O UNIVERSO DE QUE SOMOS PARTE (25)
Os judeus na Europa medieval
António Bica
Na Península Ibérica os judeus eram numerosos desde a época romana. No domínio árabe prosperaram, porque apoiaram, no ano 711, a invasão muçulmana, captando o seu apoio, e porque, sob o poder árabe, o comércio retomou desenvolvimento perdido em consequência das invasões bárbaras, tendo passado a haver condições para o comércio, dado na generalidade serem urbanos e terem forte tradição comercial. Com a gradual reconquista cristã que se iniciou pouco depois de 711 e se prolongou até 1492 (com a reconquista de Granada), os judeus passaram para o domínio cristão sujeitos aos reis de quem dependiam, lhes prestavam serviços diversos e pagavam impostos, beneficiando em troca da protecção real.
O desenvolvimento urbano medieval, a intensificação das trocas comerciais, o aumento da circulação da moeda, a progressiva substituição dos impostos em espécie por impostos em dinheiro, a prática da arrematação dos impostos, pagando o arrematante ao rei o valor da arrematação e tendo o direito de cobrar para si o imposto arrematado e de executar sumariamente os que não pagassem, criaram condições para o desenvolvimento da população judaica na parte da Península libertada do domínio islâmico.
Por esse tempo a criação de ordens religiosas que se instalaram nas cidades no início do século 13 (os frades dominicanos e os franciscanos), ao contrário das anteriores que se fixavam nas áreas rurais, começou a dar fundamentação religiosa à hostilidade popular por razões económicas contra os judeus. A arrogância judaica com raiz na sua ideia de que são o único povo escolhido por Deus, o que se traduz em normas religiosas, como a que lhes proíbe emprestar dinheiro, cereais ou outros bens semelhantes mediante juros, excepto se o empréstimo for a não judeus, potenciou a hostilidade popular contra os judeus.
Na França, na Itália, na Alemanha e na Inglaterra, essa hostilidade havia levado à expulsão nos séculos 13 e 14, tendo seguido a maior parte deles para leste, para os territórios habitados por polacos, russos e ucranianos, onde desenvolveram língua (o idish) e cultura próprias e a designação “asquenazes”.
Na Península Ibérica os judeus não foram então, nos séculos 13 e 14, expulsos, mas a hostilidade contra eles aumentou muito. No ano de 1391 houve na Península Ibérica, tumultos e perseguições contra os judeus. A pressão para a conversão dos judeus ao cristianismo atiçada pelos frades, sobretudo dominicanos, cresceu. Em consequência número crescente de judeus converteu-se ao cristianismo. Porque alguns dos convertidos continuaram a praticar secretamente o judaísmo, foram desprezados pelos outros cristãos e apelidados de “cristãos novos” e “marranos”, termo que significava “porcos”.
Pelo fim do século 15, em consequência do desenvolvimento do comércio em que os judeus se destacavam, os Reis Católicos e a grande nobreza, porque temeram o desenvolvimento em número e em peso económico da nascente classe burguesa comerciante, que os judeus integravam em número significativo, havendo risco de subversão do poder político e económico da grande nobreza e dos reis assente na posse da terra, como veio a acontecer cerca de trezentos anos depois em toda a Europa, expulsaram em 1492 da Espanha os judeus que se não converteram ao cristianismo. Muitos vieram para Portugal, mas, em 1496, foi também decretada a expulsão de Portugal dos judeus não convertidos por imposição dos reis Católicos de Espanha, embora o rei de Portugal considerasse que não convinha ao país a sua saída. Para fugir à expulsão, muitos declararam-se convertidos, beneficiando de legislação que proibiu durante dezenas de anos se inquirisse sobre a sinceridade da sua declarada conversão e fossem punidos por conversão não sincera. Assim muitos judeus declarados novos cristãos, ou cristãos novos, continuaram a seguir encobertamente as práticas religiosas judaicas. Os judeus perseguidos originários de Península Ibérica, designados “sefarditas”, deslocaram-se então para o império turco em expansão na Europa do sudeste (o território que hoje corresponde à Grécia, à Bulgária, à Roménia, à Jugoslávia e à Hungria) e para a Europa Central, onde a revolução religiosa protestante e o grande desenvolvimento do comércio puseram fim à anterior política contra os judeus, passando a admiti-los, embora controladamente e com fortes restrições de direitos. Assim chegaram muitos judeus da Península Ibérica ao império turco, à Holanda, à Inglaterra, a Veneza, a outras repúblicas italianas e à Alemanha.
Um judeu que viveu de 1450 a 1525, nascido em Málaga, refugiado primeiro em Portugal e depois em Itália, chamado Salomão Verga, escreveu “O Bastão de Judá”, impresso na Turquia em 1554, onde expôs as razões por que, no seu entender, os judeus eram odiados. Considerava que eram orgulhosos, inflexíveis, dominadores, querendo ser senhores e mestres; por isso o povo os odiava.
Muitos dos judeus que se declararam convertidos em Espanha e em Portugal a partir do fim do reinado de D. Manuel primeiro, para evitar ter que abandonar os países ou a perseguição religiosa, continuaram encobertamente as práticas religiosas em que tinham nascido. Os reis, em vez de o tolerar, o que seria a prática politicamente mais inteligente, porque o número de cristãos novos de origem judaica era reduzido em relação à população dos chamados cristãos velhos, levaria certamente à sua progressiva diluição na restante população, decidiram considerar crime punível com morte as práticas que pudessem ser entendidas como judaizantes (não varrer a casa ao sábado, não comer carne de porco e outras). Para perseguição às práticas judaizantes e a todas as infracções à ortodoxia religiosa católica criaram o Tribunal da Inquisição que tinha como método de investigação a tortura até as pessoas se declararem culpadas, fossem-no ou não; quem fosse denunciado, mesmo que secretamente, de práticas ou opiniões consideradas não conformes com a ortodoxia católica era considerado culpado, tendo o dever de confessar a culpa. Os assim acusados eram instados a confessar. Para isso eram barbaramente torturados até confessar. Muitos não resistiam às torturas e confessavam o que tinham e não tinham feito e declaravam-se arrependidos para escapar à morte na fogueira, embora se não livrassem de perder os bens que tivessem e de outros castigos. Os que não se confessavam culpados eram julgados culpados e condenados a morrer queimados em fogueira pública por não confessarem nem se arrependerem.
Para fugir a esta máquina aterrorizante de perseguição, os judeus convertidos ao cristianismo foram fugindo de Portugal e da Espanha para a Turquia, a Holanda, a Itália e a Inglaterra ao longo dos séculos 16, 17 e 18 até quase nada deles ter restado em Portugal e na Espanha.
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Redação Gazeta da Beira
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