Um conto de vez em quando (4)

Um conto de vez em quando 31/07/2014 (Ed. 659)

O QUARTO PARTICULAR

Após provas rigorosíssimas o Manuel Francisco, tinha entrado para a Instituição médica mais famosa do Sul do País – HOSPITAIS CIVIS DE LISBOA. Foi um trabalho exaustivo de mais de seis meses de preparação, em colaboração com mais dez colegas, para vencer aquele obstáculo que conduzia a uma preparação teórico-prática que se dizia ser de primeiríssima água. Todos os pretendentes a concurso, neste grupo hospitalar, procuravam fazer grupos de dez para mais facilmente poderem vencer as dificuldades destes exames de admissão. Este número de colegas associados, era a consequência lógica da estrutura da prova: “dez pontos gerais de Medicina, dez pontos gerais de cirurgia, publicados vinte dias antes dos exames teóricos, dos quais eram sorteados dois, um de medicina e outro de cirurgia, no mesmo dia de realização das provas. Quem vencesse esta barreira seguia para as provas práticas individuais com observação de doentes, na presença do Júri, e só então ficava apto a entrar para o internato dos Hospitais Civis de lisboa! Eram provas que se prolongavam por mais de um mês, onde no final, dos trezentos concorrentes iniciais sobravam trinta ou quarenta que preenchiam os lugares postos a concurso.

Foi um esforço tremendo que a todos mostrou quão pobre e teórica tinha sido a nossa preparação Universitária. Mas valeu a pena… agora, por direito próprio, iria conviver no dia-a-dia com os “monstros sagrados” do conhecimento médico nacional. Só tinha que estar feliz, apesar de saber que a gratificação mensal era de… seiscentos escudos, quando ele pagava só de renda de casa mil cento e dez!. Não era ordenado, mas sim GRATIFICAÇÃO, que ressalvava a consciência, dos governantes, emagrecia o bolso dos internos e os obrigava a trabalhar nas CAIXAS DE PREVIDÊNCIA, a um preço de saldo, depois das seis horas de trabalho Hospitalar diário. Os gastos com a saúde eram tão exíguos, que não se chegavam a ter peso no Orçamento Geral do Estado e eram governados por uma Secretaria de Estado dependente do Ministério do Interior!

Mas enfim, eram as regras dum jogo, que era forçado a jogar se se queria progredir no conhecimento e na carreira médica da capital do Império! “Esmifravam” o jovem médico, com potencial capacidade e ânsia de conhecimento na miragem duma futura preparação clínica, a que se seguiam exames cada vez mais complexos por cada degrau da carreira.

E lá ia vivendo, com o esforço do dia-a-dia aprendendo realmente clínica, com o conhecimento e experiencia dos mais velhos, sentindo no “pelo” as atitudes preferências para certos nomes sonantes, tradicionais ou políticos, mas vendo nos exames as hipóteses vagas de poder atingir o topo da carreira. Aqui sim, teoricamente todos seriam iguais, pensava ele.

E de tal forma eram as preocupações diárias que, pouco a pouco se iam acumulando no Sistema, que, muitas vezes, não deixavam tempo para olhar para tudo e toda a realidade que o envolvia.

A ausência de condições logísticas começava na urgência e continuava em todos os hospitais, onde as “enfermarias de quarenta e cinquenta camas” eram quási a norma vigente.

As paredes não viam tinta há décadas, e só os velhos e mui belos azulejos oitocentistas, alegravam o triste ambiente em que se vivia. A revolta que todos sentiam e expressavam a medo, parecia unir os médicos e os doentes, eles sim, verdadeiras vítimas de toda a situação.

Em alguns casos as condições de trabalho e as instalações, eram muito degradantes, o que obrigava a um esforço constante para impedir a sua destruição total, recorrendo os médicos a relatórios e a um protesto surdo denunciante, misturado com humor negro revisteiro.

Os buracos do soalho eram preenchidos com placas de aço aparafusadas ao chão por habilidoso carpinteiro, funcionário dos Hospitais. As enfermarias tinham o chão de madeira, da idade dos conventos, agora transformados em hospitais, e pareciam ao entrar, uma manta de retalhos com buracos escondidos sob a fantasiosa reparação urgentemente atamancada. Aqueles pedaços de aço, distribuídos por toda a enfermaria pretendiam talvez esconder a miséria das antiquadas instalações, deixando à mostra a incompetência de gestão. Era uma miséria inexplicável que sistema repressivo impedia de denunciar.

O Hospital de São José tinha “nascido” do terremoto de 1755, por necessidade urgente de albergar os doentes, dado que o Hospital de todos os Santos, mandado erigir, no local onde hoje é a praça da Figueira, por D. João II, como apoio fundamental à Epopeia das Descobertas, tinha ficado completamente destruído.

Tudo aconteceu por ordem do Marquês de Pombal, que com uma ordenação urgente transformou, o convento de Santo Antão, O Novo, em Hospital de São José, em honra do rei D. José I!

Mas era nas Urgências, no denominado, Banco, onde todos semanalmente se encontravam em equipa, que as hierarquias profissionais eram mais suavizadas, o ensino era mais Hipocrático e directo procurando responder às imensas necessidades de Lisboa e de toda a população ao sul do Tejo.

Era aqui que o respeito profissional e as amizades entre colegas mais se consolidavam e, o conhecimento teórico e prático, se caldeavam duma forma indestrutível.

O dia-a-dia nas enfermarias, obrigava a um trabalho metódico perante o doente, com supervisão do Assistente e a colaboração do Graduado ao qual tinha ficado agregado. O dia da reunião semanal do “Serviço” era sagrado, pois aqui se discutiam os casos clínicos internados, a apresentação teórica dum tema, culminando com uma visita geral, feita com solenidade processional, por todos os médicos e enfermeiros chefes do Serviço.

As capas de burel castanho-escuro, que os Assistentes e Directores usavam no inverno, seguidos das batas brancas dos outros médicos e enfermeiras, conferia aquela visita o ar solene de procissão religiosa, talvez inquisitorial da Idade Média, e possivelmente seria instintivamente entendida como tal, por todos os doentes internados.

Era no final desta visita que quase sempre se tomavam as grandes decisões clínicas e se estabelecia, duma maneira formal, o programa semanal, só interrompido pelas urgências que diariamente apareciam.

Este era o programa de formação base do médico interno, agregado semanalmente ao “Banco” (nome dado ao local das urgências) onde ocorriam todos os casos urgentes de praticamente todo o Sul do País e às cirurgias diárias no bloco operatório. Dessa equipa de urgência, um médico quase sempre no início do internato, ficava durante 24 horas com a tarefa de ocorrer às chamadas de todos os outros sete hospitais do Grupo, o que, teoricamente acrescentaria e consolidaria os seus conhecimentos.

Estando um dia, destacado para essas urgências, no Hospital de São José, o Manuel Francisco é chamado pelo Serviço de Ortopedia.

Informaram-no que era um Serviço que ficava no último andar do convento-hospital, ao qual se tinha acesso pelas escadarias e por dois grupos de elevadores duplos situados em extremos opostos do hospital. Nunca tinha ido aquele Serviço e aquela patologia não lhe era totalmente familiar.

Os grandes elevadores monta-cargas, mais antigos não funcionavam e há meses que estavam parados no último andar. O Manuel José teve que recorrer aos “modernos” ascensores situados do lado oposto.

Entrou na Enfermaria altivo, municiado de toda aquela insegurança, que um novo interno hospitalar sempre procura esconder.

Era um sótão medonho adaptado a enfermaria, que devia albergar mais de cinquenta doentes, dispostos irregularmente, o que dava ao conjunto um ar Dantesco de campo de concentração, onde todos, emudecidos, pareciam gritar por socorro.

A pictural imagem do Inferno não devia estar muito longe daquilo que os seus olhos viam!

No lusco-fusco daquele fim de tarde de inverno, descobriu, ao fundo uma enfermeira que, fazia um penso.

Em voz alta cumprimentou a enfermeira, que sem levantar os olhos do que estava a fazer, chamou a empregada e ordenou em voz alta… Esmeralda leva este Sr. Doutor ao DOENTE DO QUARTO PARTICULAR.

Ficou estupefacto?! Um quarto particular no meio daquela Dantesca e medonha confusão de doentes?!

Conteve-se e seguiu a simpática Esmeralda que o conduziu pelo corredor de acesso aos elevadores avariados.

Eram velhíssimos monta-cargas, muito espaçosos, com as portas abertas e fixadas com complicada engenhoca em ferro com muitos parafusos (não fosse o diabo tece-las) albergando cada uma no seu interior uma cama de ferro pintada de branco, com um paciente muito queixoso exibindo um ar de terror!

De imediato, a Esmeralda, com um sorriso sarcástico, levantou a mão direita e apontando para o interior dos bem aparafusados elevadores informa: – Pronto Sr. Doutor, aqui tem o seu doente do QUARTO PARTICULAR.

Lisboa 31 de Outubro de 2008

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Redação Gazeta da Beira