A. Moniz de Palme (Ed. 659)

Dia Um de Novembro, Dia de Todos os Santos e o Culto dos Mortos - 2ª Parte

Ed659_cemiterio02O dia 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, era até há bem pouco tempo feriado nacional. O dia 2 de Novembro está determinado liturgicamente ser o dia de evocação dos mortos. Ora, todos os portugueses sem excepção, aproveitavam o dia feriado de Todos os Santos, dia primeiro de Novembro, em que não trabalhavam, para ir aos cemitérios da sua terra natal visitar os seus entes queridos já falecidos. No futuro, não sei como será, pois tal feriado foi eliminado do calendário oficial sem se ter tido em conta que era aquela a ocasião para a ida aos cemitérios em todo o país. No ano passado, como deixou de haver feriado nesses dia, a nossa imbecil burocracia não se adaptou às novas circunstâncias e não mandou abrir os portões dos cemitérios até mais tarde, apesar de não ser feriado, como tive a ocasião de ver em alguns locais. Mas isso são outras estórias, estórias tristes que revelam a incompetência de quem decide e a falta de sensibilidade e respeito dos responsáveis políticos pelos valores do Povo que tão mal governam. Ou será que o valor Culto dos Mortos é mal visto pelas seitas secretas que lhes dão ordens?. É bem capaz…!

Ora bem, em S. Pedro do Sul e nas outras terras de Lafões, o Sr Abade rezava uma Missa pelos falecidos, em que eram evocados os entes queridos que já tinham partido fisicamente deste mundo. Havia sempre alguém a quem tinha recentemente falecido um dos avós, um dos pais, um irmão, um filho, um parente querido ou um simples amigo de peito e por esse motivo estava ainda bem vivo e sentido a quente o desgosto sofrido. Assim, quando o Sr, Cónego Isidro dos Santos Faria, grande orador e com um poder de comunicação notável, na cerimónia em S. Pedro do Sul, evocava, na generalidade, os que tinham partido e ia fazendo alusões que nos faziam recordar pessoas em concreto, as suas qualidades, bem como a profunda dor que nos tinha ficado. Ouvia-se então o soluçar sentido por todos os cantos da Igreja Matriz, desde o altar principal até ao coro.

Mal acabava a celebração, todos iam em procissão ao Cemitério, acompanhar o Santíssimo. A Filarmónica Harmonia tocava com a solenidade devida a Marcha Fúnebre, avançando no seu ritmo compassado e marcial, acompanhada por toda a assistência, fungando e lacrimejando, ainda não recomposta daqueles momentos de intimidade com a imagem dos seus mortos queridos. Ainda por cima, estavam a fazer o mesmo percurso que anteriormente tinham feito para acompanhar o funeral dos seus parentes e amigos.

A procissão chegava ao Cemitério, percorrendo o mesmo de fio a pavio, com a cruz à frente, abençoando o Reverendo Pároco a torto e a direito e pedindo pelas Almas dos ali jazentes. Os acompanhantes iam ficando ao pé das campas e dos jazigos dos seus, implorando a Deus pela sua salvação e que os livrasse das penas do Inferno e do Purgatório. Os suspiros de nojo e os ais da saudade, pelos que ali estavam, redobravam significativamente. Como ainda hoje acontece, as campas são, com antecedência, extremosamente arranjadas para aquela cerimónia, sendo colocadas velas, luminárias, crucifixos e arranjos florais artisticamente preparados.

Após as orações muitas vezes colectivas, em frente de cada campa, tinha início a debandada e então, ó espanto dos espantos para os mais pequenos…!

Como por encanto, a solenidade rígida que se respirou até então, desaparecia do local. Apesar de ser muito pequeno, só me lembrava da pompa e circunstância que eu via nas gravuras do Enterro em Ornans, de Coubert, e na reprodução do quadro do Enterro do Conde de Orgaz de El Greco. Como seria possível que se quebrasse aquele ambiente solene, misterioso e pesado que pensava dever prevalecer no espaço de uma necrópole colectiva e a quem todos devem respeito…! Assim pensava na minha modesta sapiência…Na verdade, não havia ninguém que, na passagem pelos amigos e conhecidos, não parasse para efusivamente cumprimentar, abraçar, beijar os que poucos minutos antes estavam lavados em lágrimas e a morrer de tristeza. Para mim era um espanto. Perante os encontros de pessoas que se não viam muitas vezes há um ano ou mais, os semblantes modificavam-se radicalmente e apesar de ainda acompanhados por uma ou outra assoadela para mudar a catadura física de cada um, os risos e o ar jovial voltavam a fazer a sua aparição, no mesmíssimo cenário. Na verdade, um espanto, um autêntico desatino…!

Lá vinham as apresentações dos filhos, dos amigos e da parentela. As conversas mundanas acompanhavam aqueles encontros e até graças se contavam. Uma pouca vergonha, pensava eu com os meus botões, ainda amarfanhado pelo pungente pedir a Deus pelos meus queridos que ali repousavam eternamente.

Mas não tinha razão. Todos se sentiam bem e confortados, naquela triste peregrinação, pelo encontro com amigos e parentes que fatalmente lá encontravam.

Os meus Pais explicavam que todos tinham que continuar a viver com os desgostos sofridos e que Deus certamente pediria contas a quem não reagisse e não continuasse a lutar para ser feliz enquanto andasse por este Mundo. Tenho a impressão de que percebi o recado e que todos os anos, faça sol ou faça chuva, eu e os meus Irmão, bem como todos os Sampedrenses, lá vamos recordar e orar pelos nossos e participar naquela imprescindível reunião social.

Deus é grande, grande é a sua obra e o seu poder infinito. A magnificência da sua criação muitas vezes não pode ser compreendida pelas nossas limitações, como dizia o cientista austríaco Johan Kepler. Eu estava perante uma realidade inultrapassável:- A limitação da minha inteligência não tinha percebido uma das importantes finalidades das idas ao Cemitério.

• António Moniz de Palme

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