António Bica (Ed. 742)

AS MIL E UMA NOITES DE MUITOS CONTOS (2)

• António Bica

A grande obra literária da idade média árabe são as Mil e Uma Noites.

O quinzenário “Gazeta da Beira” de S. Pedro do Sul publicou, entre 15 de Abril de 2000 e 10 de Abril de 2008, versão das Mil e Uma Noites, interpretadas no Ocidente por António Bica.

A tradução portuguesa mais consultada foi a de Estúdios Cor publicada entre 1958 e 1962 em seis volumes, com tradução de Aquilino Ribeiro, Branquinho da Fonseca, Carlos de Oliveira, Celeste Andrade, Domingos Monteiro, Irene Lisboa, João Gaspar Simões, José Gomes Ferreira, Manuel Mendes, Nataniel Costa, António de Sousa, Cabral do Nascimento, Domingos Monteiro, João Pedro de Andrade, José Rodrigues Migueis, José Saramago, Maria Franco, Patrícia Joyce, Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão Ferreira, João Pedro de Andrade, Jorge de Sena e ilustração de António Charrua, Conceição Silveira, Fernanda Garride, Fernando Conduto, Luis Filipe de Abreu, Jorge Martins, Maria Velês, Tomás Borba Vieira, Jorge Matos Chaves, Fernando Azevedo, Câmara Leme, Daciano Costa, Lima de Freitas, Sá Nogueira, Alice Jorge, Bartolomeu Cid, Infante do Carmo, Júlio Gil, Luis Filipe de Abreu, Manuel Lapa, Maria Keil, Paulo Guilherme, Bernardo Marques, Carlos Botelho, Cipriano Dourado, Fernando Azevedo, Júlio Pomar, Vaz Pereira.

A capa é reprodução de manta urdida a linho, com trama a lã, fiada, tingida e tecida em Lafões, no início do século 20, correspondendo o padrão ao das mantas berberes das montanhas rifenhas junto a Ceuta e a Tânger.


Xerazade quis salvar as mulheres do país

Quando Xariar, rei da Pérsia, chegou ao palácio, chamou a rainha, acusou-a do que fizera quando pensava que ele estava ausente e mandou cortar-lhe a cabeça. Mais tarde o rei viu
no palácio uma bela filha de nobre e pediu-a em casamento. No fim da noite que se seguiu às festas, depois de o rei ter dormido com ela, disse-lhe: «Se a rainha que mandei matar me foi infiel, como posso confiar que o não sejas?» A jovem mulher jurou uma e muitas vezes eterna fidelidade, mas o rei não se convenceu. Mandou chamar o carrasco e ordenou-lhe que ali, na sua frente, cortasse a cabeça à rainha.
Durante muitos anos, frequentemente, o rei se casou e mandou, no fim da noite seguinte ao casamento, cortar a cabeça da mulher. Os nobres e ricos do reino deixaram de levar ao palácio as filhas. Escondiam-nas em países distantes ou, muito novas ainda, casavam-nas para que Xariar as não cobiçasse. O rei passou a escolher mulher também entre as do povo comum.
O temor de ser escolhido para sogro do rei estendeu-se a todos os habitantes. Só a filha do vizir de Xariar, a jovem, bela, inteligente e culta Xerazade, o rei não ousara pedir em casamento para não desgostar o pai, que era o firme pilar do bom governo do reino.
Xariar mandou, mais uma vez, o vizir trazer-lhe uma jovem para se casar. Percorreu todo o reino e não encontrou mulher em idade de se casar com o rei, fossem ricos ou pobres os pais. Todas estavam casadas, ou haviam fugido para países distantes, que as casadas com o rei sempre haviam sido mortas.
O vizir, por compaixão pelo destino das mulheres do país, pediu conselho à filha, Xerazade. Disse-lhe ela: «Quero casar-me com o rei, se o meu pai permitir». O vizir procurou demovê-la de tal propósito, fazendo-lhe ver que era caminhar voluntariamente para a morte. Respondeu: «Meu pai, o nascimento é o começo da jornada para a morte, que a todo o momento pode chegar, sendo ou não querida. E sempre sempre chega. Morre-se na infância, em plena juventude, na idade madura, ou na velhice. Sempre se morre. Porque hei-de querer fugir a destino certo? Porque hei-de temer conhecer o dia e a hora em que vou morrer? Parece-me isso a máxima liberdade e a maior coragem». Não se deixou desarmar o vizir: «Xerazade, belas são a tua coragem e a tua lucidez. Não foi em vão que te ofereci os grandes livros que no mundo foram escritos e que os leste e meditaste. É verdade que não há vida sem morte e que, se ninguém morresse, ninguém poderia nascer. Cada ser alimenta-se dos cadáveres de outros. A vida alimenta-se da morte e a morte da vida. Mas, estando vivos, porque havemos de buscar voluntariamente o que tanto repugna? Vivamos o tempo que a natureza nos destina e deixemos que ela decida do dia fatal». Xerazade respondeu: «Verdade é o que dizes, meu pai, quando nenhum fim nos move. Não posso deixar que continuem a ser sacrificadas as mulheres do meu país sem que me oponha». O vizir, cheio de angústia, replicou: «Vais morrer em vão, minha filha. O teu sacrifício de nada valerá». Xerazade manteve a determinação: «Sem se ousar atingir o que é justo, sempre sofreremos a injustiça. Sem luta, não podemos vencer. Porque me há-de assustar a morte, se sempre hei-de morrer?»
O vizir, triste por saber que a filha caminhava voluntariamente para a morte, mas orgulhoso da sua inteligência e da sua coragem, foi anunciar ao rei que Xerazade seria a sua próxima mulher. Xariar ouviu as palavras do vizir e, percebendo a sua dor, repetiu para si as palavras do poeta:
«Esmagam-te o desespero e a dor./ Mas lembra-te que tudo se acaba:/ Toda a alegria se esvai,/ todo o desgosto se esquece.»
Veio o vizir dizer a Xerazade que o rei a aceitava como mulher. Comentou ela: «É tempo de libertar as mulheres do meu país. É preciso que isso se cumpra». O vizir recomendou: «Tem cuidado, não te aconteça como ao burro e ao boi do mercador». E começou a contar-lhe essa história.

 

O Burro e o Boi

Era uma vez um homem que vivia em país à beira de grande rio. Tinha um burro e um boi, além de outros animais, e largos campos. Um génio ensinara-o a entender a fala dos animais, recomendando-lhe que a ninguém revelasse o conhecimento senão morreria.
Um dia ouviu o boi dizer ao burro: «Invejo o teu descanso. Comes boa cevada e quase não trabalhas. Eu lavro todo o dia ou puxo o carro e só me dão palha». Respondeu-lhe o burro: «Ó pai da força e da paciência, dou-te um conselho. Quando vierem buscar-te para o trabalho, mantem-te deitado e não te levantes, mesmo que te batam, para que te não levem. E não comas para pensarem que estás doente e te melhorarem a ração». O boi agradeceu e assim decidiu fazer. No dia seguinte um trabalhador veio pelo boi para lavrar. Como se não levantava, levou o burro, que todo o dia puxou o arado.
No outro dia veio o carreiro. Como o boi continuava deitado e não se levantava nem comera a palha, deu-lhe cevada e levou o burro, que todo o dia esteve jungido ao carro. À noite o burro voltou cansado e com o pescoço dorido da canga. Quando chegou ao curral, o boi agradeceu-lhe o bom conselho que lhe havia dado e elogiou-o pela bondade e a inteligência.
O burro disse: «Ó boi, enquanto puxava o carro ouvi o nosso dono dizer para o carreiro: “O boi está doente. Antes que morra, chama o açougueiro e vende-o para o talho”. É melhor deixares de te recusar a trabalhar, para que te não vendam e morras». O boi agradeceu ao burro mais este conselho.
O homem, dono deles, estava por ali e ouviu o novo conselho do burro. Na manhã seguinte, quando o trabalhador veio buscar o boi para a lavra, logo ele se pôs de pé e caminhou cheio de vontade para ser aposto ao arado. O homem, que estava acompanhado da mulher, viu a boa disposição do boi para se deixar jungir e riu com vontade. A mulher perguntou-lhe: «De que te ris?» Respondeu ele: «Não te posso dizer, que, se to disser, seguramente morrerei». Ela insistiu durante muitos dias para que lhe contasse e, quanto mais se recusava, mais ela insistia, dizendo-lhe: «Se me não dizes é porque te riste de mim».
Pensou ele que não se livraria mais da impertinência da mulher e disse: «Dá-me três dias de descanso, que te direi por que me ria e morrerei. Prefiro isso a continuar a aturar-te».
O homem tinha um cão, que ouviu as palavras do dono para a mulher, e um galo valente capaz de satisfazer cinquenta galinhas sem que nenhuma se queixasse. O galo cantava alegre no terreiro. O cão censurou-o: «Não te envergonhas da tua alegria quando o nosso dono vai morrer dentro de três dias?» Perguntou o galo: «Mas porquê?» O cão contou-lhe. Comentou: «Por Deus, que também é nosso criador, o nosso dono precisa de conselho. Eu, com cinquenta fêmeas, mantenho-as todas em respeito e ele, com uma, não o faz? Que arranje uma vara de marmeleiro e lhe dê até deixar de ser impertinente».
O homem ouviu a conversa e reflectiu: «Justo é que corrija a minha mulher, pois não é bom que, para satisfazer uma curiosidade inútil e impertinente, aceite sacrificar-me». E seguiu o conselho do galo. Bem sovada, a mulher reconheceu que não tinha o direito de ser impertinente e viveram em paz daí em diante.
Depois de acabar o conto do burro e do boi o vizir disse à filha: «Tal como o homem bateu na mulher para não ser impertinente, mais depressa o rei te mandará matar se com impertinência o repreenderes». Xerazade não respondeu.
Foram feitas grandes festas pelo casamento do rei. No dia do casamento disse Xerazade à irmã mais nova: «Quando fôr para a câmara do rei, hei-de mandar chamar-te. Deves ir prontamente. Depois de fazermos eu e o rei o que há que fazer, pede-me para te contar a história do mercador e do génio».
No fim das festas de casamento o rei levou Xerazade para a câmara de dormir. Então Xerazade disse: «Senhor, a minha irmã mais nova terá grande desgosto se não passar junto de mim a minha última noite. Permites que ela satisfaça esse desejo?» O rei condescendeu.
Depois que o rei e Xerzade fizeram o que tinham que fazer, com grande gosto de ambos, disse a irmã: «Por Deus, ó minha irmã, antes que amanheça e partas para sempre, conta-me a história do mercador e do génio que me prometeste contar». Respondeu-lhe com voz macia: «De boa vontade to contaria, mas receio que nunca venhas a conhecer essa maravilhosa história, porque não devo perturbar a noite do meu senhor».
As palavras de Xerazade agradaram ao rei. Porque quis saber a história, disse: «Conta, que gostarei de ouvir»

 

 


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