M. Guimarães da Rocha (Ed. 687)

PODIA SER UM CONTO DE NATAL

Ed686_Vela-DrGuimaRochaEm finais de Dezembro, o frio gélido, que vinha encanado da serra, acarretado por aquele vento fino, cortava como lâmina de barbear. Naquela rua sem trânsito automóvel, era bem audível o sino da torre da pequena capela, que acabava de bater o meio-dia. Um homem idoso levantou-se da cadeira do seu quarto num pequeno hotel duma vila do Norte de Portugal, fechou o seu computador portátil, vestiu o casaco e pôs sobre os ombros, sem aparente dificuldade, o seu quente e leve “sobretudo de cachemira”. Colgada no braço leva a sua fina e negra bengala encastoada em prata, enquanto aguarda que o elevador o transporte ao rés-do-chão. O jovem recepcionista abriu-lhe a porta e cumprimentou-o com um delicado aceno de bons dias e, antes que se aventurasse na rua onde o frio se fazia sentir fortemente, nessa semana do Natal, apressou-se a ajudá-lo a vestir o sobretudo.

Não sabia porquê, mas simpatizava mesmo com aquele senhor de idade, alto, forte e de barbas brancas, que desde há quatro dias, e sempre àquela hora, saía para a rua.

O recepcionista gostava do seu ar afável, do seu sorriso matinal e daqueles olhos pequenos, que simpaticamente tudo perscrutavam em curiosidade constante de quem tudo quer entender. O comportamento natural daquele hóspede parecia transpirar bondade, dignidade e saber, mas, contidamente, parecia querer esconder algo, que ele desconhecia. Abriu-lhe a porta da rua, acompanhou-o com o seu melhor sorriso e despediu-se, desejando-lhe “um bom almocinho”.- “Espero que o “Zé Quintela” tenha hoje um dos seus pratos preferidos”. Virando vagarosamente para traz o pescoço, o senhor Fernando agradeceu a sua simpatia, e no seu passo seguro, apoiado ligeiramente na bengala, foi descendo a rua, com o vagar que a idade recomendava e o frio impunha.

O senhor de idade que se inscrevera como “Fernando do Vale” continuou sua marcha solitária e minutos depois entrava no restaurante do “Zé Quintela.”

Cumprimentou o empregado, com quem questionou a hipótese de utilizar aquela mesa de canto, relativamente próxima duma das saídas do ar condicionado, que anuiu a este desejo com um largo sorriso. Na verdade começava a ser considerado cliente habitual pois há quatro dias que ali vinha almoçar. Acompanhou-o delicadamente, mobilizando a cadeira, de forma a facilitar a acção de este se acomodar à mesa do restaurante. Tratava-se de uma sala asseada, com decoração indefinida, talvez meia regional, com boas e grandes fotografias a preto e branco, penduradas nas quatro paredes, que lhe conferiam o ar da reprodução histórica da localidade. O ar condicionado tornava agradavelmente quente o ambiente, não obstante as lajes de granito que cobriam o chão.

O senhor Fernando, como se identificara, passeou os olhos por toda a sala e parou brevemente no canto oposto, mirando uma mesa reservada e toda bem-posta, que aguardava a chegada de oito convivas. O funcionário percebeu aquele leve gesto interrogatório e informou-o de que se tratava de uma mesa reservada, para um grupo de amigos que todas as semanas, naquele dia, vinham ali almoçar. “É gente simpática e educada. São tudo advogados e professores que trabalham aqui na Vila, mas só vêm normalmente depois da uma da tarde. E, acto contínuo, estendeu-lhe o cardápio comentando:-“Aqui tem a nossa carta de hoje, senhor Fernando. Pode escolher á vontade, pois é tudo feito na hora, com já deve ter verificado”.

Passou os olhos pela carta e sorriu ao ver como prato do dia arroz de bacalhau à moda de Lafões. Involuntariamente fechou os olhos, respirou e viu a sua a Mãe e a Alice, na velha cozinha da casa, a confeccionarem aquele prato. As postas de bacalhau haviam sido cozidas na véspera, à noite, e estava a ser desfiado e alijado das espinhas. Depois era adicionado àquele arroz de grelos, colhidos pouco tempo antes ali no quintal, e que já estava a ser confeccionado, com a mesma água que no dia anterior tinha cozido o bacalhau.

Perfumes ancestrais inundaram-lhe o ser, e pediu com ar guloso de quem aguarda um manjar, o arroz de bacalhau, uma sopa de nabiças com chouriço e um arroz doce!

O empregado, calmamente, tomou nota do pedido num papel, e apressou-se a informar que a confecção do prato iria demorar cerca de vinte minutos. -Não tenho pressa, ripostou o cliente! E acrescentou:- É capaz de me dizer se há jornais aqui próximo? O funcionário, pressuroso, deu três passos para traz, e trouxe o “jornal diário”, que delicadamente colocou sobre a mesa.

Foi até à cozinha, e o restaurante ficou silenciosamente vazio, mas pleno do calor do ar condicionado, misturado com leves e agradáveis odores das confecções culinárias que estavam em curso. Naquele momento esta odorífera companhia e o silêncio ajudaram-no, no rápido passar de olhos pelo periódico, que a cores e em letras garrafais expunha todas as desgraças do dia anterior.

Progressivamente os fregueses foram entrando e ocupando as mesas do restaurante. O bulício trouxe alegria que ajudava a esconder aquele ar gélido que tudo parecia querer invadir. A sala foi-se progressivamente enchendo de gente, ruido e movimento. Já próximo da uma hora da tarde, começam então a chegar os esperados habituais convivas.

Entretanto, o empregado deu início ao seu pedido trazendo-lhe a sopa, seguida do arroz de bacalhau…só não era o mesmo que sonhara, porque “tinha sessenta anos de espera”! As conversas ruidosas começaram, progressivamente, a expulsar aquele silêncio apetitoso, inundando de vida aquele espaço, onde os fregueses conviviam descontraidamente. Uma agradável sensação de bem-estar inundou-lhe a alma. O senhor Fernando não deixou de notar a falta de um dos oito comensais esperados, naquela mesa do outro canto da sala. Todos os outros conversavam animadamente sobre os seus variados problemas. Mesmo ao lado, um casal de jovens sentava, em cadeira apropriada, o seu rebento de pouco mais de vinte meses, que com um choro mimado, acrescentava mais beleza à vida naquela sala de jantar. A televisão despejava imagens do quotidiano, num chuveiro de notícias, sem que ninguém parasse para escutar ou ver.

Subitamente, abre-se a porta e entram uma senhora ainda jovem, com o filho de três ou quatro anos ao colo, logo seguida do marido…o tal comensal que faltava naquela mesa do canto da sala. Tratava-se do Dr. Henrique, professor local, que com ar preocupado, informou com alguma angústia a razão do seu atraso:-Vínhamos a sair de casa, e sem mais nem menos, o garoto começa a chorar com dores intensas, quando mexia o cotovelo. Não caiu nem deu nenhuma pancada e o cotovelo não está inchado, mas tem dores que o impedem de mexer. Já fomos ao posto médico, já fez radiografia e felizmente parece que não é nada de grave, mas o gaiato queixa-se, cheio de dores, quando se lhe toca. O médico descansou-nos, e já lhe demos um medicamento para as dores.-“ Vamos ver o que se vai passar disse-nos o médico, mas eu confesso que não estou descansado”. O bulício regressou àquela sala, perante o relato do acontecido com a criança.

A tentativa de lhe dar algo para comer, era interrompida por um leve grito de dor… era uma inquietação surda naquela mesa ainda há pouco palco de toda a alegria de vida, que transparecia dum convívio de amigos.

O “Senhor Fernando” que assistia a tudo com curiosidade, ficou a olhar com preocupação aquela criança com dores, toda encolhida, choramingando, e bem aconchegada no colo da mãe, hesitando em tomar uma atitude de intervenção no sentido de resolver uma questão que lhe parecia, tecnicamente, de fácil solução.

Olhava para a situação, deixando transparecer alguma interrogativa inquietação, que não foi bem recebida pelo pai da criança. Quase que tomou uma atitude agressiva quando a mãe, sem querer, mexeu no cotovelo de seu filho e este deu de novo um grito. Olhou para o senhor Fernando e viu o ar de reprovação que transparecia nos olhos daquele velho que preocupadamente assistia a tudo que se passava. Houve no ar uma atitude agressiva.

O “Senhor Fernando” não desistiu perante aquele olhar paternal reprovador, e levantando-se, e sem dizer palavra, com grande serenidade dirigiu-se à mãe e pediu-lhe que colocasse a criança virada para ele. Como por encanto, fez-se um silêncio total! Serenamente passou a mão no lindo cabelo louro da criança, acalmando-a e, dizendo que lhe ia mexer no braço mas que não iria doer nada! O Pai estava estupefacto, sem saber que dizer, pois o filho deixou de gritar e ficou calmo. Com todo o cuidado sentou-se numa cadeira de frente para a criança fixou o braço e o antebraço, mobilizando-o com todo o vagar. Todos olhavam para o que se estava a passar com grande espectativa.

De repente a mão do “senhor Fernando” desliza para o cotovelo e roda o antebraço e, em menos de um segundo, a criança dá um grito ligeiro e aquieta-se no colo da mãe, sem qualquer queixa dolorosa. O Pai nervoso e confuso com o que viu, pergunta curioso: – Então meu filho, já não te dói?! O homem idoso, acrescentou:- Já não vai doer mais!

A mãe experimentou mobilizar o cotovelo e verificou que efectivamente, a criança já não tinha qualquer queixa…o Pai olhava estupefacto para o sucedido, a criança sorriu para aquele homem que lhe havia tirado as dores!

A calma regressara aquele lugar e todos ficaram mimando a criança sorridente e contente, que já mobilizava o cotovelo sem qualquer dor.

Poucos minutos depois o pai da criança com alegria contida, olhou para a mesa onde estava sentado, de novo, o “senhor Fernando” e dirigindo-se-lhe, agradeceu muito toda a sua intervenção tão eficaz.

Este, delicadamente, levantou-se, estendeu-lhe a mão amiga e comentou:- Se aqui há alguém que tem que estar grato, acredite que sou eu, pois não imagina a felicidade que me invade por, com esta idade, ainda sentir que posso ser útil a alguém…essa foi sempre a melhor compensação que a minha profissão me trouxe.

Um abraço fraterno e um convite, quase imposição, para se sentar na mesma mesa com todos os seus amigos, encheram aquele velho de alegria de viver.

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Redação Gazeta da Beira