António Bica (Ed.674)

O UNIVERSO DE QUE SOMOS PARTE (17)

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Os colectivos humanos foram criando religiões a legitimá-los e a explicar o universo. A adopção de religião monoteísta pelas tribos hebraicas

Das construções religiosas monoteístas importa referir a cristã e a islâmica por serem seguidas por quase metade da humanidade e também a judaica por ser tronco de que ambas nasceram, embora as tribos hebraicas a tenham adoptado a partir do monoteísmo criado na corte egípcia, onde nasceu a primeira religião monoteísta conhecida pelo final do século 4 antes da nossa era. A reforma monoteísta egípcia foi então imposta pelo faraó Aquenaton com base no culto do Sol considerado pelos egípcios o grande deus.

O povo hebraico de origem semita, que passou a integrar cerca de 700 anos depois o império da Babilónia, a seguir o persa, depois o grego criado por Alexandre Magno e, cerca de meio século antes do início da nossa era, o Império Romano, teve profundo contacto com o povo egípcio por ter anteriormente emigrado para o Egipto. O povo tribal hebraico veio a adoptar a religião monoteísta fundada na reforma do faraó Aquenaton, a que posteriormente adicionou significativos elementos da cosmogonia semita mesopotâmica (por exemplo o dilúvio) e da sua cultura tribal.

Após a primeira e efémera reforma monoteísta egípcia no Egipto, durante o primeiro milénio anterior à nossa era nos vales de outras grandes civilizações euro-asiáticas (China, Mesopotâmia, Vale do Indo), porque cada civilização tendeu a unificar-se sob o domínio de um monarca, houve reflexão social, política e religiosa que levou a maior racionalização da compreensão dos humanos e do mundo, tendendo a fazer coincidir a unificação do poder político com concepções religiosas monoteístas.

Talvez porque no Egipto o poder estava fortemente concentrado no faraó, foi aí que primeiro se concebeu o poder divino, até então atribuído a múltiplos deuses, como pertencendo a um único deus.

A base egípcia do monoteísmo hebraico revela-se em múltiplos aspectos, nomeadamente na atribuída origem hebraica a Moisés considerado fundador do monoteísmo e condutor dos hebreus para Canaã. Havia sido, segundo o Êxodo, escondidamente posto pela mãe no rio Nilo dentro de um cesto impermeabilizado para fugir a perseguição pelo poder, esperando assim que alguém o salvasse e criasse. A filha do faraó, que estava a jusante na margem do rio, recolheu-o, levou-o para o palácio e pôs-lhe o nome (egípcio) “Moses”. Adulto, tornou-se chefe dos hebreus para os defender da perseguição egípcia (Êxodo 2, 1-10).

Admitindo-se que Moisés existiu, a melhor interpretação do relato bíblico será ter pertencido à jovem nobreza da corte egípcia seguidora do monoteísmo instituído por Aquenaton, que foi reprimido após a morte do seu instituidor. Certamente os hebreus, apesar de continuarem a ser politeístas tribais, teriam beneficiado da reforma monoteísta. Entendendo-se haver um deus único criador de tudo o que existe e portanto de cada um dos humanos, todos são necessariamente iguais. Por isso os egípcios seguidores do monoteísmo tenderiam a considerar iguais os outros povos por serem filhos de deus único.

Nessas circunstâncias é admissível o jovem nobre egípcio Moisés, criado na corte, ou ter assumido a liderança dos hebreus na tentativa, que falhou, de resistir ao regresso do Egipto ao politeísmo. Os hebreus tê-lo-ão escolhido como seu chefe para melhor se defenderem de possível agravamento das suas condições sociais e económicas em consequência da abolição da então nova religião monoteísta tendencialmente mais humana e justa. Os hebreus tiveram que atribuir a Moisés origem tribal hebraica para legitimar a assumida liderança deles.

Na impossibilidade de resistir às forças que fizeram regressar ao Egipto o politeísmo, teria Moisés optado por sair do Egipto pelos terrenos pantanosos do nordeste (o que foi figurado no Êxodo como travessia pelo Mar Vermelho com súbita intervenção do deus único mediante afastamento das suas águas durante o tempo indispensável à passagem).

Depois de longa permanência na península do Sinai Moisés terá conduzido até à margem leste do Mar Morto os hebreus que com ele deixaram o Egipto para se instalar no mais fértil território de Canaã. A atribuição da origem do monoteísmo hebraico ao Egipto é também seguida por Freud em “Moisés e o Monoteísmo”.

Da leitura do Êxodo resulta que os hebreus que seguiram Moisés tinham enraizada cultura tribal politeísta, resistindo à aceitação da concepção religiosa de um único deus, que necessariamente supõe que todos os homens (incluindo as mulheres) são por ele criados e consequentemente ontologicamente iguais. Se nenhum outro deus há além de deus, não pode ter escolhido de entre todos os povos apenas os hebreus como seu povo. Os hebreus, porque tinham (e têm) enraizada cultura tribal de diferenciação dos outros povos, embora tivessem aceitado o monoteísmo, serem apenas eles o seu verdadeiro povo. Em consequência a concepção hebraica do monoteísmo tornou-se profundamente contrária à natureza dele, que supõe a não divisão dos homens em tribos, raças, sexo, línguas e culturas por todos serem criaturas (filhos) de deus único. Ainda hoje os judeus, herdeiros do monoteísmo hebraico, mantêm forte cultura de diferenciação com os outros povos, que designam gentios, isto é outra gente.

O politeísmo foi sendo seguido, a par do monoteísmo mas mais fortemente, pelos hebreus até ao fim do chamado reino de Israel, no século 8 antes de Cristo, e ainda depois até ao fim do reino de Judá, que ocorreu no século 6 antes da era actual. Assim o povo hebraico, de cultura tribal, após a saída do Egipto pelo fim da centúria de 1200 antes de Cristo e a posterior fixação na Palestina, manteve ao longo do período de governo por Juízes e depois da agregação das tribos em reino a prática de religiões politeístas em conjunto com a da religião monoteísta trazida do Egipto, como resulta de múltiplas passagens da Bíblia, incluindo em Êxodo, 32, 1-13; Juízes, 2, 11-15 2 17, 1-13; Samuel, 15 – 3; 1Reis, 12 – 28 e 16 – 32,33; e é reconhecido pelo teólogo católico Hans Küng (em Islão, Edições 70, 2010, pág. 665): «O politeísmo em Israel, ainda no período monárquico (século 7 antes de Cristo), estava generalizado». «O monoteísmo restrito, que nega a existência de outros deuses, só existe desde o exílio na Babilónia (no século 6 antes de Cristo)».

• António Bica

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Redação Gazeta da Beira