As Morcelas e demais Enchidos e a nossa Beira
Todos sabemos que os géneros alimentícios vão tendo implicações com os princípios religiosos de cada um. Basta verificar que os judeus e os árabes não comem carne de porco e os primeiros não tocam em peixe sem espinhas, como é o caso das enguias, do polvo, das lulas etc…Por outro lado, na própria religião da maioria dos portugueses, durante determinada época do ano, comer carne tem certas limitações.
Por isso, quando cada um não cumpre os ditames estabelecidos, desrespeita a praxe convencionada, nas suas normas de conduta religiosas, estando sujeitos às consequentes sanções pelo pecado cometido, podendo provocar ainda escândalo nos seus vizinhos e amigos, não ficando certamente bem visto, já se vê!!!.
Na Beira, os confusos nestas matérias sujeitam-se a que lhes atirem às ventas o antigo e engraçado aforismo regional:- “Ainda agora aqui chegou o Filho do Estraga Tudo, Come Carne na Quoresma e Bacalhau no Entrudo”.Na verdade, somente até terminar o Entrudo se podia meter à vontade dente na vianda, nomeadamente na carne de porco. Em contrapartida, durante toda a Quaresma, deviam ser feitos alguns dias de jejum, amenizados por um caldinho, uns vegetais e um pouco de salada, além de uma côdea de pão para distrair. E, como é óbvio, fazer a inevitável abstinência, pelo menos às Sextas.
Devido a essa exigência de mudança de menu, conformada com a quadra religiosa, ficou célebre a passagem do poema romântico “D. Branca”, de Almeida Garrett, que relata o que aconteceu a uma princesa cristã e ao seu séquito, após pedirem pernoita num convento, no último dia de Carnaval. Foram obrigados, pelas circunstâncias, a assistir perto da meia-noite à estranha cerimónia da “Tremenda”, na qual os noviços e monges de fresca data eram sujeitos a um terrível transe preventivo que sustasse o desejo de comer carne, principalmente um bom bife, e a tentação de cometer o pecado da gula.
Cada um tinha que tragar uma quantidade determinada de toucinho fresco. Claro que à décima garfada, os seus estômagos não aguentavam aquela violenta provação e acabavam por “devolver”, como dizem os castelhanos, aquela substância porcina gelatinosa, que comida com parcimónia até é uma delícia. Então, eram coagidos, à força, a engolir o que o corpo não tinha aceite, isto é, o que tinham vomitado e ainda o que faltava para completar a ração prescrita pela hierarquia. A frágil princesa teve logo um desmaio perante aquele espectáculo brutal, com os pobres freis aos vómitos, todos lambuzados de cima a baixo e a meterem-lhes à força, pela goela abaixo, colheradas enormes de toicinho fresco. Mas, como consequência daquele excesso gastronómico, os atormentados pela “Tremenda”, só de sentirem o cheiro de qualquer tipo de carne, ficavam cheios de náuseas e fugiam do local a sete pés. Era o modo de aguentarem mais facilmente os jejuns e a abstinência, desde o princípio da Quaresma até à Ressurreição, isto é, até à libertação gastronómica das festividades da Páscoa.
Qual a razão desta conversa, perguntarão os meus queridos leitores?.Na verdade, em relação ao Cristianismo, tirando este pequeno intervalo religioso, o porquinho faz parte integrante do cardápio de qualquer família portuguesa da Província, nomeadamente da Beira. Além de amigo energético nos frios de Inverno, fornece à gente da nossa terra alimento que baste para todas as Estações. Com mais ou menos gordura, uma rodela de chouriça é sempre uma boa companhia no caldo verde e no farnel de qualquer beirão.
E fazendo justiça à raça porcina que sempre nos acompanhou, tanto nos bons como nos maus momentos, desde os povos primitivos da Península nossos antepassados, Francisco de Lacerda, Presidente do Conselho de Administração dos CTT, mandou que um dos livros publicados pela Secção de Filatelia dos Correios, sob a orientação de Fátima Moura, atirasse definitivamente com os suínos e a sua fantástica carne para o escaparate da cultura gastronómica. Parabéns pela feliz iniciativa
E a minha geração ainda recorda bem a convivência carinhosa com os porquinhos domésticos, bem guardados na pocilga, à espera das lavagens, onde, engrossadas com farelo, convergiam abóboras cortadas aos bocados, couves, nabos, castanhas, grão e todos os restos de comida, incluindo as cascas de fruta, de batatas, sei lá tudo o que os pudesse engordar. E os animais, desde que nasciam até à hora do abate tinham, bem como os bacorinhos seus descendentes, o tratamento desvelado das donas de casa. Na verdade, estava ali a despensa viva da família.
Por essa razão, além da boa alimentação do animal, o posterior processo da conservação das carnes era essencial, sendo a sua técnica e a sua arte discutidas por todos os elementos da família e transmitidas de geração em geração.
A Salga, a Fumagem e a Conservação pelo Frio aproveitando-se a parte mais fresca das adegas ou das caves de cada um, eram garantia do abastecimento alimentar em boas condições, ao longo de todo o ano.
Além, do mais, o material porcino, após a matança e a desmancha do animal, era a única fonte de rendimento de quem vivia da agricultura de subsistência, geralmente com pouca ou nenhuma capacidade económica, bem como dos pequenos proprietários que financeiramente, por lá andavam perto. Na realidade, além do lucro obtido com a venda da vitela desmamada, do leite da vaca de trabalho e da venda do queijo caseiro, o presunto, os salpicões, a linguiça, isto é, as partes nobres do porco, e os enchidos eram garantia do ganho necessário, para a compra das necessidades elementares. Eram esses produtos uma fonte de rendimento para a generalidade das famílias portuguesas.
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