António Moniz de Palme (Ed. 819)

• António Moniz de Palme*

Edição 819 (13/01/2022)

Ciclistas e outras reconfortantes lembranças

Perdido no deserto das férias, sem os amigos habituais, instantaneamente nos viramos para dentro de nós próprios, ou melhor, ficamos com todo o tempo disponível para sonhar e recordar o que mais nos marcou no passado. Ainda por cima, a pestilência fechou-nos em casa e quase nos obrigou a abrir à força a arca das recordações, para a qual nunca nos atrevemos a espreitar.

Na minha indiferença do que se passa no desporto, acordado pelas trombetas da vozearia pública, tive conhecimento do início da Volta a Portugal e mais, exibiram-me na TV um pedaço de uma tirada da volta até Castelo Branco, com a rapaziada a pedalar bravamente e a atirar garrafas de plástico vazias e outro variado entulho para a berma da estrada.,..!

Sem dar conta, entrei num doce torpor que me transferiu em Corpo e Alma para a minha meninice, mas, espantem-se, para um lugar concreto, a Ponte, em S. Pedro do Sul. Lá sentia o vento frio que sopra às tantas da madrugada, nas minhas pobres orelhas, partilhado pelos meus irmãos mais velhos e pelo pessoal da casa da minha Avó. Na altura, a minha terra fazia apenas parte da paisagem desta iniciativa ciclista e não tinha categoria para determinar o fim ou o princípio de uma etapa da Volta. Os ciclistas partiam de Viseu, rumo a Lamego, cortando toda a comitiva, corredores e acompanhantes, na Ponte, em S. Pedro do Sul, para a estrada de Castro Daire, a velha Estrada Real, cheia de pó e de curvas, para chegarem a Lamego, penso eu… E a par das boas recordações, recordo as palavras amigas dos outros expectadores madrugadores, Família Dias, Portelo, Girões, Matias, enfim, toda a boa gente da Ponte que ali vivia em tão importante encruzilhada rodoviária. Passam agora todos pela minha imaginação, além do animado pelotão de ciclistas, talvez chefiado pelo Zé Maria Nicolau ou pelo Trindade, que entusiasmavam até à loucura, os espectadores.  E, na perseguição temporal, saídos da bruma lá me apareciam, igualmente, um Américo Raposo e um Pedro Polainas, seguidos a uns anos de distância pelo Alves Barbosa e pelo Ribeiro da Silva. Porém, o sonho desfez-se tragicamente, quando, após ter andado a passear a minha imaginação, pela quimérica Volta à França, dou de chofre com o Joaquim Agostinho, meu ídolo, estatelado no chão, junto à sua “pasteleira”, inanimado sem vida, numa estrada portuguesa. Recordo que, na altura chorei abundante e sentidamente.

o irmão  Gaucher

Com a situação clínica actual, passei rapidamente a ocupar o obrigatório tempo livre com a leitura. Durante a pandemia devo ter relido tudo o que apanhei à mão, nomeadamente toda a obra de Camilo, muitos romances do Eça, do Júlio Dinis e do Miguel Torga. E passei a pente fino, nas minhas memórias, todas as figuras, que saltavam de cada romance e que na altura me marcaram, entrando definitivamente nas minhas gratas recordações. Porém, quem me conquistou definitivamente e se agarrou a mim como uma lapa, foi o espírito da BLIMUNDA, heroína do “Memorial do Convento”, de Saramago, uma espécie de grilo crítico do Pinóquio e que me obrigava a olhar a história com olhos de ver e na perspectiva dos valores que  eu dizia possuir. Gostei demasiado da obra deste autor, que li de fio a pavio, apesar da sua personalidade humana, enquanto foi vivo, me ter provocado vómitos incontroláveis. Porém, continuou na minha fantasia, a encantadora Blimunda. Era uma personalidade  agressiva e violenta, dada às artes de feitiçaria e que por tal acabou queimada numa fogueira da Inquisição. Nesses transes de bruxaria, Blimunda via o interior do seu semelhante. Na verdade, sabia o que pensava o próximo e conseguia obter um panorama íntimo do interior do canastro de casa cidadão com que topava. Um espanto, na verdade!!! Fiquei passado e encantado. Nunca mais me saiu da minha memória essa apaixonante figura. E nas minhas divagações literárias, bem procurei um sucedâneo que me livrasse do doce e irresistível hipnotismo, ao mesmo tempo, agressivo e misterioso, de Blimunda. E tal aconteceu. Numa fase em que queria esquecer os problemas políticos e sociais que me afligiam permanentemente, entrei de rompante em determinado campo da pura literatura. E o meu encontro com Alphonse Daudet (1840-1897), um escritor francês, foi um êxito.  Um encontro de sucesso, pois encontrei na sua obra a boa nostalgia do Interior da sua Provença, idêntica à da minha Terra, igualmente com os costumes de antanho, bem parecidos com o modo de viver e actividade social de Lafões e semelhantes às boas e rudes qualidades da gente firme que me viu nascer. Pois bem, dentro das suas obras, fiquei marcado pelo seu livro “Les Lettres de Mon Moulin”. E dentro destas “Cartas do meu Moinho”, uma divertida novela passada num decrépito convento da Provença, completamente arruinado pelo tempo e pela ausência das necessárias obras de conservação, não realizadas pela falência completa das suas pobres finanças, que obrigava os bons monges a passar fome e a não poder ajudar os seus semelhantes, como até então. O declínio era tal, que quebrado o sino, os monges viam-se obrigados a tocar as Matinas com matracas de madeira…! Mas a vida do Convento foi salva pelo acaso da vida, ou melhor pela actuação de um pobre irmão, de nome Gaucher, monge boçal, de poucas letras, que apenas tratava de umas vacas escanzeladas. Figura desconcertante, muito religioso e cumpridor dos preceitos divinos, mas que, nas horas vagas, gostava de confecionar elixires e se dizia possuidor de uma receita especial, descoberta por uma tia, meia desaparafusada que devia gostar de beber o seu licorzinho, pois era ela própria que os fazia. E, quando bebia um copito, cantava modinhas licenciosas que até escandalizavam um surdo em último grau. A certa altura, reuniu-se o Capítulo da Ordem, pois a situação económica era insustentável. O Convento estava em ruinas, os monges não tinham um tostão para ajudar  o próximo e passavam fome negra, não como um silício, mas apenas como consequência…E nessa altura, apareceu o meu último herói da literatura, o irmão  Gaucher, o tal que tratava o gado, com a sua linguagem rude e pouco polida, dizendo que poderia salvar o Convento, se lhe fosse permitido confecionar um licor, cuja receita foi descoberta por uma sua tiazinha que gostava de o elaborar e  de o beber.  Perante o descalabro económico da fraternidade, após muita discussão, os monges aceitaram a proposta do irmão vaqueiro, sendo autorizado a produzir o elixir da sua tia Bégon, que conhecia as ervas da montanha tão bem como um velho melro dos Pirinéus. Colhidas as ervas, fazia um licor cujo sabor era fora do vulgar e a sua venda seria um êxito económico para o Convento, segundo dizia o sobrinho. Acabaram todos por aceitar esta proposta, único modo de saírem da situação miserável em que se encontravam. Para não influenciarem e alimentarem os desejos de bebida dos componentes da Irmandade, o irmão Gaucher foi enviado para uma sala subterrânea, onde mais ninguém entrava, a não ser os irmãos que tinham andado a recolher as ervas indicadas pelo monge produtor do licor. Passados meses, o licor engarrafado e com um chamativo rótulo prateado, com a figura de um monge em êxtase, era vendido por todo o lado e vários monges tiveram que ir para a secção de engarrafamento e distribuição, para dar resposta às encomendas. O Convento estava a salvo e logo começaram as obras de restauro, sendo levantada a torre que tinha antes desabado. Mas agora com música de fundo, o badalar dos novos sinos adquiridos e que passaram a animar as Matinas e as outras Horas Santas. O nosso monge licoreiro vivia, fechado no seu laboratório, rodeado de alambiques gigantes, serpentinas e retortas. Apenas saia do seu local de trabalho, quando soava a última badalada das Trindades. Porém, certamente o Diabo meteu o bedelho no problema para agravar a situação. Em certo dia, a porta abriu-se discretamente, e o Monge Gautier entrou para o Ofício da tarde, excitadíssimo, vermelho, esbaforido e a não dizer coisa com coisa. O Prior desconfiou do pior. A prova do bom licor tinha sido exagerada e o pobre monge pecava, quando era obrigado a provar a sua excelente bebida. E o mal é que tinha mesmo que ser Ele a provar o licor, para lhe dar o último toque no sabor, que o distinguia de todos os restantes. Para não desgostar o pobre Monge, trancaram-no para que ninguém notasse os exageros nas provas do licor conventual. Mas o pior estava para acontecer. A Tia do Gautier, como já relatei, quando bebia o seu licor cantava modinhas obscenas. O Sobrinho passou a ter o mesmo comportamento, cantorias que se ouviam e ecoavam pelos claustros e galerias de todos o convento. E agora? O Diabo bem tramou os Homens de Deus. Perante a impossibilidade de suster esta nova manifestação canora do bom Gautier, todos punham tampões nos ouvidos quando passavam perto do laboratório das provas. Perguntar-me-ão “ E as canções eram assim tão indecorosas?” Ora, com as expressões locais gaulesas eu não me meto, mas poderei dar um exemplo, para que todos percebam o horror da situação. Suponham que se podia ouvir, em nossa casa, a canção do pobre Monge, arrastada pelo excesso de copos: – “Ó Maria Cachucha, com quem dormes tu? Durmo com o meu gato, que me arranha o …!!!”

Na verdade, intolerável e de péssimo mau gosto, se o resto não bastasse…

Porto – 2022

* Advogado