A ESPONTÂNEA REVOLUÇÃO FEMININA

Crónica 26/09/2013 (Ed. 639)

A ESPONTÂNEA REVOLUÇÃO FEMININA

Estávamos no fim da 2ª guerra, com uma economia débil, já sem os recursos com que o volfrâmio salpicava o comércio local,esperando inconscientemente mudanças radicais.

Nos dias festivos, as procissões locais eram espectaculares, com os homens desfilando vestidos com as opas de varias cores, símbolo das respectivas irmandades, que há muito tinham perdido a função social que as originou durante a Idade Média. Os andores enfeitados de flores, precediam o Pálio, transportado pelos senhores da terra, dando cobertura simbólica à” Custódia Sagrada” que o pároco exibia,a todos distribuindo a sua protecção divina.

Ainda me recordo de ver desfilar o pelotão dos legionários nestes dias festivos. Aparentavam velhos soldados, vestidos de verde, com barrigas salientes, evidenciando a sua falta de lubrificação articular, por impreparação ginástica em pessoas que já tinham ultrapassado há muito os quarenta.

Englobados no meio desta paz podre, com economia quase medieval, era este o panorama social estático e imutável da linda e caprichosa vila de São Pedro do Sul, praticamente sobreponível ao de todas as outras localidades em quase todo o País.

Quem ousasse fugir deste esquema “era do contra “. Tinha que ter meios de subsistência, profissão liberal, ou então, conspirava em surdina dando apoio, pouco explícito, aos que pensavam de forma diferente e que tinham na Pide um “apoio” e vigilância constante.

Aos domingos ia-se à missa, trocavam-se opiniões ocasionais no adro da igreja assim se descia, em direcção à Vila, à Ponte, à Negrosa, ou ao Café do Edgard, onde a estratificação social,sem se aperceber porquê tomava assento, duma forma real constante e em aparente unanimidade,por todos aceite.

O senhor Edgard proprietário do café, distinto artista fotográfico, de estatura mediana, contido nas palavras, vestindo com gosto, atendendo todos com igual simpatia, impondo respeito sem nunca levantar a voz,deixando pelo café um senso de boa educação e profundo conhecimento da organização do negócio, motivo pelo qual era respeitado por todos os fregueses. Era casado com a Dona Lídia e tinha dois filhos, meus bons amigos, a NINÁ, infelizmente já falecida, e o ZÉZÉ, conhecido engenheiro e gestor, a viver em Iisboa. Era uma família muito simpática, talvez das mais conhecidas na Vila,dado que viviam por cima do café, ponto de reunião de todos os Sampedrenses.

Os dois funcionários,o Zeca e o António,eram duma eficiênciél total,fixando antecipadamente os hábitos diários dos principais fregueses,a todos servindo com imensa simpatia profissional. O Zeca era um homem inteligente, possuidor dum senso de humor invejável,gelando muitos com pontaria cirúrgica nas observações oportunas e bem medidas que por vezes tinha que proferir.

Era uma delícia observar, com olhos de ver, a realidade social estratificada por acentos e mesas separados por um degrau arquitectónico, ou escondidos por uma porta, dum local um pouco menos cuidado,a que” surrealisticamente”,todos chamavam de escondidinho.

Havia um lugar que era praticamente cativo do Marquês de Reriz, que, abaixo do degrau, no seu canto inferior direito, observava, escrevia e desenhava, a todos cumprimentando com igualdade senhorial.

Raramente participava com todo o arraial, trocando opiniões somente com pessoas por quem tinha consideração,nem sempre coincidentes com os estratos sociais aceites pela maioria.

Logo à entrada ficavam as forças vivas da terra. Os Doutores, os notáveis bancários, (nesses tempos só existia a Caixa Geral de Depósitos e representantes locais de bancos, normalmente associados aos bons comerciantes locais), outros comerciantes, funcionários da Camara Municipal, Tribunal, Solicitadores, Grémio da Lavoura, professores primários e um ou outro abastado agricultor, ou tido como tal, depois dos negócios do volfrâmio e construção, alguns representantes da hotelaria termal e outros prestigiados residentes nas aldeias envolventes.

Ao domingo o afável João engraxador, não tinha mãos a medir,deslocando-se com o apoio de muletas,status pós de pólio grave contraída em criança.

Aí se jogava Xadrez, Damas e ao Poker de Dados, quási sempre pela tarde, em disputa duns cafés ou cervejas que se iam bebendo para matar o tempo. As discussões resumiam-se ao desporto, dado que a modalidade política, na altura, podia ser altamente lesiva. Embora se conhecessem bem, todos desconfiavam de todos, sendo a acalmia das observações político­ religiosas muito evidente.

E o desporto local era bem escalpelizado sendo frequente as discussões sobre os erros de pontaria nos remates á baliza do Viriato e os frangos, ou as defesas impossíveis do “KeperHungria” ao drible fácil e elegante do Avelino ou do Charlot.

Já às segunda feiras a bola nacional vinha ao de cima com discussões entre Benfiquistas, Sportinguistas, Portistas, ou fervorosos adeptos do Belenenses informadas pelo Primeiro de Janeiro e Jornal de Noticias do Porto e pelo Diário de Noticias e Bola, que vinha de Lisboa e chegava pelo meio-dia trazidos pelo saudoso Vale do Vouga.

No Verão era o ciclismo o rei das discussões diárias, também com as mesmas camisolas clubistas do futebol. Mas as discussões aqui eram comedidas e as vozes pouco se altercavam no calor da discussão.

Já nos lugares abaixo do tal degrau arquitectónico, as discussões eram por vezes mais exacerbadas,mantendo-se, no entanto,sempre o respeito ao dono da casa o aos doutores da parte de cima do degrau, principalmente quando estavam senhoras, o que só passou a ser mais frequente pelo início dos anos cinquenta.

Nesse local, mais democrático, jogava-se mais o poker de dados e o dominó, entre todas as classes sociais. Recordo-me, dum jogo de dominó entre quatro parceiros, onde um deles, entusiasmado,conhecedor dos truques que todos os jogos parecem ter,olhando para as suas pedras, frustrado disse dois ou três palavrões impróprios para o local, que o colega logo reprendeu:- é pá cala-te. Não digas “palavras obscenas”! Imediatamente o parceiro, totalmente embebido no jogo,expôs brusca e ruidosamente as suas peças de dominó,dizendo em voz alta com ar triunfante e mais feliz deste mundo:- Pronto tens o ” doble de cenas” não vale a pena continuar porque já ganhámos!

Era aqui o poiso habitual dos mais jovens, estudantes ou não, misturados com os artesãos locais,portadores dum saber ancestral que se viria a perder,onde se queimava o tempo,entre um café, ou um copo de cerveja e uma discussão fútil de solução difícil por vezes bem acalorada.

Já nas mesas distribuídas na sala do “escondidinho” o povo era rei. Recordo-me dum jogo tipo bilhar, com buracos,ali colocado e que penso se chamava Negus (‘) e que nunca mais vi em parte alguma.

Mas estas distribuições estáticas, com evolução de anos, onde os senhores da terra, pelas tardes de Verão, bebiam vinho branco fresco, em chávenas de chá, para não dar nas vistas, sofreu pelos anos cinquenta, uma revolução total chefiada pelas mulheres, esposas dos senhores mais estimáveis da localidade. Foi o” Grito do lpiranga” local feito pelas mulheres! Não sei como,mas progressiva e espontaneamente as senhoras mais respeitáveis,começaram a frequentar com toda a regularidade o café, alterando o status vigente. Não se pode considerar um movimento de emancipação mas foi espontâneo, progressivo e espantosamente acarinhado por todos os homens. Sempre vi neste movimento a influência local do turismo, acompanhado duma visão mais autêntica das senhoras, aparentemente lideradas pela dona Conceição Bandeira, com quem todas as senhoras da terra colaboraram abertamente, transformando o ambiente do café numa alegria perfumada, com a total anuência e colaboração dos seus proprietários.

Visto à distância estas minhas observações parecem ridículas, mas acreditem os mais novos, que foi uma alteração verdadeira e que contrastava com o que se vivia na cidade vizinha, onde ultrapassar os portões do Horta era uma ousadia. O café Edgard, passou a ser o local de encontro de todos os jovens, ponto de partida para as incursões nos piqueniques de Verão e nos bailaricos termais.

Tudo passou a ser mais autêntico,real e espantosamente mais respeitador das personalidades e mentalidades vigentes.