4. As Morcelas e demais Enchidos e a nossa Beira

Apresentam-se os Enchidos Portugueses, os melhores do Mundo e Arredores, pois então

Ed647-Porco_EnchidosVou apresentar cada um deles em particular, para que todos fiquem com a sapiência necessária que permita esclarecer os estrangeiros que nos visitam ou os indivíduos daquela espécie de estrangeirados que abundam pelo Sul. Na verdade, é essencial ter uma nocção mesmo vaga, da forma como é confeccionada cada uma dessas maravilhas gastronómicas portuguesas.

Começarei pela Rainha dos Enchidos, a Morcela. Esta é feita tendo como base os ingredientes da simples chouriça de carne, acompanhados de fatias de pão de trigo, cobertas de cebola, salsa, bem picadinha, alhos, colorau, malagueta e os imprescindíveis cominhos. Tudo envolvido no caldo de cozer a suã e de gordura derretida. Deita-se, nesta mistura, o sangue por vezes ainda quente do animal abatido, e em seguida, após tudo compactado, enchem-se as tripas, atam-se as mesmas devidamente e são enfiadas num pau colocado sobre um caldeirão com água a ferver, sendo deste modo cozidas no vapor.

Posteriormente, as Morcelas são secas e passam pelo fumeiro onde descansam algum tempo.

As Morcelas da Anita do Talho de Gonçalo eram uma delícia, as de Mangualde, vendidas no talho da Praça Principal, as de um vendedora com estabelecimento num aglomerado habitacional para os lados do Fontêlo, em Viseu, eram cantadas pelos apreciadores, as de Celorico, aliás as de toda a Beira Interior, são geralmente uns primores de bem feitas e uma delícia. Mas, claro está, as melhores ainda eram as feitas nas nossas casas, e são as que ficam na recordação nostálgica de todos os que tiveram a felicidade de as provar. Com essa boa recordação, lembro as minhas Queridas Piga, Maria, Madalena, Maria dos Anjos, Micas, Carmen e outras operacionais de mãos fadadas para esta sublime arte, e que se ocupavam do melindroso ministério dos enchidos, chefiadas pela minha Tia Zé.

A seguir vêm as Alheiras, que têm para nós um enorme e significativo valor histórico, pois os judeus faziam tais enchidos apenas com farinha, carne de caça, de galinha e de vaca, embebidos num caldo da cozedura das carnes e dependuravam os enchidos assim confeccionados no fumeiro. Os esbirros do Tribunal da Inquisição, quando viam o fumeiro da casa enfeitado de chouriças ou coisa similar, concluíam logo, “Estes Cristãos Novos não são relapsos, não voltaram às práticas da judiaria, pois até comem carne de porco…”

Hoje em dia, são raras as alheiras puras, isto é, que não têm unto de porco ou mesmo carne de porco para lhes dar um sabor mais forte. Quando tal acontece, na generalidade dos casos, chamam-se a esse tipo de alheiras “Vilões”.

Muito parecidas com as alheiras, são as Farinheiras ou Farinheiros. Não levam farinha e sim e apenas pão de trigo às fatias, embebido num caldo quente da cozedura de carnes e ossos, cuja base é a cebola alourada em azeite. As carnes são cobertas com esta mistura. O pão utilizado na sua elaboração não pode ter muito fermento, para não haver o perigo de azedar.

Os pouco entendidos no assunto, confundem muitas vezes as Farinheiras com as Alheiras. Não é pecado nenhum, pois cada uma no seu género, são uma delícia de comer e chorar por mais. Nada de materialismos…! Mas na realidade, são bem diferentes estas irmãs que à primeira vista parecem gémeas.

Por último, falo num enchido que é menos vulgar na Região de Lafões, segundo penso. Estou a referir-me ao Bucho, feito com o estômago do Porco. Era sempre o último enchido a ser feito nas nossas casas, pois nele são aproveitados todos os restos, bocados de carne para as chouriças que não chegaram a ser utilizados, pequenos nacos de carniça agarrados aos ossos da cabeça, da suã, das costelas, do rabo. Muitas vezes era também aproveitada a bexiga para esta finalidade, bem como o estômago das cabras e dos carneiros.

Tanto podiam ter bocados de osso como não, tal opção difere de região para região da Beira. O material da confecção é temperado com sal, alho, colorau, picante quanto baste, vinho e malaguetas para alegrar a mistela. Muitas vezes a carne, à moda de Arganil, é misturada com ovos. Vai tudo ao forno em lume brando. Em minha casa e do meu amigo Vasco Lencastre, os buchos eram enrolados num pano branco e metidos na água, pois se o invólucro se rompesse na fervura da água, ficava todo o material dentro do pano que envolvia o bucho.

Em determinadas localidades da Beira, quando não havia carne que chegasse, compunha-se o recheio com arroz e, por essa razão tinham o nome diferente de Maranhos.

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