M. Guimarães da Rocha (Ed. 658)

Um conto de vez em quando (2)

Um conto de vez em quando 17/07/2014 (Ed. 658)

A IDA ÀS “SORTES”

Ed658_GRochaPelos fins dos anos quarenta do século vinte, o País vivia em paz mas, o cumprimento do serviço militar era obrigatório. Era considerado por alguns com uma atitude correta e de utilidade, pois dava a oportunidade aos analfabetos de “tirar a quarta classe” e a muitos outros fornecia a ocasião de aprender uma nova profissão. Todavia a grande maioria entendia esta prática como uma insegurança e um pesadelo insuportável.

Tentava-se fugir à tropa ou através de imaginária doença incapacitante, ou recorrendo à tradicional influência de um padrinho, de preferência, bem entrosado na “União Nacional”.

O Arnaldo, não fugiu à regra. Antes das “sortes”, a mãe lá o levou para a camioneta, que duas vezes por dia ligava a sua casa a uma aldeia próxima, onde vivia o tal senhor doutor, “muito importante na Capital,…em Lisboa”! Parece que era deputado e algo mais, pois quando por vezes vinha à terra, era sempre transportado em grande carro, com um motorista.

O Arnaldo bem protestou, mas de nada valeu, pois sua mãe já o via a ser mobilizado para uma futura guerra que nem de longe nem de perto se antevia no horizonte.

Entraram na camioneta, a mãe, o Arnaldo e o cesto encarnado das merendas da Senhora da Guia e da Santa Eufémia. Só faltava o garrafão de cinco litros, que nessas romarias era, à época, ferramenta indispensável.

Durante a viagem, sua mãe foi metendo conversa com os poucos viajantes, quase sempre versando temas que permitiam auferir da capacidade de influência da personagem alvo da visita. Com a intenção de mais uma vez a demover, da inutilidade daquela deslocação, arriscou-se a perguntar se o tal Senhor Doutor sabia da sua existência.

Ia caindo o Carmo, a Trindade e o São Bartolomeu que lhe haviam ensinado ser o defensor dos medrosos… – “Então eu arriscava-me a ir fazer este pedido sem primeiro ter marcado a visita? Com quem julgas que vamos falar? Este é um dos Grandes lá de Lisboa e é o mais importante cá do Distrito… ouviste? Como é que eu me atrevia a vir sem primeiro ter marcado com as pessoas lá de casa deles?.. Estás maluco… isto é gente importante, não pode ser lá de qualquer maneira!..E tu vê lá se ficas humilde e te deixas dessas ideias esquisitas que te metem na cabeça. Tudo isto é para teu bem… ficas livre da tropa e pronto. Deixo de ter mais preocupações com a tua vida futura”.

Teve que a acalmar como pôde, não sem antes ter que ouvir, em voz baixa, a informação de que para chegar ali já tinha passado por todos os importantes da terra, incluindo o principal político local.

Na verdade, verdadinha, devia dizer, que não era do seu agrado fazer serviço militar, que só servia para lhe atrasar a vida toda, mas custava-lhe muito ter que ser sujeito àquela humilhação. Tinham-lhe ensinado na escola que o serviço militar era obrigatório, porque era a nossa dádiva à Pátria e nos preparava para a defender, quando tal fosse necessário… e ele acreditava naquilo!

Só mais tarde é que descobriu que aquela estória do Deus, Pátria e Família estava mais inquinada que fossa séptica municipal.

 

E o diabo da camioneta parava em todos os lugares para levar ou deixar pessoas e nunca mais lá chegava. Aqueles quinze quilómetros pareciam não ter fim e nem mesmo a maravilhosa paisagem envolvente servia para o distrair.

Sentia um nó na garganta, misto de vergonha antecipada da figura triste, que previa ir fazer perante aquele “Senhor Doutor” que parece que era do Governo, mesmo muito importante e que vivia em Lisboa. Sentia-se apertado, mesmo uma opressão no peito e, um pressentimento de que algo de inesperado ia suceder.

Finalmente, ainda não eram dez horas, chegaram ao largo central da aldeia, e a camioneta parou e, toda ufana, fez duas apitadelas anunciadoras da sua presença.Com eles desceram também mais alguns outros viajantes.

A praça estava rodeada de casas apalaçadas bonitas e imponentes, com figuras decorativas de belo efeito junto ao telhado, que o Arnaldo ficou com a sensação de que nos primeiros anos do século vinte, devia ter saído muitas vezes a lotaria do Natal às pessoas daquele lugar.

Eram casas enormes com amplas escadarias de acesso, primorosamente trabalhadas em ferro forjado de rara beleza, com palmeiras imponentes sonhadoras de ambiente tropical distante, todas envolvidas por vinhas e rodeadas de jardins floridos primorosamente arranjados.

Só anos mais tarde lendo Camilo e outros autores portugueses, lhe veio à memória aquele seu deslumbramento perante uma “Aldeia de Brasileiros”, tão perto de sua casa e que, naquele tempo desconhecia na totalidade.

Pelo contrário, sua mãe sabia o caminho de cor, pois nem parou para se orientar e estugou logo o passo na direcção correcta da casa do tal Senhor Doutor. Ele atrás, carregando o cesto vermelho das merendas das romarias, seguia-a cabisbaixo, qual condenado a caminho do cadafalso.

Não demoraram cinco minutos a chegar à porta principal doutra linda moradia apalaçada, rodeada de artístico gradeamento em ferro forjado e latão polido. Era uma casa enorme pintada em rosa velho com largo portão de ferro de mais de três metros de altura, que na empena direita tinha uma máscara de leão em cobre bem polido que, de boca aberta, deixava sair a pequena cadeia de latão da sineta de chamada.

Impunha respeito, e mostrava bem como estavam perante o verdadeiro “Poder”. A sua mãe tinha toda a razão, pensava ele… mas incomodar o “Senhor Doutor” com o seu inoportuno problema, não tinha pés nem cabeça. Ali dentro devia morar mesmo a verdadeira “força do Mando”. Cada vez mais lhe parecia no mínimo desrespeitoso, forçar o senhor Doutor a preocupar-se com o seu pequeno problema.

Já ia contrariado e perante aquele cenário sentia-se mesmo um pigmeu impertinente ousado e, acima de tudo desrespeitador.

Sentia-se fortemente envergonhado e ficou tão encolhido, que tinha a sensação de ter diminuído de tamanho. Só lhe apetecia fugir sem saber para onde. Instintivamente encostou-se bem agarrado, à empena do portão, pousando atrás de si o cesto, e suando por todos os poros, teve um arrepio quando o portão se abriu repentinamente.

Uma criada aparentando ter mais de cinquenta anos, bem nutridos, trajando avental de luminosa brancura, falou com sua mãe como quem diz um segredo e, fechou o portão de imediato. Por mais que indagasse só ficou a saber que tinham que esperar… e os minutos voavam, as horas passavam e ele desesperava de pavor e também algum apetite.

O calor de fim de Primavera começava a apertar. As estátuas brilhando do cimo do telhado, pareciam espiá-lo, como almirantes em comando de frota. Finalmente o sino da igreja em badaladas sonoras bateu o meio-dia e, foi só então que sua mãe ganhou coragem e, ousou de novo puxar a sineta.

Assim que o portão se abriu ele, que já estava do outro lado da rua resguardado do sol, correu com cesto na mão para junto de sua mãe.

Desta vez a criada nem falou. Baixou-se, tirou-lhe o cesto da mão e toda empertigada ordenou: – “façam favor de esperar um pouco, que eu já volto”.

E assim aconteceu, pois quase de imediato o enorme portão voltou a abrir-se e a mesma criada entregou-lhe o cesto das merendas, agora vazio, dizendo então em voz alta: –

– Já podem ir embora descansados: – “o senhor doutor vai tratar do vosso caso”.

Sua mãe ainda tentou dizer qualquer coisa mais, mas o portão fechou-se de imediato e, pouco tempo depois regressou a casa, na mesma camioneta em que haviam chegado.

Os dias passaram e um mês depois foi às “sortes” e ficou livre do serviço militar… por excesso de contingente!

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Redação Gazeta da Beira