A. Moniz de Palme
Enfim, o porco em questão, propriedade do Sr. Inocêncio, foi posto em cima de umas tábuas, colocadas à laia de banca, sobre uns tripés. As tábuas foram cobertas com palha para não ficarem sujas de sangue. Bem imobilizado o animal, foi o seu peso e tamanho objectos de elogios que faziam corar de contente a sua tratadora, sendo feitas as oportunas comparações com outros porcos conhecidos pelas suas boas qualidades.
Nessa altura, o mulherio saiu de cena e retirou-se certamente para uma parte da casa onde não pudesse pressentir a mortal facada e ouvir o berro de aflição do seu querido porquinho. Eu não fugi do teatro da tragédia, mas desviei os olhos para o outro lado do largo, como uma casta donzela envergonhada.
Apenas ali ficou uma senhora ao leme de um alguidar, previamente preparado com sal, vinho ou vinagre, para onde escorreu, em borbotões, o sangue do moribundo. Consoante as regras costumeiras, o sangue tem que ser manobrado à mão com uma colher de pau para não coagular. Nesses tempos, a clarividente ASAE, por não existir, ainda permitiria o uso de uma colher de madeira….Mas, actualmente e por enquanto, na sua ignorância atrevida, ainda se não abalançou a tentar dar cabo de mais uma tradição portuguesa, com receio de algum corte largo da sangradeira, “pues”…!
Entretanto, começou a ser feita a limpeza da pele do animal. As cerdas foram completamente queimadas com palha. Disseram-me que era usual, nesta singular operação estética de queimar os pelos dos suínos, a utilização da palha de centeio ou da carqueja. Hoje em dia, como é óbvio, é utilizado um prático maçarico. Na verdade, o couro tem que ficar lisinho, lisinho, lisinho, como a pele de um bebé. È então dado banho de corpo inteiro ao porco, para lhe tirar qualquer sujidade da pele.
Posteriormente, é usual dependurar o porco pelos pés, num chambaril, uma peça de madeira presa por um grosso cabo a uma das traves mais fortes da arrecadação ou da adega.
Quando começa a desmancha, segundo a ancestral tradição, vem uma mulher que não esteja com as regras ou grávida, com um alguidar grande, sendo este e os respectivos rebordos bem almofadados com panos limpos, para que as bordas e as arestas mais vivas do vasilhame não deteriorem as tripas que para lá são deitadas. Muito mais tarde, terá então início a lavagem das tripas que antigamente era feita no rio ou na corrente de água mais próxima, condição essencial para se dar começo à operação de fazer os enchidos.
A parte do redenho, equivalente ao peritoneu humano, que envolve a cavidade abdominal, ficava de molho, num alguidar cheio de água, até perder completamente os vestígios de sangue. É com ele que se fazem os deliciosos torresmos.
E uma ulterior fase acontece. Limpa a faca sangradeira, após uma oração de agradecimento a Deus, em Acção de Graças e em memória dos queridos falecidos da família, todos matam a fome criada pelo stress da Matação. Os miolos do porco são aferventados na gordura das morcelas e são servidos com os rins e um bocado de fígado assado. O Redenho do ano anterior também faz parte do menu, bem como entrecosto na brasa, acompanhado de batatas cozidas e couves, bem regados com azeite e vinagre.. E é encerrado este acto com pompa e circunstancia.
Começa então a fase dos enchidos. Aí, os mais novos observavam mulheres da casa., armadas de “enchideiras”, uma espécie de funil, a introduzir com arte as carnes pelas tripas adentro
Os primeiros enchidos eram as morcelas devido à cautela sempre presente na manipulação do sangue, produto bem susceptível, como todos sabemos.
E depois? Depois, começam a aparecer uma série de autênticos manjares do Olimpo que são os restantes Enchidos Portugueses.
A rainha dos enchidos é a Morcela. Existem diversas variedades de enchidos de sangue. Um pouco por todo o País, são feitas as moiras de sangue, mas nada têm a ver com as Morcelas Tradicionais. Destas, as mais conhecidas são a Morcela da Beira e a dos Açores, sendo esta muito parecida com a sua congénere do Continente.
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