António Moniz de Palme

Crónicas

• António Moniz de Palme*

Edição 857 (12/10/2023)

 

Desapareceu uma das figuras carismáticas mais interessantes e notáveis de S. Pedro do Sul. Sem qualquer dúvida, estou a referir-me à centenária Srª D. Margaridinha Barros, viúva do Sr. Francisco Barros e filha do Sr. José Mendes, o mítico e ilustre Sampedrense que se notabilizou como administrador de empresas em S. Tomé e Príncipe, tendo sido condecorado pelos mais altos responsáveis do País. Há muito pouco tempo festejou esta Ilustre Senhora o seu 107º Aniversário.

E tal não declaro motivado pela sua bondade, pela sua solidariedade com os mais desprotegidos ou, simplesmente, pelos que se encontravam em circunstâncias difíceis ou, por qualquer razão, na sua vida, em situação de infelicidade. Era uma autêntica amazona franciscana, pronta a apagar o fogo do infortúnio, tanto em conhecidos como em não conhecidos, acudindo a todos, fosse qual fosse a sua categoria social ou a dificuldade pelo problema em que estivesse metido. Não digo tal por mera razão de lisonja ou por ser seu amigo de coração, e dos seus Filhos, desde que me conheço. Na verdade, para mim era uma pessoa que eu amava como se fosse do meu sangue. Igualmente, o que me faz vir a terreiro não é a sua extrema popularidade. Quem se não lembra, num dos dias do seu aniversário, a dançar, na praça pública, com o Sr. Victor Figueiredo, Presidente da Câmara, com o desassombro que só uma mulher de categoria extrema assumiria.

Porém, recordando a minha querida Amiga, sou obrigado a pensar o que a sua personalidade representa para mim, no fundo, as mulheres da Lusitânea/Portugal, que desde séculos mostraram uma autonomia e personalidade independente, que contribuiu para a génese e  formação do meu País. Na verdade, era uma figura paradigmática, actriz do primeiro plano do cenário da nossa própria história, desde os primórdios, o que me faz recordar as teorias  do historiador Paulo Merêa sobre a constituição da comunidade portuguesa e sua respectiva independência desde a Era Neolítica, isto é, desde o início da civilização lusitana dos Castros. Enquanto os homens guerreavam, as mulheres geriam a agricultura, apascentavam os gados, administravam os Conventos e se o companheiro faltava, assumiam a chefia militar do clã familiar.Através dos tempos, os habitantes da Península virada ao Atlântico, eram gente com valores, que  constituía um grupo religioso e cultural firme, pronto para assimilar quem os invadisse e  lutar pela sua liberdade e autonomia. E quando foram invadidos por poderosos exércitos, caso dos Suevos, dos Romanos, dos Visigodos e dos Árabes, passado o terrível tempo das razias e das contra razias, eram os invasores integrados, com naturalidade, nas comunidades indígenas, participando dos seus costumes, formando uma colectividade um pouco diferente mas que, no essencial, se mantinha a mesma. Isto é, a Comunidade Lusitana com identidade própria, sempre existiu, desde sempre, até à criação da sua organização administrativa colectiva, até à criação do próprio Estado. E nesse processo teve a mulher um papel preponderante. Não foi a organização estadual administrativa que criou o País, foi sim a já existente comunidade, com os seus valores, virtudes e defeitos que a desencadearam. Tanto a gente do interior como a do litoral reagiam da mesma maneira. A Costa Atlântica criou um espaço cultural que se espraiou para o interior através de rios e das vertentes das montanhas que, do lado do Oceano, tinham declives suaves, até às áreas da costa marítima. No fundo, a atracção do mar estava tanto nos habitantes do litoral como do Interior. Espontaneamente, a população, devido à sua vocação marítima, assimilava os que apareciam da lonjura do horizonte desconhecido, tomavam-lhes os costumes, mas não perdiam a sua própria personalidade, a sua identidade colectiva que, séculos passados, constituiu uma verdadeira e duradoura nação. E todos os que tocavam as praias integravam-se facilmente, sendo lentamente transformado o nosso Povo, de uma forma diferente dos outros, sempre fechados em si mesmos. A comunidade lusitana, pelo contrário, era unida na diversidade, como aliás aconteceu com a génese da população brasileira. E digo tal porque a comunidade portuguesa sempre teve homens e mulheres que arrastavam os outros para a globalização mundial, para a integração de todos dentro do seu lar e da sua terra. E a Srª D. Margaridinha Barros, é uma figura excepcional que encarna perfeitamente o espírito universalista português. É o exemplo da Mulher que deu exemplo aos Homens, através dos séculos, da nossa existência, em matéria de Liberdade, de Democracia, de Solidariedade, condições especiais para um País, mesmo pobre, poder sobreviver. O seu espírito planetário, atrevo-me a dizer, é um exemplo da vontade da mulher portuguesa, que tem por objectivo a melhoria e a evolução da sociedade dentro das fronteiras da verdadeira Liberdade e de um integral Espírito Universalista.

Muitas Saudades vou ter da querida Margaridinha Barros. Aos Seus Filhos, resta-me manifestar o meu profundo pesar, o mesmo fazendo à Colectividade Sampedrense como um todo, que perdeu um dos seus melhores filhos.


Edição 856 (28/09/2023)

“Recamier”, um móvel estilo Império, propriedade de uma Imperatriz francesa, mulher de Napoleão Bonapart, móvel esse que foi dar com os costados a S. Pedro do Sul

Em todo o santo território deste País, à beira mar plantado, a sua população pode não ter dinheiro para o dia a dia, mas perde a cabeça perante a possibilidade de adquirir uma recordação que lembre para sempre uma etapa qualquer da sua vida. Todos recordamos a aquisição de um objecto que se deu a um amigo ou a uma pessoa de família da nossa estima, e que pretendemos tenha em mãos um penhor da nossa amizade. E em cada casa aparecem os objectos mais estapafúrdios, que se possa imaginar, a recordar qualquer acontecimento que para cada um marcou a sua vida. Pois bem, em casa dos meus Avós, em S. Pedro do Sul, conhecida pela Casa Palme, onde vivi grande parte da minha juventude, também havia recordações de todo o tipo e de todas as categorias, desde a púcara trazida, como recordação da feira de Barcelos, até artefactos com algum simbolismo histórico.

Nesta conformidade, os meus familiares que, por diversas vezes, através dos tempos, andaram metidos nas marés e contramarés da História, naturalmente possuem testemunhos móveis representativos dessas curvas e contracurvas da vida. Lembro uns bonitos arreios mandados fazer pelos meus avós para o cavalo que a Rainha Dona Amélia iria montar nas suas estadias em S. Pedro do Sul. Igualmente recordo, um prosaico bacio, nome que os lisboetas dão aos penicos, objectos obrigatórios que equipavam as mesinhas de cabeceira dos quartos de dormir de cada um até ao aparecimento dos quartos de banho, unidades raras no princípio do século passado. Enfim, volto a referir, concretamente, um penico de Louça da Índia, agora propriedade do meu Irmão Zé Moniz, que foi utilizado no quarto de dormir da Rainha D. Amélia, durante a sua estadia na nossa Terra, e que o engraçado locutor Fernando Pessa, grande amigo dos meus Pais e da Minha Família, quando se deslocava a S. Pedro e pernoitava na Casa Palme, dizia que queria no quarto o artefacto que foi usado pela saudosa Rainha D. Amélia. E como tal Lhe fosse negado, dizia aos mais novos da Família que o penico ainda não tinha sido despejado, desde a sua utilização real, e que o conteúdo era uma recordação que a Família guardava secretamente, no silêncio dos deuses, o que divertia a criançada, perante uma certa irritação de alguns mais velhos, nomeadamente do pessoal doméstico.

Mas, a recordação mais significativa da casa dos meus Avós, é uma “Recamier”, estilo Império, uma espécie de triclínio greco-romano, apenas com um corpo, com uma das extremidades mais alta e ondulada, para os utilizadores se reclinarem. Os Gregos e os Romanos nelas se inclinavam para tomarem as suas refeições e conviver, recostados nessa espécie de canapé. Mais tarde, na Europa, as elites de cada país começaram a copiar as modas e costumes romanos e até criaram um Estilo Império, imitando os móveis de antanho! Mas vamos ao que interessa. Em S. Pedro do Sul, havia uma “Recamier”, isto é um divã reclinado, estilo Império, e que era objecto da curiosidade e do interesse dos mais novos, que nunca tinham visto nada igual. O meu querido Pai, com a maior das naturalidades, perante a insistência das nossas perguntas, esclareceu os mais novos, explicando que aquele móvel era uma recordação, trazida de Paris, pelo nosso antepassado José Maria da Fonseca Moniz (Barão de Palme). Claro que não mais deixámos o meu Pai em paz enquanto não esclareceu as nossas naturais e pertinentes dúvidas. Foi na altura que tivemos claro e profundo contacto com um dos nossos antepassados que figurava num quadro a óleo, e que olhava para nós com um ar penetrante, de quem sairia da tela para nos meter na ordem, caso saíssemos da linha. Sendo assim, farei uma pequena descrição desse meu antepassado até à chegada a Paris, onde adquiriu tão estranha e pesada recordação.

Nasceu, em 7 de Julho de 1793, na Torre de Moncorvo, na casa de sua Mãe, Ana Maria Madureira Torres Ferreira de Castro, casada com o advogado Francisco Nunes da Fonseca Moniz, seu Pai. Esse meu antepassado começou a sua carreira militar muito novo, integrado, em 1811, no Batalhão de Caçadores 10, que marchou contra os franceses, aquando das invasões napoleónicas. O General António Azeredo, autor do excelente livro “Aqui não passaram”, informou-me que José Maria Moniz, futuro Barão de Palme, muito novo ainda, antes de se fazer enquadrar no exército regular, acompanhava um grupo de civis na luta de guerrilha contra os franceses. Um desses guerrilheiros, era um parente seu, Padre Moniz, conhecido pela sua fantástica pontaria na caça aos lobos, e que aproveitava esse dote para ajudar na luta contra os invasores franceses. Nessas andanças, talvez com cerca de 17 anos, referindo as palavras do General António Azeredo, passava as linhas inimigas de um lado para o outro, para levar mensagens aos diversos grupos dispersos que combatiam os franceses, chefiados por Soult. Ora, após a terceira invasão francesa, Chefiada por Massena, as suas tropas, após completamente derrotadas no território português, foram perseguidas incessantemente até Paris, onde os elementos do exército luso-britânico permaneceram durante as longas conversações de paz. Durante essa perseguição feita aos franceses, através do território espanhol e, por fim, do próprio território francês, José Maria Moniz entrou nos combates de Vitória e de Toulouse, combates onde se cobriu de glória, atendendo aos louvores recebidos. Encurraladas as tropas francesas no seu País, começaram as intermináveis conversações, correspondentes ao fim da glória napoleónica. O meu antepassado, que devia ser bem melhor com a espada do que nas longas conversações, estando em Paris, teve todo o tempo que lhe apeteceu para conhecer a Cidade das Luzes e a oportunidade de comprar um “souvenir”, para trazer à família. Descobriu, um bonito canapé, uma “recamier”, estilo Império, que fazia parte do mobiliário da casa parisiense da Imperatriz Josefina de Beauharnais, que se encontrava à venda, assim como todo o recheio dos aposentos ocupados pela Imperatriz. E assim, fomos esclarecidos da proveniência de recordação tão significativa, de cuja origem ninguém falava….! No fundo, a excessiva modéstia, como convém à gente da Província


Edição 855 (14/09/2023)

Um burro aos trambolhões, fruto da concorrência selvagem de dois vendedores de broa (2ª Parte)

Ora bem, como se lembram, no meio de uma chuvada, ainda por cima acompanhada de uma tremenda trovoada, tinha caído um burro em determinada freguesia, sem a necessária autorização do Regedor, para que fosse feita tal aterragem. Ainda por cima, morreu e nada pôde revelar sobre tão esquisito acontecimento. Já aqui, na Gazeta, publiquei dois artigos sobre balões que, cheios de ar quente, mais leve que o ar normal, sobem aos céus, nomeadamente manobrados por artistas dedicados à descoberta do futuro transporte de passageiros pelo ar e que, entretanto, para ganhar o pão de cada dia, procuram fazer exibições públicas, para ganhar algum…

Nesses tempos longínquos, a investigação científica, como infelizmente nos nossos dias, não era paga, pois não fazia parte dos objectivos governamentais.

Reportando-nos ao assunto do artigo anterior, não é que, na altura do acontecido, apareceu no Porto um especialista em balões, francês de origem e que pretendia fazer umas exibições públicas com subidas num balão, com o intuito de atrair muitos espectadores e ganhar uma mão cheia de reais.

Devo dizer que a mania da subida em balão perdurou pelos tempos. No tempo dos nossos Avós, houve um grupo de aventureiros que resolveu subir num balão e dar uma passeata pelo Rio Douro acima. Eram eles os cidadãos portuenses Belchior da Fonseca, conhecido farmacêutico e dono do Balão, denominado Lusitano, César Marques dos Santos e José António de Almeida. E, na realidade, no dia 21 de Novembro de 1903, zarparam do Palácio de Cristal, atravessando o Rio Douro em direcção a Vila Nova de Gais e prosseguindo para os lados de Espinho. Contudo, foram empurrados para o alto mar, desaparecendo nas águas tumultuosas do Atlântico, como é sempre o bravio mar do Norte. Nunca mais deram notícias das suas pessoas e as pesquisas feitas no oceano, pela Marinha, não deram qualquer resultado. Um antepassado e avô do meu amigo, Eng. Adelino Campante, Manuel António Esteves Campante, embora estivesse para fazer parte da tripulação do balão, acabou por não embarcar. Foi a sua sorte, salvando-se a sua simpática pessoa, bem como a sua posterior descendência.

Mas voltemos ao século anterior. Como já tive ocasião de referir, apareceu na província um balonista, Mr. Émile Castelet, acompanhado por uma loiraça platinada, espampanante, e que aproveitava o desconhecimento quase absoluto das populações, sobre a matéria, para se exibir no seu balão de ar quente, subindo nele com a sua “partner” e ganhar assim a sua vida. Fez vários espectáculos de aeronáutica balonista, de colaboração com a sua amiga, que se dizia uma grande actriz, vinda dos teatros de Paris. Mas como os rendimentos começaram a diminuir, para atrair mais público, o proprietário do balão prometeu fazer transportar na respectiva barquinha  um simpático burro que não devia saber nada de navegação aérea, nem de orientação no espaço sideral. E lá foi embarcado o inocente animal, naturalmente a contragosto e com o terrível receio de enjoar. Mas o imprevisto aconteceu. Quando o balão já vogava pelo espaço celeste, o céu limpo ficou pejado de nuvens e, de um momento para o outro, estalou uma tempestade, com rajadas de vento forte que empurrou o balão e os seus tripulantes, onde se inclui a pobre e inocente azémola, para um território bem longe do local de embarque. Naturalmente, aterrado com os relâmpagos e trovões, e como ninguém ouvia o seu zurro de pavor, teve a triste ideia de saltar do balão em andamento ou de o mesmo ter adornado e atirado o pobre passageiro pela borda fora. Claro que com o céu de chumbo que estava, encoberto por escuras nuvens, e com a chuva copiosa que caia, ninguém avistou o balão que passava certamente descontrolado pelos céus da Freguesia, que acabou bombardeada com o triste herói desta história, um burro voador.

Contudo, acabou por se conhecerem mais pormenores desta história de balão. Na verdade, o francês confessou que como o balão estivesse a perder altura, começou a deitar fora os sacos de areia que faziam o necessário lastro, mas como essa perda de peso não se mostrava ainda suficiente, e o tempo piorava de minuto a minuto, resolveu cortar a corda que segurava o seu colega asinino, companheiro forçado daquela aventura. E assim se explica o estranho fenómeno que alvoroçou toda uma população e deu motivo ao despedimento do pobre Regedor. Enfim, pobre fim de um simpático burro que ninguém homenageou no seu natural enterro em campa rasa. Devo dizer, para minha penitência, que não consegui descortinar se o cumpridor Regedor das regras burocráticas, aplicáveis na altura, tinha ou não sido novamente chamado para ocupar as suas funções, como era de inteira justiça.


Edição 854 (27/07/2023)

Chove p´ra burro

Expressão corrente que significa que chove demasiado. Coitados dos burros que não têm qualquer interferência no Boletim Meteorológico de qualquer região, a não ser nos territórios da pura fantasia das historias aos quadradinhos ou então no mau olhado e nos  feitiços mais ou menos sofisticados da bruxaria.  Mas, não se pense que são apenas os portugueses a utilizar os pobres animais para qualificar uma chuva diluviana. “It rains cats and dogs (chove gatos e cães)”, exclamam os fleumáticos ingleses, à laia de protesto, perante uma tromba de água fora do normal, que os molhou até aos ossos.

Mas, vamos ao que interessa. Num pequena terra da província, não direi o nome para não causar melindres regionais, cuja broa local era gabada em todas as feiras onde se vendia, dois fortes proprietários de avultados milheirais, tiveram o mesmo pensamento:- abrir um comércio junto das respectivas propriedades, para venderem  directamente a sua produção de milho, transformada em apreciadas broas, que tanto encantavam a população dos arredores. Esse milho, anteriormente era vendido a terceiros por ambos os produtores. Claro que imediatamente as duas novas padarias entraram em violento confronto, despoletando uma concorrência feroz, com o levantamento de atoardas acerca da confecção e do material usado em cada uma das produtoras dessas preciosidades que, apesar de serem duas unidades de venda, esgotavam toda a produção.

E as intrigas eram de tal modo graves, que ambos os padeiros foram chamados a capítulo pelo Sr. Abade, a quem se lamentaram da concorrência do vizinho broeiro. Prontamente, após ter ouvido os dois interesseiros paroquianos, deu lhes uma valente reprimenda, acusando-os de forretice e de egoísmo, que só pensavam nos lucros pessoais, determinando que, como bons cristãos, deviam era abastecer com pão de milho a “Sopa dos Pobres” e o Lar da terra onde eram acolhidos os mais necessitados. Contrariados, os dois cumpriram à letra aquela espécie de penitência, mais que não fosse, com medo da má-língua e de com isso perderem clientela. Todavia, não engoliram facilmente uma solução que deixava tudo na mesma e não beliscava em nada o maldito concorrente. Naturalmente, deviam andar enfronhados a ler literatura sobre as vantagens dos monopólios económicos e os malefícios da concorrência e do mercado livre. São vidas! Só pode ser…Contudo, apesar das campanhas feitas, cada um tinha ficado na mesma. Resolveram então pôr os pés a caminho, procurando soluções mais radicais E assim, um deles foi aconselhar-se com uma senhora de virtudes, direi mais claramente, uma bruxa, com “consultório” aberto para os lados de Matosinhos e o outro concorrente, foi ainda mais longe, procurando uma especialista de “espinhelas caídas” e “soluções eficazes para amores não correspondidos, lá para os arrabaldes de Viseu. Tudo no segredo dos deuses, ninguém ficando a saber destas excursões na procura do sobrenatural e quais as mezinhas e os resultados prometidos. Lá que ambos foram esfolados no preço da consulta, de tal não tenho a mínima dúvida! Enfim, passado uns tempos, desabou na região uma chuva intensa, talvez para tentar serenar os ânimos dos rivais, mas tal não aconteceu, pois aguentaram uma tromba de água violenta, que entrou nos armazéns de um dos concorrentes e, para cúmulo e espanto de muitos, caiu um burro, sem pedir autorização, que se saiba, às portas do outro parceiro…Um mistério diabólico que ninguém sabia explicar, a não ser pelas artes mais sofisticada da feitiçaria…Todos tinham uma certa razão nas estranhas conclusões tiradas, pois, nem todos os dias chovem burros em cima dos clientes mesmo pouco inteligentes…Assim, perante o pasmo geral, o presidente da Junta de Freguesia, sem ter feito anteriormente uma averiguação profunda ao acontecido, muito solícito e de reacções prontas no cumprimento burocrático do serviço, enviou um urgente telegrama ao superior hierárquico, o seu Administrador do Concelho, referindo a situação ocorrida, solicitando a atenção de Sua Excelência e pedindo ajuda urgente e necessária para caso tão intrigante. Vou tentar reproduzir o texto recebido:

“Excelentíssimo Senhor

Para os devidos efeitos, venho participar a V.Exª. que acabou de cair um burro, vindo do céu, durante a última grande chuvada, ocorrida localmente. O infeliz animal caiu já sem fala e não dando os mínimos sinais de vida. Providenciei para que ninguém lhe tocasse até que Vossa Excelência me mande instruções sobre o destino a dar ao corpo deste asno caído das nuvens, visto tratar-se de um caso não previsto no Código Administrativo em vigor. Peço a Vossa Excelência a máxima urgência na resposta, pois podem vir a cair mais burros das alturas celestes e haver o perigo de alguma imprevisível inundação de alimárias que interrompa a circulação na freguesia.

De V. Exª, respeitosamente,

O Regedor, fulano de tal.”

Claro que, entretanto, os dois comerciantes de produtos de milho faziam acusações recíprocas sobre o autor do arremesso de um burro caído do sete estrelo.

Igualmente, a ilustre figura do Administrador do Concelho, sem a necessária indagação, interpretou o conteúdo daquele ofício como um desacato à sua pomposa personalidade e perante situação tão estranha, concluiu que o Regedor estava a caçoar da sua importante pessoa, limitando-se a perguntar a um contínuo se sabia se aquele membro da freguesia estava ou não bom da caixa dos pirolitos. Perante a ignorância do funcionário sobre a saúde mental do autor do ofício, o Administrador do Concelho tomou a decisão de demitir o Regedor, justificando a sua atitude com a falta de respeito, cometida pelo regedor em questão, em relação à sua veneranda figura. Pobre regedor, teve o azar de lhe cair um burro na sua área de jurisdição!!!

Como tive que fazer averiguações sobre tão estranho caso, acabei por chegar a uma conclusão, que soluciona esta misteriosa caída do espaço de um burro, sem mais para quê e sem ter pedido autorização para tal. Para criar o necessário “suspense”, prometo que num futuro próximo, relatarei as conclusões a que cheguei….



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