António Moniz de Palme (Edição 821)

• António Moniz de Palme*

Edição 821 (10/02/2022)

O Cônsul Aristides Sousa Mendes e a maledicência do costume

Sobre o Cônsul Português, que finalmente foi honrado devidamente pelos responsáveis portugueses, com Honras de Panteão, atendendo às controversas opiniões que ouvia na minha juventude, iniciei profunda investigação à sua vida profissional e familiar. As minhas dúvidas rapidamente ficaram resolvidas. Quanto ao Cônsul, sabia-se que já há muito tempo tinha sido objecto de homenagens vindas de todo o Mundo. E não apenas de Israel, pela defesa da vida de milhares de judeus, mas, nomeadamente, da Argentina, onde foi construída uma estátua para que o mundo não esquecesse o seu trabalho e sacrifícios pessoais em prol da Humanidade. Aliás, por toda a Europa livre se falou na sua coragem e na sua heróica intervenção ao serviço dos mais necessitados, não só em termos rácicos e religiosos como, igualmente, em termos políticos.

Aguarela da autoria de António Moniz de Palme

Viveu durante uma conturbada fase da situação política portuguesa e, por azar dos azares, para mal da sua saúde e bem estar, sempre se colocou no lado errado da trincheira. Já referi tal em diversos artigos e nas ocasiões em que publicamente falei sobre o Cônsul. A começar com um longo capítulo incluído, no meu livro ”O Almofariz”, publicado em 2008, e com uma extensa intervenção em Torre de Moncorvo, em 19 de Junho de 2015, nas conferências sobre a Cultura Judaica em Portugal. Porém, muitas mais comunicações por mim foram feitas sobre este tema. Ainda por cima, tinha um dever perante a sua memória, pois Sousa Mendes, além de amigo do meu Pai, era igualmente um beirão com valores firmes, crente nos princípios cristãos e sem medo das novas perversões ideológicas que iam aparecendo, canalizadas pelas centrais cripto comunistas que passaram a enfeitar os difusores maçónicos das grandes capitais. Como português de lei, abria o peito às balas, enfrentando os ataques ideológicos contra a cristandade e a liberdade de cada um. Não se remetia ao silêncio hipócrita, como muitos responsáveis fazem por puro comodismo. Claro que, sensatamente, os homens que andam pela carreira diplomática geralmente assumem um comportamento cinzentão, nunca deixando antever as suas convicções pessoais, políticas e religiosas, conservando um mutismo estratégico para bem da sua estabilidade física e emocional. Ora o nosso Cônsul dizia, claramente, aos sete ventos, que era monárquico e católico. E como bom provinciano, formado em direito pela Escola de Coimbra, não tinha qualquer medo às palavras nem às ideias, expondo publicamente e sem cerimónia, o que pensava. Pecado este que lhe acarretou a inimizade da maçonaria, dos extremistas republicanos, da extrema direita do regime do Estado Novo e, terminada a Guerra, dos frustrados germanófilos. O Exemplo da sua personalidade politicamente incorrecta até doía…! Monárquico e Católico numa República dominada pela Carbonária, ainda por cima, apaniguado de um regime democrático que defendesse intransigentemente a Liberdade de cada um. Com o seu feitio independente até atraiu a animosidade dos próprios homens da direita que não aguentavam a sua sombra, recheada de atitudes claras e objecto de elogios de todos os locais e países por onde passava, nas suas funções consulares. Na verdade, não se vendia nem à direita nem à esquerda. Após o assassinato de Sidónio Pais, apesar de estar muito longe do território português, em Curitiba, e de saber o que se passava em Portugal tarde e a más horas, os seus inimigos, suspenderam-no das suas funções, acusando-o de estar feito com os apaniguados do popular Sidónio. Claro que atravessou uma situação económica muito difícil, tanto Ele como a sua numerosa Família, pois tinha muitos filhos a estudar e tinha que fazer obras na sua velha casa de Cabanas de Viriato. Mas voltou finalmente ao trabalho, sendo colocado transitoriamente em S. Francisco da Califórnia e, mais tarde, no Consulado do Maranhão onde esteve até 1924. Posteriormente, foi mandado para Vigo, em Espanha, onde foi merecedor de grandes elogios dos responsáveis locais. Seguiu-se a colocação em Antuérpia, local onde as suas qualidades foram elogiadas, atendendo às dificuldades que já se viviam, e publicamente apontado como exemplo de agente diplomático que resolvia os problemas que surgiam, nunca lhes virando a cara, cómoda e egoisticamente, como muitos faziam, fugindo das complicações. Em Portugal, o atraso na construção de um estado verdadeiramente democrático em que a Liberdade fosse uma realidade, trouxeram a tristeza e a desilusão a quem tanta esperança teve no Estado Novo, não se precavendo de confessar a sua decepção em frente dos falsos amigos, sempre ruídos de inveja pela hombridade de Sousa Mendes. Começaram então os ditos para o colocarem mal perante o governo de Salazar. A ida repentina ao enterro do Sogro, sem o cumprimento da complicada burocracia exigível, completamente ultrapassada, impossível de respeitar numa situação imprevista, foi motivo do levantamento de um processo disciplinar e do maior espalhafato possível de gente que o queria ver de rastos, por não aguentarem a sua popularidade. Enfim, a perseguição iniciada pelos republicanos e pela maçonaria, foi encetada novamente pelos próceres do Estado Novo. Como vingança, foram-lhe retirados inexplicavelmente 20 libras mensais do seu vencimento que constituíam um bónus atribuído aos Consulados com receitas mais elevadas e que, legitimamente, o Cônsul tinha a expectativa de ir receber. Perante a desconsideração que lhe estava a ser feita, escreveu a Salazar a protestar pelo modo como estava a ser tratado e a solicitar a sua promoção a chefe de missão na Legação Chinesa ou na Legação Japonesa, paragens bem distantes das invejas mesquinhas dos políticos medíocres que rodeavam o regime. Mas não, demonstrando tacitamente que o Cônsul Sousa Mendes era um dos mais capazes, foi nomeado para um lugar dificílimo, chefiar o consulado de Bordéus, local de passagem obrigatória de gente que fugia dos nazis, e da polícia franquista que pretendia apanhar os “Rojos” que tinham passado as malhas da sua polícia. Enfim, situações explosivas, só podendo ser tratadas com extrema inteligência, com denodada coragem e com a versatilidade de um agente consular muito especial, um misto de sábio e de super homem. .Claro que os judeus e os vermelhos que residiam em França, com o avanço alemão no território francês, necessitavam de vistos para poderem fugir às garras dos respectivos perseguidores. E aqui entra em cena, em 1935, a célebre circular nº 14, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que proibia a passagem de vistos. Na verdade, as autoridades portuguesas exigiam uma licença passada caso a caso, pelo Ministério, a cada um que pretendia passar a fronteira. Ora, tal circular se não fosse prontamente alterada, condenaria à morte todos os fugitivos, pois os vistos eram o único meio de poderem fugir às garras dos perseguidores.

Com o bombardeamento de Bordéus, após a queda de Paris, uma multidão completamente apavorada invadiu o nosso consulado para tentar obter um visto salvador. Perante a proibição oficial existente, mantida para não desagradar a uma das partes do conflito mundial, o Cônsul, invocando os seus princípios humanistas e de católico, fez vista grossa à proibição governamental e deu ordens aos seus subordinados para passarem todos os vistos que fossem necessários, mesmo sem a cobrança dos emolumentos habituais. Na verdade, atendendo ao gritante estado de necessidade de tanta gente inocente, a situação não se compadecia com as demoras burocráticas que atrasariam o atendimento célere que se exigia. E uma multidão de fugitivos de todas as crenças e credos políticos salvaram a sua vida pela atitude firme de Sousa Mendes. Existe uma carta bem significativa de uma senhora, Aldona Maria Kermenic, nascida na Polónia, datada de 1994, para o seu amigo português, José Archer de Carvalho, comunicando que tanto Ela como os Pais, diplomatas em Antuérpia, embora tivessem Passaporte Diplomático Polaco, não conseguiam o visto português necessário para rapidamente passarem a fronteira de Handaia. Porém tiveram a grata surpresa de encontrar Sousa Mendes, seu velho conhecido de Antuérpia, em cima de uma ponte que dava acesso a Espanha, a carimbar desembaraçadamente os passaportes de uma multidão indescritível de refugiados, para estes poderem sair de França. O Pai, embora não fosse judeu e fosse um diplomata, tinha a cabeça a prémio por ter ajudado muitos judeus a sair da Bélgica, andando a ser ferozmente procurado pela Gestapo.  Diz a senhora que foi um autêntico milagre aquele encontro que os livrou de serem passados pelas armas, como aconteceu com outros diplomatas nas mesmas circunstâncias.

Toda a má língua e má vontade têm sido sistematicamente destruídas pelas provas irrefutáveis da sua honestidade e valentia mas, em desespero de causa, ainda apareceu alguém, que denunciava os colegas de trabalho à PIDE, a levantar a atoarda de que o Cônsul metia ao bolso o dinheiro do pagamento dos vistos. Tal nunca foi provado! Com o seu comportamento que salvou a vida de milhares de inocentes, sacrificou a sua vida e a dos seus familiares, acabando na mais extrema e  completa  miséria, vendo-se forçado a ir com a Família, diariamente, matar a fome à Sopa dos Pobres. Merece todo o respeito do Povo Português, pois é um dos nossos maiores heróis do nosso tempo.

António Moniz Palme –  2022 – Porto

* Advogado



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