A. Moniz de Palme (Ed. 680)

António Rebordão Navarro, o poeta e escritor dos tristemente abandonados dentro de si mesmo, e dos marginalizados pela sociedade

Ed680_AntonioRNavarroDeus levou à Sua presença o grande escritor contemporâneo, António Augusto Rebordão e Cunha Navarro. A cultura nortenha ficou desolada com a sua deserção do nosso convívio.

Como seu amigo e admirador, não posso deixar de sobre Ele escrever algumas linhas. Era um Homem do Norte, nascido na Foz do Douro. Seu pai, o escritor Augusto Navarro despertou o filho para o mundo da Cultura e das Letras, fazendo a sua personalidade partilhar e vibrar com os dramas da colectividade piscatória onde vivia. A sua alma de poeta foi desabrochando com os problemas do próximo, bem como da própria sociedade como um todo, afinando o tanger da lira para expressar as lágrimas de quem, no silêncio da sua Alma, vivia só e desamparado. Na verdade, partilhava com os seus versos as dores do seu semelhante.

Conhecia o António Rebordão Navarro desde Coimbra, onde se formou em Direito como voluntário. Na Lusa Atenas, poucos e esporádicos contactos tive com este estudante de torna viagem, que aparecia à sombra da Velha Universidade para assistir a algumas aulas e para comparecer aos actos. Porém, mal comecei a minha vida profissional no Porto, as nossas relações de amizade aprofundaram-se. Era parente do meu igualmente amigo Vasco Graça Moura e o meu gosto pela boa conversa e pela cultura aproximou-nos mais. Era um Homem de esquerda, acreditando numa chefia de estado não republicana pois, segundo Ele, essa apenas representava os partidos que a apoiavam e não tratava com igualdade todos os cidadãos, o que na sua perspectiva defraudava o conceito de igualdade e de liberdade. Com uma formação de esqueda, não deixava de vibrar com o povo a que pertencia, com as suas qualidades e até com os seus defeitos, com os costumes da sua terra, nomeadamente, com as tradições da sua querida Foz. Como homem culto e pertencente a uma elite bem formada, amava e admirava a sua gente, considerando-se com orgulho um autêntico “fozeiro”. Enfim, era um tradicionalista, sofrendo com as desigualdades sociais e principalmente pelos que sentia abandonados à sua sorte, ao terror dos seus desencontros espirituais e à decepção do seu isolamento quer material quer moral. Era um profundo humanista, com laivos de franciscanismo.

Estas as razões por que admirava profundamente aquele meu amigo monárquico-comunista, como com Ele, com amizade, gracejava.

Começou a exercer a advocacia, após uma rápida passagem pelo Ministério Público. Tinha escritório, no Porto, desde sempre, com um amigo comum, António Taborda, e fazia advocacia preferencialmente nos tribunais de trabalho. Mas as suas preocupações essenciais não eram de modo algum as criadas pelo foro, mas sim as provocadas pelos dramas do seu vizinho, da sua terra, da sua região, a desertificação do interior, a incultura e o isolamento intelectual da maioria da população. Essas eram as inquietações que o atormentavam. Além do mais, abominava a hipocrisia, o egoísmo social da comunidade e o atrevimento do novo-rico que se considerava o centro do mundo e que usava umas palas para não ver e partilhar os dramas que se passavam à sua volta. Sublimava então as suas frustrações na escrita. Com esse objectivo, tentou continuar a gestão da Revista Bandarra que fora de seu Pai, e, mais tarde, iniciou os cadernos “As Notícias do Bloqueio”….

Mas, apesar da sua luta permanente no mundo da cultura e da arte, reservava sempre ocasião para estar com os amigos e se divertir. Recordo as reuniões em casa do seu primo Vasco Graça Moura, as conversas e as divertidas refeições por tudo o que era local, pretexto permanente para a troca animada de ideias. E as idas a reuniões dançantes eram muito do seu agrado. Lembro bem as divertidas festas no Colégio Alemão, onde o António e a adorável Virgínia se gastavam até às tantas com os amigos, exibindo o escritor os seus dotes de dançarino e de amigo do convívio social.

Todavia, e o que é facto é que se entregou de alma e coração às letras. As suas obras começaram a surgir paulatinamente e a colectividade culta nacional logo o considerou um dos seus melhores escritores. A “Romagem a Creta”, datada de 1964, e principalmente, em 1970, a sua poderosa obra “Um Infinito Silêncio” levou-o com facilidade à qualidade de escritor imprescindível para quem pretendia conhecer minimamente o mundo intelectual português. Lembro-me perfeitamente da ocasião em que entusiasmado cheguei à última página dessa obra. Na verdade, quando a adquiri, talvez tivesse pensado que era mais um livro de um amigo. Mas a situação era bem diferente, pois quando lhe peguei, não mais parei de o ler, apaixonado pelo seu conteúdo e pela mensagem intensa para os leitores, que se desprendia das suas páginas. Recordo bem estar numa varanda da Foz, a apanhar o sol retemperador da tarde, quando passou o meu amigo António com o seu clássico e elegante blazer, a caminho da Rua Senhora da Luz. Desci aos berros pelas escadas abaixo, gritando a plenos pulmões que Ele era um escritor a sério e exigindo que me fizesse uma dedicatória no livro que tanto me encantou e que acabou por merecer o Prémio Camilo Castelo Branco. Fiquei feliz pelo seu grande êxito literário e por ter encontrado o rumo certo no modo de expor a sua prosa. Em 1972, publicou o”Discurso da Desordem” que igualmente teve um enorme êxito. E as suas publicações seguintes foram a confirmação retumbante do seu sucesso literário. Outras obras foram naturalmente sendo dadas à estampa. O escritor António Rebordão Navarro encontrou-se definitivamente consigo próprio, equilibrado pela sua simpática Mulher, continuando a escrever e a conviver, participando das reuniões sociais com os seus amigos, apesar das dificuldades físicas que sempre o afligiam, após o estúpido atropelamento de que Ele e a Maria Virgínia foram vítimas. Foi uma altura frutuosa da sua faceta literária, O “Parque dos Lagartos”, romance publicado em 1982, após a sua forçada estadia na recuperação em Alcoitão, foi a confirmação clara das suas qualidades de escritor. Mas outras obras se seguiram, “A Mesopotâmia”, obra galardoada com o prémio internacional Miguel Torga, “A Praça de Liége” romance datado de 1988 e a “Parábola do Passeio Alegre”, obras que criaram uma certa celeuma, pois eram uma crítica social local, provocando algum descontentamento nos possíveis visados. Felizmente, o António Rebordão Navarro não era homem para ter medos intelectuais, assumindo as críticas objectivamente feitas à sociedade que o rodeava, quer fossem ou não do desagrado de alguém. Pelo contrário, e em consequência do seu comportamento vertical, as suas obras transformaram-no num dos mais lidos escritores portugueses.

Porém, o fim do Século XX marcou profundamente António Rebordão Navarro, pois perdeu a sua doce Virgínia, que o idolatrava e lhe dava a força moral para ultrapassar os problemas físicos e continuar a escrever regularmente. Depois desse rude golpe, não mais foi o mesmo, apesar de ser sempre apoiado pelos seus amigos. Mas, vencendo a sua tristeza, continuou a escrever. Os últimos livros tiveram um grande sucesso, “A Cama do Gato”, em 2010, e “As Ruas Presas às Rodas”, em 2011. Várias homenagens lhe foram feitas e para o desempenho de vários cargos foi chamado, passando a fazer parte da Direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores.

Como lenitivo para a falta da Sua Virgínia, obrigou-se com coragem a continuar a conviver e a estar presente e participar nas reuniões culturais para onde era convidado. Nos seus últimos aniversários, passou a reunir os amigos que durante todo o ano com Ele privavam e o convidavam, procurando quebrar a tristeza da sua viuvez. Recordo o dia em que festejou os seus 80 anos, e que reuniu à sua volta os amigos para um agradável jantar onde Ele e o poeta Albano Martins recitaram versos ao desafio, para deleite dos presentes, e onde sentiu bem o carinho, a admiração e o calor da franca amizade dos seus amigos.

Tive a honra de ter um prefácio da sua autoria no meu último livro “Revisitação”, prefácio esse de uma enorme beleza e valor poético. Todavia, a sua saúde não Lhe permitiu, para meu e seu desgosto, assistir ao seu lançamento, em meados de Dezembro do ano transacto.

António Rebordão Navarro foi um grande escritor que partiu sem nos pedir autorização e nos deixou mais pobres, bem como mais pobre ficou o panorama literário português.

António Moniz Palme – 2015

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Redação Gazeta da Beira