A. Bica (Baldios)

A INCONSTITUCIOONALIDADE DE ALTERAÇÕES RECENTES À LEI DOS BALDIOS

• António Bica

Em 2 de Setembro de 2014 foi publicada a lei 72/2014 que alterou a lei dos baldios (lei 68/93 de 4/9 anteriormente alterada pela lei 89/97 de 30/7). As normas constitucionais relativas a baldios são:

“Art. 80 da Constituição:

A organização económico-social assenta nos seguintes princípios:

b) Coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social dos meios de produção

f) Protecção do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção.

Art. 82 da Constituição:

1. É garantida coexistência de três sectores dos meios de produção.

4. O sector cooperativo e social compreende especificamente:

b) Os meios de produção comunitários possuídos e geridos por comunidades locais:”

A alteração da lei dos baldios não pode infringir o quadro jurídico constitucional. Uma das principais alterações à lei dos baldios consta da actual redacção do seu art. 1 que é a seguinte (os números alterados vão escritos a itálico):

Artigo 1 – Noções

1. São baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais.

2. Para os efeitos da presente lei, comunidade local é o universo dos compartes.

3. São compartes todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos terrenos baldios ou que aí desenvolvam uma actividade agroflorestal ou silvopastoril.

4. São ainda compartes os menores emancipados que sejam residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos terrenos baldios.

5. Os compartes usufruem os baldios conforme os usos e costumes locais e gerem de forme sustentada, nos termos da lei, os aproveitamentos dos recursos dos respectivos espaços rurais, de acordo com as deliberações tomadas em assembleia de compartes.

6. O baldio segue o regime do património autónomo no que respeita à personalidade judiciária e tributária, respondendo pelas infracções praticadas em matéria de contraordenações nos mesmos termos que as pessoas colectivas irregularmente constituídas, com as devidas adaptações.

A nova redacção do art. 1 da lei dos baldios pelos nº 3, 4, 5 e 6 estende a qualidade de comparte, isto é de pessoa singular com direito comunitário a certo ou certos baldios, a todo o cidadão eleitor inscrito como residente na aldeia ou aldeias correspondentes à comunidade local que tem direito comunitário sobre o baldio, sendo a interpretação desta nova redacção do art. 1 da lei dos baldios a seguinte:

Pela nova redacção da lei dos baldios é titular do direito em propriedade comunal de cada “unidade de baldio” certa comunidade local composta pelas pessoas singulares residentes na povoação ou nas povoações cujos habitantes segundo os usos e costumes a usam, fazem a sua gestão e a possuem. Mas não são todas as pessoas singulares aí residentes que integram para esse efeito a comunidade local. São apenas aquelas que estão inscritas nos cadernos eleitorais como residentes nessa povoação ou povoações e efectivamente nelas residam; ou que, sendo cidadãos eleitores não residentes nelas, aí desenvolverem actividade agroflorestal ou silvopastoril; e ainda os menores emancipados que residam nessa povoação ou povoações.

Poderão integrar também a correspondente comunidade local as pessoas singulares que mantenham com a correspondente comunidade local relação social e económica que a assembleia de compartes considerar relevante por deliberação tomada nos termos da nova redacção do art. 15, nº 1, alínea q) da lei dos baldios (lei 68/93 de 4/9) de acordo com critérios gerais por ela fixados nos termos da mesma alínea. Esta última interpretação é extensiva do disposto na redacção actual da lei, fundamentando-se na sua razoabilidade, tendo em conta haver significativo número de emigrantes que com a comunidade local mantêm relação social e económica relevante e que, em bom número de casos, sempre foram considerados compartes.

A mesa da assembleia dos compartes não pode deixar de organizar relação actualizada dos compartes que integram a correspondente comunidade local por isso ser imprescindível à boa condução dos trabalhos de cada sessão da assembleia.

Para isso há necessidade de procedimentos prévios para se assegurar a organização da relação dos compartes que integram cada comunidade local que nessa qualidade têm direito a integrar a assembleia.

É razoável que a mesa da assembleia de compartes torne público, na povoação ou povoações cujos habitantes segundo os usos e costumes gerem certa “unidade de baldio” como propriedade comunitária, que as pessoas singulares que preencherem condições para integrar a comunidade local, isto é para serem compartes, o requeiram à mesa da assembleia de compartes, porque ela pode não dispor de informação de que resulte com rigor quantas e quais pessoas singulares reúnem condições para serem compartes da unidade de baldio.

Não é razoável fixar prazos para se requerer o reconhecimento da qualidade de comparte, podendo o requerimento ser feito a todo o tempo. E todos os anos deve informar-se a comunidade local desse direito.

O que se propõe na última parte do acima escrito, além de democrático e justo, poderá ser argumento decisivo para o apuramento dos factos relevantes em eventual conflito judicial sobre a legalidade de decisões da assembleia de compartes com fundamento em não ter sido admitida certa pessoa a integrar a assembleia por não constar da lista de compartes organizada pela mesa da assembleia nos termos acima referidos.

Considera-se ser esta a melhor interpretação da redacção actual do art. 1 da lei. Não obstante, entende-se que essa redacção, ao estender a qualidade de comparte, isto é de pessoa singular com direito comunitário a certo ou certos baldios, a todos os cidadãos eleitores inscritos nos cadernos eleitorais como residentes na aldeia ou aldeias correspondentes à comunidade local com direito à propriedade comunitária de certa “unidade de baldio”, infringe a Constituição.

A lei, na redacção introduzida pela lei 72/2014, não respeita a Constituição, indiciando autoria de quem conhece mal o que são baldios, ou quer intencionalmente descaracterizá-los juridicamente e facilitar a sua assimilação a propriedade privada. Por isso atribui o direito comunitário sobre certo baldio a quem, segundo os usos e costumes, nunca integrou a comunidade com direito ao seu uso e fruição, não tendo em conta a razão por que a Constituição os qualifica como meios de produção comunitários. Quem segundo os usos e costumes tem direito comunitário a baldio sempre foram os agricultores da aldeia ou aldeias correspondentes e só eles.

A actual redacção do art. 1, ao conferir direitos sobre os baldios aos cidadãos eleitores da povoação ou povoações da sua situação, é inconstitucional por atribuir direito aos baldios a quem o não pode não ter por, segundo os usos e costumes, não ser agricultor. Se o legislador constitucional atribui o direito comunitário sobre os baldios às comunidades locais quer restringir o direito sobre eles apenas aos agricultores que, segundo os usos e costumes, sempre foram os que têm direito a eles e não alargá-los a outros residentes que nunca tiveram direito ao baldio por não terem actividade agrícola na aldeia ou aldeias de situação do baldio.

Com efeito, como é conhecido, os baldios, segundo os usos e costumes, sempre foram complementares das explorações agrícolas dos vizinhos, pelo que só os que mantêm actividade agrícola na freguesia ou freguesias da sua situação têm direito ao seu uso e fruição.

O Tribunal Constitucional irá ser chamado a pronunciar-se sobre esta e outras inconstitucionalidades da lei  72/2014 por iniciativa de deputados à Assembleia da República. Há que aguardar a sua decisão.Redação Gazeta da Beira