M. Guimarães da Rocha (Ed. 667)

A guerra no K3

A guerra no K3

O paquete Niassa ainda estava ali, mesmo ao lado do “cais do Pidjiguiti”, envolvido pelo calor e inundado pela humidade equatorial de Bissau, sem poder atracar, impossibilitado pela amplitude das marés que andava à volta dos sete metros. Os soldados recém-chegados, palpavam pela primeira vez na vida, a transição brusca de clima, pois ainda há menos de uma semana sentiam em Lisboa o prazer de uma camisola de lã a aconchegar-lhes o peito. Tinham desembarcado havia vinte e quatro horas apenas e, o cais de chegada enchia-os de saudade da Rocha de Conde de Óbidos, de onde tinham partido há poucos dias. O calor, alavancado numa humidade que se colava ao corpo, ficava insuportável e o suor corria ao longo da região dorsal e lombar, mesmo após o duche frio da manhã.

Os trabalhadores negros pareciam verdadeiras estátuas de ébano, sob o sol sempre coado por nuvens densas, ameaçadoras de chuva iminente. Olhavam os soldados recém-chegados, com um ar, aparentemente, misto de interrogação e curiosidade. Tudo no ambiente era pesado e a disposição psíquica dos militares estava mais densa que chumbo. Mal diziam a força da lei que ali os colocava em defesa do torrão pátrio, que desconheciam.

As camaratas, feitas num improviso urgente nos armazéns do cais, de incomensurável pé alto, repletas de mosquitos escondidos nas suas entranhas, metia medo e nojo, sensação altamente potenciada, quando nos abeirávamos das mal-amanhadas e improvisadas instalações sanitárias.

O trauma daquela descarga de pistola-metralhadora F.B.P. (Fábrica de Braço de Prata. Pistola-Metralhadora de fabrico português), que no dia da chegada, ao cair das mãos dum soldado, causara três feridos graves, deixara prostrado todo o batalhão, com a certeza que a guerra aí estava e ia ser bem dura.

Apesar de todo aquele improviso, a “rotina de quartel” continuava imutável, desde o subir ao arrear da bandeira e, espantosamente parecia que todos entendiam que nada devia mudar, interiorizando inconscientemente a imutabilidade dos símbolos e o respeito pelas fardas que envergavam. De repente parecia que tudo o que até então lhes parecia ridículo, tomava sentido quase ancestral aos seus próprios olhos!

De manhã, depois do pequeno-almoço e, ao cair da tarde, era ver os soldados em grupos, passeando pela cidade, numa descoberta curiosa da envolvência instalada. Descoberta de curiosidade controlada, que os levava desde o cais à casa Gouveia, (sucursal da CUF), passando pela “fortaleza de São José da Amura”, cujo início de construção remonta ao ano de 1696, e que apenas foi concluída em 1766, já no reinado de D. José I. Conheceram e bisbilhotaram a Bissau Antiga, onde viram a casa “Pintosinho” e outras lojas de produtos orientais, com as suas novidades elétricas japonesas, as novas máquinas fotográficas e os novos gravadores de som. Subiram a Avenida Principal, até ao Palácio do Governo e, os mais ousados bisbilhotavam mais longe, um bairro novo de vivendas rodeadas por jardins tropicais, antecedido pela estátua de Honório Barreto, homenagem ao nativo, militar e famoso Governador da  colónia nos meados do século XIX. Muitos compravam fruta na Praça da cidade e espreitavam o pequeno estádio de futebol, que ficava quase ao lado.

Era, na verdade, uma pequena cidade, onde as raras habitações que tinham mais de três pisos, “simulavam arranha-céus”, exalavam um ar provinciano com algum tropical encanto. No Domingo muitos foram assistir ao futebol no estádio do UDIB, que ficava próximo do mercado da cidade, enquanto outros, logo pela manhã, foram assistir á missa na Catedral. No dia imediato houve alguma animação, com o toque de chamada para o “Pré”, já convertido em dinheiro local. Nessa tarde, o médico da Companhia o Capitão, e mais três alferes milicianos, foram beber uma cerveja ao “Bento”, a única esplanada do centro da Cidade. Em acordo psíquico inexistente, educadamente procuravam não discutir a situação, mas o “Pré” foi motivo de conversa. Chegaram rapidamente á conclusões que recebiam menos do que os outros camaradas que haviam sido colocados nas outras “Províncias Ultramarinas”. E porquê? Parece que remontava ao tempo das descobertas que os salários seriam mais elevados quanto maior o afastamento de Lisboa, e, desde então nada tinha sido alterado?! “ Agora entendo porque só ganho cinco contos de reis!”, comentou o médico.

As conversas foram-se desenrolando até que o Capitão, em tom confidencial, os informou que, à noite, depois de jantar, no Quartel-general, iriam ter uma reunião secreta…frisando bem que a reunião era mesmo secreta!

Que será que eles agora querem (?), pensava o médico, que em conversa com um dos alferes, concluíra que aquela guerra era totalmente original. Todos os beligerantes, eram civis enquadrados por profissionais, preparados ou na Escola Militar de Lisboa, ou noutras “Escolas Revolucionárias Comunistas de Moscovo”! Na verdade, a companhia onde vinham integrados, só tinha um capitão e quatro sargentos profissionais, todo o resto vinha do campo, das fábricas, oficinas e das Universidades! Era um exército verdadeiramente popular, porque vinha do povo e, impopular porque não tinha ideologia para criar voluntariamente autênticas forças armadas! Não tinha convicções para o combate, não sentia o ódio nas razões do inimigo. Só as iria adquirir quando tivessem mortes e feridos graves, por ligações de sangue e amizade. Eram a barreira reactiva e não activa, por ausência de difusão e aceitação convicta da ideologia democrática, contrária às teorias comunizantes do inimigo.

Foi uma reunião onde se delineou em pormenor, todo o movimento do Batalhão na operação militar que iria começar às seis horas da manhã do dia seguinte.

Efetivamente, pelas cinco da manhã, tudo estava preparado para a partida, com todo o material militar, resquício da segunda guerra mundial, incluindo abarracamentos e cozinhas. A nossa missão era de reforço a outro batalhão que já estava no terreno há dezoito meses. Partiram mais de trezentos homens, sentados em viaturas militares, costas com costas, quer nos “Hunimogs”, quer nas G.M.C., cujo chão fora “reforçado” com sacos cheios de areia, ali colocados no intuito teórico, de minimizar o possível efeito do rebentamento das minas. Nas G.M.C. da frente e de traz tinham sido colocadas “torres de fogo” executadas em madeira também envolvidas por sacos de areia, bem aconchegados com cordas, que dariam proteção ao operador das metralhadoras “Breda” ali colocadas. Era uma improvisação bem engenhosa, concebida por militares, mas a proteção era no mínimo duvidosa e, a sua eficácia em serviço iria ser, pela primeira vez, testada!

E com toda esta improvisação, deviam partir para a “guerra”, para reocupar o quilómetro 3 (K3), num cruzamento de estradas, mesmo em frente a Farim. Iam procurar surpreender (!) o inimigo, que de forma nenhuma devia suspeitar da chegada dum contingente militar! Além das espingardas metralhadores G3 distribuída a cada soldado, havia também metralhadoras pesadas colocadas á frente e atrás daquela “coluna militar”. Cada pelotão dispunha ainda na sua dotação, de quatro morteiros e bazucas anticarro (!) além de muitas granadas de mão. Todos iam abonados de ração de combate!

Pelas seis da manhã, mais minuto menos minuto, lá partiram, atravessando Bissau em direção á estrada do aeroporto e a Mansoa. A estrada era alcatroada com alguns buracos que as chuvas provocaram e que terra com brita disfarçou. Todos em silêncio religioso, abraçando a espingarda, aconchegando as granadas ao cinturão, em concentração total, pareciam mentalmente fazer preces ao Divino. Passaram pelo moderno hospital militar e o aeroporto começava já a morrer no horizonte.

João Landim não passava dum acumulado de casas indígenas circulares, feitas de barro seco e cobertas de capim, tendo a estrada como a sua rua principal. Toda a população, principalmente os mais novos, não paravam de dizer adeus á medida que passava a coluna militar.

Não tinham ainda passado quarenta quilómetros quando a frota sofreu um brusco abrandamento de velocidade…acabara o alcatrão e começava a terra batida, isto, quando ainda faltavam dois quilómetros para chegar ao centro de Mansoa, primeira etapa da viagem!

Entraram nessa pequena Vila, de casas térreas e a “frota de guerra” ocupou todo o lado direito da via que atravessava o povoado. Fizeram uma pequena paragem e os soldados saciaram a sede. A marcha prosseguiu em direção a Mansabá, que devia ficar a cerca de vinte quilómetros.

É um instante, pensou o médico do batalhão, não sonhando sequer o que o esperava. O Major deu ordem de marcha e a coluna arrancou vagarosa e calmamente, a passo de procissão. O calor batia já naqueles crânios, cobertos com capacete de aço transformando-os em fornos de cozinha. O suor preenchia todo o corpo e rapidamente todos ficaram encharcados. A poeira de barro vermelho começou a fixar-se nas camisas e, a lentidão da marcha começou a tornar-se insuportável. De repente dum lado e do outro das camionetas apareceram dois soldados! (que afinal eram sargentos sem divisas), informando que não se podia andar mais de pressa pois era preciso “picar a estrada” na busca de minas escondidas. Ia ser doravante uma constante naquela estrada em Macadame, transformando aquela curta viagem até Mansabá, num enorme pesadelo e sacrifício de intermináveis horas! Já a tarde ia longa quando chegaram, tendo sido recebidos por uma população estupefacta! Os soldados locais aquartelados e quase entrincheirados, receberam os camaradas com simpáticas boas vindas. Havia soldados brancos e pretos vivendo em comum, isolados numa guerra ideológica de guerrilha, possuindo as mesmas armas, dormindo nas mesmas casernas, comendo nos mesmos improvisados refeitórios, sofrendo os mesmos receios e angústias. Acomodaram-se com muitos problemas logísticos, quer para as viaturas, quer para o pessoal. A boa vontade de colaborar supriu o previsível. A tarde começava a cair e rapidamente tocou para o rancho do jantar, ainda com muitos em situação imponderável de local para pernoitar. Os mosquitos e quejandos, guiados pelos odores do ácido láctico e do C02, exalados por todos, iniciaram os ataques aos corpos dos combatentes, não distinguindo patentes. A noite caiu, o silêncio começou a instalar-se progressivamente, o cansaço venceu. Aos primeiros raios da aurora, todos recomeçaram de novo a instalar-se nas viaturas, que, antes das cinco, já estavam em movimento, repondo integralmente a fila do dia anterior. Faltavam pouco mais de vinte quilómetros para atingir o objetivo – o K3. A estrada tornou-se algo sinuosa e, nas curvas fechadas, rajadas de metralhadora pesada, varriam o ambiente à direita e à esquerda, num ruido guerreiro de anunciação de pânico de proximidade. Em marcha arreliadoramente lenta, tudo foi avançando com os “picadores de estrada” encabeçando o avanço da coluna motorizada. As descargas de metralhadora pesada antecediam agora todas as curvas mais ou menos fechadas. O ambiente adensava-se com o correr da manhã e o aproximar do objetivo. Sem dizer palavra todos estavam tensos e cheiravam o aproximar do combate. Devemos estar a menos de dois quilómetros do K3, informava o major do Quartel General sentado na camionete       “G. M. C.”, ao lado do médico e,  lendo a dobrada carta topográfica. Seguia-se uma curva fechada e depois pouco mais de um quilómetro chegariam ao cruzamento de estradas. Olhando para o relógio informa;-já passa das duas…e, acto continuo, inicia-se um tiroteio imenso, de variadas armas, vindo não se sabia de onde. O ruido ensurdecedor das granadas e das “bazucadas”, mais intenso na frente e no meio da coluna, forçou um salto imediato daqueles que puderam, para as profundas bermas da estrada, que podiam fornecer alguma proteção. Em reação instantânea toda a coluna despejou metralha para a mata, onde o capim alto impedia qualquer visualização além de um metro. Os oficiais e sargentos, só com muita dificuldade conseguiram controlar o fogo de reação das G3, que despejavam munições como água de banho, e das granadas ofensivas que estoiravam em uníssono, num barulho capaz de fazer encolher um Santo do Altar. De seguida tudo começou a acalmar, os tiros pareciam mais compassados e localizados. O rádio chamou com urgência o médico, para a frente da coluna. Acompanhado pelo enfermeiro e pelos cabos auxiliares, rastejando todos como ratos, a equipa médica deslocou-se, ainda debaixo de fogo, ouvindo assobiar as balas sobre as suas cabeças. Minutos depois o silêncio começou e entremear com o tiroteio e as metralhadoras pesadas que se impunham àquele ruido gordo, intenso e assustador. Houve ordem de cessar-fogo e o silêncio, só era cortado ao longe, pelas queixas dos feridos e vozes do pessoal da assistência médica. Tudo foi acalmando em silêncio pungente. Passados menos de uma hora viaturas e soldados vindos de Farim, que ficava a três quilómetros, alertados pelo ruído, vieram em auxílio transportando feridos e mortos para a cidade, que ficava do outro lado do rio. O médico regressou ao seu posto de origem. O capitão ansioso procurava novidades. “Dois mortos a quatro feridos, um dos quais era o sargento da metralhadora pesada.” Tudo ficou em silêncio absoluto. O Capitão sentado na estrada, olhou o médico com ar exausto e revoltado e, nada conseguiu dizer. Como cenário dum primeiro dia de “guerra “era aterrador!

“Mata-se, morre-se, fica-se incapacitado… é a estimulante filosofia da guerra”!!

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Redação Gazeta da Beira