Pintor António José Pereira, um extra terrestre que nos caiu do céu aos trambolhões, pelas terras de Viriato…!
• António Moniz de Palme*
Edição 818 (30/12/2021)
Pintor António José Pereira, um extra terrestre que nos caiu do céu aos trambolhões, pelas terras de Viriato…!
Sempre sonhei que a minha terra tivesse um espólio artístico dos vários conterrâneos que se dedicaram, através dos tempos, à arte, tanto pictórica como escrita. Sobre o assunto escrevi diversos artigos, em diversos locais, desafiando os responsáveis pela cultura municipal, à criação de lugares apropriados para guardar, para memória futura, obras de arte da autoria da gente da terra. Na verdade, salvo raras excepções, tanto na Região de Lafões, como aliás, por toda a Beira, não teve este apelo a adequada resposta. Nenhum responsável moveu uma palha para atingir esse objectivo municipal. Claro está que existem iniciativas honrosas, que por todos são conhecidas…! Mas, na generalidade, se alguém se notabilizar em qualquer campo artístico, nada na sua terra ficará a testemunhar a sua passagem por este pobre Mundo de Cristo. Mais, se doar ou vender um grupo de esculturas ou de pinturas seja ao município que o viu nascer ou a qualquer outro, verá tristemente a sua oferta, esquecida numa sala húmida, talvez a monte, acabando por apodrecer, como tive ocasião de verificar em diversas instalações de entidades públicas e autárquicas, cujo nome omitirei, como deverão compreender. Repito o que venho dizendo desde há muito. Os Municípios não se podem limitar a ser simples centrais de obras públicas. A Cultura, tal como a Preservação dos Recursos Naturais, em futuro muito breve, vai marcar indelevelmente o principal objectivo dos programas políticos de cada município.
Não é mau relembrar algumas figuras da minha infância que marcaram culturalmente a minha terra. Recordo perfeitamente de duas personagens, no campo das artes, de quem já escrevi algumas linhas, Albano Coutinho e D. Diogo Reriz. O primeiro, que vivia na sua Casa da Comenda, em S. Pedro do Sul, foi Director do Museu Grão Vasco, em Viseu, e galardoado com inúmeros prémios nacionais e estrangeiros. O segundo, o simpático Marquês de Reriz, que saia muito cedo da sua casa, do Palácio Reriz, seguido de um fiel cão que sempre o acompanhava, descendo até ao Café Edgard, onde aterrava para tomar o seu cafezinho e começar imediatamente a desenhar, num caderno que sempre trazia debaixo do braço. Sentava-se numa mesa cá fora, onde logo entabulava conversação com o Sr. José Engraxador, para saber as últimas novidades. Os restantes lugares da mesa eram logo ocupados por diferentes pessoas que muito apreciavam a sua convivência e aproveitavam para dar uma espreitadela curiosa ao seu último apontamento gráfico. Na verdade, todos gostavam de conviver com o Sr. Marquês. Contudo poucos conheciam a sua obra, apesar dos seus quadros figurarem, pelo menos, no Museu Grão Vasco e no Museu Académico de Coimbra, sendo considerado internacionalmente, tal como Toulouse Lautrec, um dos melhores pintores de cartazes da sua época. Haverá, propriedade do município de S. Pedro, alguma obra de Albano Coutinho ou de D. Diogo Reriz? Espero bem que sim…! Mas, ultrapassado este desabafo e esta reclamação dirigida a todas as autarquias da Província, aproveito para falar de um artista de Viseu que me apaixonou inteiramente.
Não vou falar do grande Grão Vasco nem do popular pintor Almeida Furtado, “O Gata”, que fez o retrato da conhecida fidalga, ilustre figura liberal, Baronesa da Silva, com um farfalhudo bigode, cuja inovação pilosa, nunca alguma vez tinha sido vista, num retrato de uma senhora, nomeadamente de uma conhecida aristocrata da Beira. Tal facécia correu mundo, granjeando-lhe enorme popularidade. Já agora direi que o retrato de D. Eugénia Cândida da Fonseca da Silva Mendes, Baronesa da Silva, se encontra no Museu Grão Vasco de Viseu, onde na minha meninice me deliciei de sobremaneira, com os meus colegas de Liceu, talvez de um modo pouco respeitador, perante bigode tão opulento. Será bom esclarecer que foi a própria retratada que exigiu figurar no quadro com o farto bigode que Deus lhe deu.
Todos recordam Grão Vasco e os seus belíssimos quadros, nomeadamente o impressionante retrato de S. Pedro, cujo olhar segue os visitantes, seja qual for a posição em que se detenham perante tão significativo retrato. E Todos recordam a Escola Quinhentista dirigida por Vasco Fernandes, o célebre Grão Vasco, que produziu incontável número de telas que estão na memória de todos.
Mas a história agora é outra e com uma diferente personagem. Na verdade, no século passado, em 12 de Janeiro de 1821, veio à luz uma criancinha visiense, filha de um casal muito modesto, que não tinha meios para frequentar qualquer estabelecimento de ensino, mas que tinha uma vontade gigantesca de aprender. Chamava-se António José Pereira. Assim, sem se saber como, e à custa do seu esforço notável, à margem da frequência de uma qualquer variedade de estudos académicos ou da prática ou estágio numa oficina de artes, lendo livros emprestados ou adquiridos, velhas publicações ligadas à pintura e à cultura, este nosso jovem, sem qualquer apoio, aprendeu a pintar, a ler e a escrever correctamente, tanto português como francês. Um autêntico autodidata, que ao mesmo tempo tinha que trabalhar no duro para se manter. No seu espólio, foi encontrado uma grosso caderno, onde fazia as sua anotações e escrevia ensinamentos de autoria desconhecida, com indicações sobre a manipulação das cores, a construção e a estrutura das sombras, os tempos de secagem das diferentes tonalidades, bem como as respectivas dosagens e composição. Esta série de apontamentos manuscritos foi certamente essencial para a sua actividade e para as suas descobertas artísticas. Aliás, tinha reunido inúmeras receita de preparação de vernizes e outros ingredientes necessários ao ofício, resultantes das suas constantes observações. A sua aprendizagem era feita na observação directa das obras de arte existentes nas várias igrejas, e em casa de colecionadores. As obras de Grão Vasco estavam gravadas no mais íntimo do seu ser, tal a quantidade de tempo que olhava para as mesmas, com um fascínio que de que não se conseguia libertar… Claro que após ter descoberto a composição das tintas necessárias para a elaboração dos diversos tipos de pintura, começou a fazer restauros nas velhas telas existentes por todo o Interior Beirão e a pintar figuras santas que lhe eram encomendadas. A perfeição das suas pinceladas e a textura das tintas utilizadas eram de tal modo perfeitas que o homem normal, perante determinado quadro, não sabia se estava perante um Grão Vasco autêntico se perante um quadro de António José Pereira ou ainda se perante uma cópia perfeitíssima. Na verdade, estavam perante um ser extraordinário, autenticamente um iluminado, dotado de enorme sensibilidade artística e de incalculável apetência para aprender todas as matérias ligadas à Arte, que entravam na sua personalidade com a fluidez de uma rabanada de vento. Casou muito jovem, aos 18 anos, tendo tido, segundo constava, vinte filhos. Alexandre Lucena e Vale, o grande vulto da Cultura Beirã, refere que apenas existe o registo de baptismo dos filhos que não morreram à nascença, dez descendentes. Para alimentar tanta gente, pintava santinhos para Igrejas e devotos, fazia restauros que ninguém ficava a saber o que teria sido acrescentado e arranjado em determinada obra de arte. Claro está que os seres fora do vulgar são sempre objecto da inveja, do ciúme e da má língua daqueles que o rodeiam. Na verdade, Santos da terra não fazem milagres. Os seus conterrâneos e intelectuais da altura, sabendo que o novo pintor nunca tinha tido possibilidade de aprender pintura e arte numa escola, trataram de forma miserável as suas qualidades de pintor, pelo facto de nunca ter andado numa escola conhecida e tudo ter feito pelo seu próprio esforço, para conseguir compreender, como ninguém, os quadros de Vasco Fernandes, o grande Grão Vasco, cuja pintura atraía todas as sumidades internacionais, ligadas a museus e à cultura. E os seus “amigos da onça” insistiam que o nosso pintor visiense apenas fazia pequenas obras de copista, simples plágios, para vender a estrangeiros. Nunca passou daí, insistiam!!!. Independentemente do modo como era injustamente avaliado, tanto como pintor, como com o seu intenso trabalho de investigação, junto das produções de Vasco Fernandes, descobriu, em 1857 que umas tábuas que formavam um modesto caixotão, correspondiam a três pinturas de um retábulo. Após ter removido toda a sujidade que as peças tinham como cobertura,verrificou que estava perante três painéis sobre a “Lamentação sobre o Corpo de Cristo” e que o painel do meio tinha a assinatura de Grão Vasco. Nem mais! Perante a crítica dos maledicentes do costume, os homens grandes da cultura, Oliveira Berardo e Charles Robinson, assentes na fama da sua competência, reconhecida por toda a Europa, consideraram genuína a assinatura descoberta. Claro que as desconfianças continuaram, como não podia deixar de ser…. Porém, Virgílio Ferreira, em 1923, descobriu a assinatura de Grão Vasco, na Sé de Lamego, e a comparação das duas assinaturas veio confirmar a veracidade da descoberta feita por António José Pereira, sendo desfeitas as calúnias infames que corriam pela boca destruidora da má língua.
António José Pereira, o grande pintor autodidata de Viseu, faleceu em 1895. Ainda teve a honra de ser homenageado pelo Rei D. Luis e pela Rainha D. Mari Pia, com a Ordem de São Tiago da Espada, quando o régio casal foi a Viseu inaugurar a Linha da Beira Alta.
A sua Honra e o seu Nome ficaram salvaguardados, mas os responsáveis da cultura autárquica, e os muitos interessados na pintura portuguesa, deviam promover um congresso em Viseu, subordinado ao tema “A obra e a personalidade do Pintor António José Pereira”
A sua memória e a sua obra, assim o exigem.
Porto – 2021
* Advogado
Mais artigos:
• O Mundo anda às avessas e a gente que ature os seus sublimes disparates (Ed. 815)
• Edições das Crónicas do Dr. António Moniz de Palme (Ed. 745 à 814)
• W.C O drama do despesismo das latrinas
• A vida democrática está a sofrer curto circuitos intoleráveis (3ªparte)
• Os Juízes e a legislação incompreensível que nos rege. – 2ª parte
Comentários recentes