A. Moniz de Palme
As Morcelas e demais Enchidos e a nossa Beira
Os nossos porcos domésticos eram da Raça Bisara, que quase esteve perdida e que se tem procurado recuperar.
No Alentejo, abunda ainda o Porco de Montado que pasta pelos campos, comendo castanhas e bolotas e até pequenos animais. Enfim, tudo o que chega ao alcance da sua voracidade. Claro que outras raças fizeram a sua entrada nas pocilgas de cada um, trazidas por povos invasores, antes da Nacionalidade, e, mais tarde, pelas inovações agrícolas do Agros Europeu. Por exemplo, a raça “Large white”, cujos animais de cor rósea tinham um tamanho muito mais avantajado do que as raças autóctones.
Mas, como todos sabemos, o conservadorismo da nossa gente vai sendo um obstáculo invencível às mudanças. Em vez de esperarem pelo desenvolvimento dos animais e verem o resultado da produção da nova raça em experiência, tiravam conclusões antes do tempo e, na primeira curva do caminho, davam logo cabo da sua possibilidade de reprodução. Era um ver se te avias…
Bem me lembro de uma récua de porcos de uma raça inglesa, que deu uma trabalheira imensa a importar e a transportar até ao local das novas instalações, na Beira Interior, com despesas com seguros de transporte e recomendações várias ao pessoal dos caminhos de ferro. Pois bem, quando começaram a crescer, logo foi feita uma tola comparação com a evolução dos porcos locais, achando que o crescimento estava a ser mais lento e “catrapus”, nem o pensaram…! Fizeram uma operação estética aos dois pobres machos para engordarem mais depressa, tirando-lhes a alegria de viver e de poderem ter descendência que se visse…. Nesta situação concreta, ficou por ali tristemente o futuro de uma nova raça que estava a obter sucesso em muitos países.
Na altura, o dono dos porcos, quando verificou bem os traseiros dos animais que tinha mandado vir do estrangeiro com tanta cautela e a custo de tantas despesas, e verificou que lhes faltava uma parte essencial para serem porcos inteiros, pretendeu fazer a mesma operação aos responsáveis daquela estúpida obliteração…! Olho por olho, dente por dente. No ajuste de contas com os autores daquela não autorizada capadela, iam ficando os mesmos ”coxinhos” de todo para toda a vida. Tal não aconteceu, Graças a Deus, mas o susto ninguém lhes tirou…
O dia da matança dos porcos lá de casa eram em datas em que os mais pequenos estavam noutro local, ocupados pela frequência das aulas ou, pelo menos, fora do circuito provocado pela azáfama resultante desse “DIA D”, assistindo quando muito à fase posterior da manufactura dos enchidos, a que não achávamos lá muita piada, por monótona em demasia.
Ora, o propositado planeamento familiar dos Meus Pais da não presença de um dos seus mais novos, numa Matação do Porco, acabou por falhar completamente, pois a sua previsão era fatalmente limitada. Não sei bem porque artes mágicas, o que é facto é que me encontrava em S. Pedro do Sul. E por mero acaso fui a casa do Sr. Mário Mendes, vendedor dos jornais, constatando que havia grande rebuliço no pátio fronteiro às suas escadas e à oficina de ferreiro do Sr. Inocêncio, existente debaixo da casa onde este vivia com a Família. Além do casal, um Filho bastante mais velho do que eu e uma filha, igualmente mais velha, uma lindíssima rapariga, se bem me lembro. Esse largo público, palco do que vou descrever, ficava no meio da Rua Baronesa de Palme, uma quelha tortuosa que outrora teve imensa importância, pois por ali passava a estrada nacional de Porto a Viseu, uma das vias de penetração na Beira.
Devo esclarecer que o Sr. Inocêncio era muito alto e muito alentado, tendo um físico fora de vulgar. Apesar dos pais sampedrenses ameaçarem com a sua pessoa os filhos, quando estes se portavam mal, Ele adorava o gado miúdo, tendo para ele grande e santa paciência. Lembro-me quando os mais pequenos tinham que apanhar uma injecção e não estavam com o “sim senhor” quieto, eram ameaçados de uma vinda do Sr. Inocêncio, que se sentaria em cima das suas pessoa para se portarem nos devidos termos. Ora, o Sr Inocêncio era um santo, a bondade em pessoa, e ficava um bocado achacado quando sabia que os seus próprios amigos atemorizavam os filhos com o seu físico atrevido, a título de aviso, comparando-o a um “papão” Na verdade, era bem indecente, convenhamos…
Mas voltemos às manobras da matança e ao espectáculo que presenciei. Havia gente que baste, como mirones de todos os feitios e todos na ânsia de ajudarem, atropelavam-se uns aos outros. Mas, o que acontece é que a matança é uma realidade social com muitos séculos de vida e é sempre o pretexto para uma reunião familiar, com a vinda dos primos, da parentela e dos vizinhos para participarem na cerimónia. Nas casas agrícolas, constituía mesmo um momento sagrado e oportuno de patrões e empregados da lavoira se esquecerem das recíprocas ofensas no meio do relato das aventuras de cada um, animados com um copinho de aguardente ou jeropiga e de uns apetitosos torresmos da anterior matança. Aliás, os espíritos já estavam devidamente amaciados pelas “pancas”, uns copinhos de vinho tinto que estavam permanentemente a ser distribuídos aos homens pelo caseiro e solícito elenco feminino.
Não me lembro já quem era o artista principal daquela representação, mas certamente o Sr. Luizinho, bombeiro imponente, Pai do meu amigo Pelaio, e que matava com eficiência e sabedoria extrema os porcos lá de casa e de muitas famílias da terra e até de fora.
Os suínos, se pudessem falar diriam que queriam como seu matador, o competente Luizinho pois, com a sua mão hábil, enfiava com precisão, na papada, a faca sangradeira, cortando imediata e certeiramente a jugular do animal e a vítima não sofria mais, gritando apenas por se sentir preso.
Aliás, passava-se esta mesma situação com os bons carrascos do antigamente que eram pagos a peso de ouro pelas famílias das vítimas, vindos de bem longe, pois de um só golpe degolavam um cristão sem grande sofrimento. Suposições poéticas, claro, pois as vítimas coitadas nunca chegavam a dar opinião sobre a sapiência do artista.
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