A atracção de África e o espírito lafonense
• António Moniz de Palme
A Gente de Lafões e, aliás, de toda a Beira, sempre foi atraída pelo chamamento irrecusável do Continente Africano. Tal pecha ficou-nos dos descobrimentos, quando encostados à intransponível fronteira com Castela, para dar azo ao espírito aventureiro dos nossos genes, tínhamos forçosamente que desbravar as ondas dos oceanos à procura de um futuro economicamente estável ou atrás das quimeras que habitavam os nossos sonhos.
Conjuntamente com o espírito evangelizador da Ínclita Geração, as Escolas de Navegação do Infante D. Pedro e do Infante D. Henrique iniciaram a formação dos seus alunos, uma espécie de pajens ou, como então de dizia, de criados dos Reais Infantes. E essa nova e peculiar indústria técnica de ensino iria facilitar a concretização do desejo de partir para o desconhecido em busca de mundos novos. Tal desejo de aventura era uma autêntica doença a fervilhar dentro de cada um, uma espécie de tara colectiva do Povo Português, ainda por cima incentivada pelo espírito de missão que nascia no íntimo dos jovens portugueses com as bênçãos da Igreja que os via despertar para a comunidade.
Na verdade, a população da nossa terra não gostava de estiolar nas margens dos seus românticos rios, a esgotar-se no deleite e encantamento das paradisíacas paisagens lafonenses. O bichinho da aventura era superior à saudade da família e da terra onde viram a luz e se fizeram homens. A atracção era mesmo irresistível. E na primeira oportunidade, aí vai o bom portuguesinho pelo mundo fora. Esta é a marca e a quadratura do espírito lusitano. O grande filósofo e professor universitário, o beirão Eduardo Soveral, numa magistral lição dada nas terras brasileiras, chamou a tal espírito a eterna tentativa portuguesa da criação de um segundo lar e de uma duplicação da própria família nos locais onde aportava. E ia acrescentando que apesar do seu espírito de aventura inovador, era profundamente conservador, procurando transportar e instalar na nova terra os seus costumes religiosos e sociais, plantando uma vinha, mesmo estéril, para servir de latada sob a qual pudesse tomar as suas refeições, instituindo os seus próprios costumes, apesar de rodeado de gente de outras raças e até de díspares sentimentos religiosos. Era a integração natural à moda portuguesa. Por outro lado, longe das origens, bem depressa esquecia o calor dos braços do seu cônjuge e acabava por constituir uma segunda família, naturalmente com uma parceira não europeia, dando origem a uma prole educada da mesma forma do que a deixada na terra. Eis o cenário que se vem constituindo desde tempos imemoriais com a imigração para as terras dos outros continentes.
Pois bem, esta introdução serve para evocar uma personalidade lafonense, muito especial que representava perfeitamente o espírito português colonizador de antanho. Falo do Sr. José Mendes (1883-1966), nascido em S. Feliz, pai da Sr ªD. Margaridinha Mendes Barros, como carinhosamente todos a tratam, e irmão da Mãe do nosso ilustre conterrâneo Sr. João Mendes, residente no Brasil. Aqui estão os dados necessários para que todos possam identificar a personalidade em questão, bem como as suas respectivas relações sociais.
O Sr. José Mendes começou a sua vida profissional, nos Sebastiões, como era geralmente conhecida aquela importante casa comercial, instalada debaixo do antigo clube. Um dos Sebastiões era tio do Sr. Dr. Alcides Pereira, sampedrense ilustre. Posteriormente, casou com uma Senhora, de nome Ricardina Correia.
Mal atingiu a maioridade, farto da monotonia dos dias sempre iguais, tomou a resolução decidida de abalar para Angola, embarcando numa das carreiras marítimas portuguesas de África. Porém, mal acostado a S. Tomé, farto de estar enclausurado dentro de um navio, logo ali ouviu a voz das sereias africanas, como os homens de Vasco da Gama na Ilha dos Amores, e aceitou um emprego na Ilha do Príncipe. Foi trabalhar para a Roça Paciência, grande produtora de cacau, empresa essa propriedade do médico, Sr. Dr. Andrade Cupertino, casado com uma Senhora de nacionalidade húngara, casal este que veio por diversas vezes passar as férias a S. Pedro do Sul, em homenagem ao Sr. José Mendes, pois este gestor dos seus bens, tal êxito teve, que em pouco tempo transformou aquela Roça num potentado agrícola significativo, equipado com todas as infra-estruturas necessárias, do mais actualizado que na altura havia. Claro que muitas outras roças pediram o apoio técnico do Sr. José Mendes como conselheiro e até como gestor, acabando o nosso Sampedrense, à custa do seu trabalho, da sua iniciativa e da sua lucidez, por transformar completamente a fisionomia daquele território. Será de salientar que entre essas roças por si administradas estava a maior da Ilha do Príncipe, “Sundy”, cuja parte habitacional era considerada a residência oficial da Família Real, na Ilha do Príncipe. Os resultados da sua gestão guindaram-no aos píncaros, fazendo-o entrar na história de S. Tomé e Príncipe pela porta grande do Arquipélago. Numa visita do General Carmona, então Presidente da República, foi José Mendes condecorado por aquele alto magistrado da nação com a Medalha de Mérito Agrícola.
Por curiosidade, revelo que quem o ficou a representar em S. Pedro do Sul, foi um dos sócios dos “Sebastiões”, o Sr. Sebastião Pereira Sobrinho, um dos seus antigos patrões, que tinha dele procuração para a compra e venda de bens imobiliários.
Em 1935, o meu Pai visitou o Arquipélago e, em S. Tomé, teve uma calorosa recepção de lafonenses lá radicados, no meio dos quais estava o Sr. José Mendes que o esperava num esplêndido e luxuoso automóvel, constatando o meu Pai ser o seu amigo e conterrâneo uma das pessoas mais importantes e populares da terra e bem quisto por gente de todas as raças e estratos sociais. O meu amigo General Pires Veloso, que esteve em S. Tomé após o 25 de Abril, na descolonização daquele território, quando lhe falei no Sr. José Mendes, referiu-me constituir um verdadeiro símbolo local, tendo ainda ouvido falar nesse português, como um Sampedrense com espírito africano e cuja memória todos respeitavam e recordavam com saudade. Igualmente, o Sr. Dr. Daniel Nunes, personalidade marcante de S. Tomé lhe fez um enorme elogio, referindo quanto as populações do Arquipélago lhe deviam.
Porém, a determinada altura da sua vida, o Sr. José Mendes viu-se sozinho, pois o seu conjuge regressou ao continente e não mais voltou, por motivos de saúde. Aí começa a funcionar o espírito de integração lusitano, incentivado pela paisagem e calor equatoriais e alimentado pela sedução africana e pelo seu extraordinário poder de adaptação. Eu explico qual a razão desta estranha afirmação. Sozinho no Príncipe, lá conheceu uma senhora, uma mulher com uma beleza fora de vulgar e que faria parar o trânsito, se muito trânsito houvesse no Arquipélago. A bela Júlia, assim se chamava, estava igualmente sozinha, pois o seu conjuge, o médico e veterinário Dr. Bruto da Costa, resolveu regressar a Lisboa para acompanhar um dos filhos e nunca regressou. Tinha ido para o Príncipe para se ocupar da investigação da doença do sono, procedendo a estudos e experiências locais com a mosca tsé-tsé, pois esta é transmissora de tal doença, tanto ao homem como aos outros animais, quando está infectada pelo tripanossoma.
Devo esclarecer, para nosso legítimo orgulho, que os portugueses erradicaram tal doença dos seus territórios coloniais, situação que, infelizmente, agora não acontece !!!
Mas, voltando ao drama do cônjuge do investigador Bruto da Costa, abandonada e a necessitar de ganhar a vida. Na verdade, foi fácil arranjar um lugar na casa do Sr. José Mendes, como governanta dos respectivos serviços domésticos. Contudo, tal relação profissional bem cedo se transformou numa relação amorosa, cujos frutos resultaram na Srª D. Margarida Mendes Barros e num outro filho, o Sr. Dr. António Mendes, que frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, com elevadas notas. São meios irmãos dos descendentes do Dr. Bruto da Costa que viviam em Lisboa e que quando eram vivos, iam visitar a Irmã, Srª D. Margarida Barros, a S. Pedro do Sul.
Ora, o Sr. José Mendes voltou definitivamente a S. Pedro do Sul, para acabar os seus dias na sua Terra Natal. Mas, muito antes do seu regresso definitivo, tinha deixado os seus filhos em S. Pedro, tendo mandado ambos os descendentes estudar para Colégios em Lamego, respectivamente de freiras e do padre Vicente. Refiro-me à simpática Srª D. Margarida Mendes Barros, pessoa com qualidades de bondade e de comunicação excepcionais, que casou com o Sr. Francisco Barros, bem como o seu filho António que faleceu precocemente.
Todavia, a imagem de José Mendes e o seu espírito de cabouqueiro da história da civilização colonial portuguesa constituem um marco de que todos nós nos devemos orgulhar. É um verdadeiro símbolo da diáspora portuguesa de tantos lafonenses, para uma terra onde poucos resistiam viver e trabalhar, devido à humidade doentia e às maleitas tropicais que infestavam aquela bonitas ilhas africanas.
Talvez seja tempo de a Colectividade recordar e a Autarquia homenagear esse grande lafonense., ainda em vida da Sua Filha, a grande Senhora Margarida Mendes Barros.
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Redação Gazeta da Beira
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