico lá existente, bem como na já referida propriedade vizinha da Quinta do Vale do Corvo.   Muitos apaixonados por factos históricos, relacionados com as campanhas napoleónicas, procuram a família, sabendo serem representantes de portugueses que participaram activamente nos acontecimentos verificados naquela região, visitando os lugares onde os ingleses estiveram aquartelados, onde se verificaram recontros militares, percorrendo emocionados as paragens das Linhas de Torres e as suas redondezas, deslumbrados pela beleza da paisagem e, por vezes, ainda com a sorte de, no meio dos montes, toparem cápsulas de balas e outros indícios da passagem dos exércitos e do seu armamento. Igualmente, procuram todas as histórias e até lendas que sobre os acontecimentos passaram de boca em boca, de geração em geração e que todos ainda recordam.

A propósito, toda a população conhece uma saborosa passagem ocorrida no local, durante Terceira Invasão, própria de um verdadeiro filme de aventuras:-

Conta-se que um oficial francês, um brigadeiro dos Hussardos de Conflans, Etienne Gerard de seu nome, era dado às escapadelas do seu acampamento por puro espírito de aventura e, muito naturalmente, “pour chercher la femme” como bom latino que se prezava ser. Numa dessas saídas clandestinas, fora da segurança das suas instalações militares, teve o azar de cair nos braços de uma patrulha inglesa, perto do Convento de Santo António da Cadriceira. Mataram-lhe o cavalo e o nosso francês teve que desarvorar rapidamente a pé daquela zona, para não ser apanhado. Mas, não era de modo algum homem para ficar atrapalhado com este tipo de ninharias. Esgueirou-se como uma enguia por onde podia, talvez ajudado por uma das recentes conquistas femininas, moradora nas cercanias, e torneou as forças inglesas, fugindo por montes e vales, em pleno território inimigo, na esperança de encontrar um destacamento francês que andasse pelas redondezas. Nestas manobras, bem escondido, viu passar um enorme grupo de cavaleiros ingleses que trotava em perseguição de uma raposa que anteriormente o Brigadeiro Gerard tinha visto passar de rabo alçado a toda a velocidade. Isto é, deparou sem mais com uma caça à raposa, transferida dos campos britânicos para as várzeas e montes portugueses. Ora, passados poucos metros mais adiante, topou um grupo de militares abivacados junto à Quinta da Póvoa, onde estava instalado, como já referi, o General Spencer. Junto deles estava um cavalo que esperava o seu dono, naturalmente o próprio Spencer, pois a montada era de grande porte e categoria. Imediatamente, Gerard, de um salto acrobático, montou o excelente alazão e partiu à desfilada, safando-se do fogo que imediatamente sobre ele foi desferido. Mas, o extraordinário desta história, é que o francês foi na peugada do grupo de caçadores ingleses da caça á raposa, ultrapassou os numerosos cavaleiros, no seu potente corcel, e foi apanhar mais adiante a inocente rapozinha fugitiva que nada tinha a ver com aquele conflito e com uma saibrada certeira degolou o pobre animal. Um autêntico desmancha prazeres este francês e uma torpe vingança pelas derrotas sofridas pelas tropas do seu imperador. E tiveram os ingleses razão para ficar indignados, pois, para qualquer britânico que se prese, respeitador das regras cinegéticas, tal acto era inconcebível e inaceitável, caindo muito mal nos bem pensantes da altura, diga-se de passagem. Constituiu uma autêntica heresia, digna da mais severa punição. Ora bem, esta história rocambolesca e muitas outras continuam a animar as conversas de lareira daquelas redondezas. E de tal modo essas lendas tiveram impacto no mundo cultural da época, que Sir Arthur Conan Doyle não se eximiu da terrível atracção desses relatos passados de pais para filhos, contando a história aventurosa do hussard francês, Brigadeiro Gerad, no seu conto “The Crime of the Briagadier”.

António Moniz Palme – 2014

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Redação Gazeta da Beira