A. Moniz de Palme (Ed. 682)

Tentação de Desertar, maleita que começou a contaminar muito boa gente

Tentação de Desertar, maleita que começou a contaminar muito boa gente

Ed682_desersaoEste mundo surpreende-nos sempre com novas pragas e novas doenças. Algumas delas não são do físico e saem da alçada do nosso médico de família, pois têm origem na cachimónia e, por consequência, são bem mais difíceis de tratar. Não sou médico, não pratico a medicina clandestina, nem sequer me atrevo a ser um autodidacta ou simples curioso da ciência de Hipócrates, o grego da Antiguidade Clássica, pai da Medicina. Mas, ultimamente comecei a assustar-me com alguns sintomas que se têm manifestado no meu bestunto. Quando me vejo bem ao espelho, continuo a encontrar do outro lado alguém parecido comigo, mas que principio a não reconhecer perante as minhas próprias reacções. Com isto, fico bastante assustado, lá isso fico.

Eu explico aos meus amigos qual o diagnóstico que fiz a mim próprio e quais os assustadores sintomas da nova praga que me aflige.

Por mais defeitos que lhe apontem, na minha modesta opinião, a Democracia é um regime político em que há, pelo menos, aparentemente liberdade de expressão, liberdade de associação, além de termos na mão o direito ao voto, arma essencial para manifestar a nossa opinião concordante ou discordante.

Ora, nesse regime, apesar de tudo, por mais corruptos que sejam governantes, deputados, autarcas, administradores das empresas públicas, não nos tiram a liberdade de debitar as nossas críticas aos responsáveis, mesmo violentas, traduzidas até no arremesso de ovos podres, como fazem os fleumáticos britânicos, ou na nossa contestação pública verbal e escrita e na nossa troça ou até na nossa ostensiva indiferença.      Pois bem, em Democracia estas manifestações são toleradas mesmo que a imprensa e a comunicação social estejam domesticadas pelas forças invisíveis que marcam as cartas no dia a dia da política. Isto é, aconteça o que acontecer, continuamos livres e a poder lutar na primeira linha contra a corrupção, a incompetência de quem nos governa, a inabilidade do nosso armamento legal que deixa em liberdade os que são condenados pelas roubalheiras e desvios do património que é de todos nós, ou que denotam sinais de riqueza exterior cuja proveniência não está minimamente justificada pela sua actividade profissional ou pela riqueza pessoal.

Contudo, também sei bem que o desalento criado pela incompetência, pelas demoras do poder judicial no exercício das suas funções, pela continuação das situações escandalosas da contratação de assistentes acabados de formar com cursos tirados num vão de escada e elevadas remunerações, tiram-nos do sério e roubam-nos a coragem de continuar a participar no mundo da política, como é nosso dever. Na verdade, beber um copo com os amigos, ter uma conversa de lareira com a família ou ver um bom espectáculo é bem mais aliciante do que protestar, protestar, protestar e tudo continuar na mesma. E sem darmos por isso, o processo de desânimo vai progressivamente crescendo e acabamos por nos render à realidade, desertando vergonhosamente. No fundo, tomamos a mesma atitude dos que, num conflito armado, fogem da linha de combate, ou fazem vista grossa, na via pública, quando topam com um grupo de meliantes a assaltar e a espancar pessoas mais fracas e indefesas. É exactamente a mesma coisa. Estou a levantar tal problema, para eu próprio não ter mais a tentação de fugir e não pensar nos problemas que tornam infeliz a nossa gente. A deserção, na realidade, é uma terrível cobardia, principalmente nas ocasiões de grave crise.

E não me venham com exemplos dos nossos maiores. Desertor foi o grande Alexandre Herculano que deu um péssimo exemplo aos seus concidadãos quando se refugiou numa propriedade em Vale de Lobos, tornando-se lavrador e divorciando-se da política e dos dramas sociais que afectavam os portugueses. E até recebeu um prémio internacional com o azeite que começou a produzir!!!. Mas, apesar do seu êxito como gestor agrícola, apesar da sua História de Portugal, apesar da Voz do Profeta, apesar da Harpa do Crente e de toda a sua obra, andou muito mal e não pode deixar de se considerar um desertor, abandonando os seus contemporâneos ao Deus dará, apesar do seu espírito superior, que o tornava ainda mais responsável

. Entre um Desertor e um “Décio”, figura histórica e mítica romana, grande patriota e capaz dos maiores sacrifícios pela pátria, oferecendo-se em holocausto aos deuses, há uma grande distância. Devo esclarecer que sou admirador incondicional de Herculano como historiador e escritor, mas não com a deserção da vida política onde estava metido. Garrett assim não fez, aguentando até ao fim da vida a defesa dos interesses da comunidade.

Na realidade, na pouca-vergonha em que nos obrigam a viver é muito mais fácil alhearmo-nos de tudo e raciocinar, “os outros que resolvam os problemas”…! Aceito que em muitos casos é difícil não ser um desertor. Mas tal não pode acontecer. Temos que reagir contra o nosso comodismo. Mesmo que continuar a participar na vida política seja um acto heróico, “malgré tout”, como diria o outro…!

Resta-me clamar :- Não sejam desertores para bem de todos nós. Temos que continuar a ir votar, não interessa em quem, ou se o voto é branco ou nulo, não interessa, mas temos que continuar a comparecer nas votações, a participar em assembleias profissionais e autárquicas custe o que custar e temos que nos actualizar para tentar enfrentar as situações que vão sendo criadas e com as quais não concordamos.

António Moniz Palme – 2015

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Redação Gazeta da Beira