M. Guimarães da Rocha (Ed. 676)

AMIGOS VELHOS E NOVOS (1ª parte)

AMIGOS VELHOS E NOVOS

Uma vez por semana almoçavam naquele hotel novo, que lutando pela sobrevivência, fazia “uns preços de estourar”. Para ninguém aquela crise estava a ser boa e, o dia-a-dia era difícil de roer para aqueles dois, mais idosos, que sorridentemente a enfrentavam, com a sabedoria de quem já muito tinha visto, sofrido e resolvido.

No final da refeição lá partiam para o aconchego do seu prestigiado café, onde uma vez por semana caturravam as diferenças que sempre os aproximaram. A política ficava ausente, diziam eles, mas se havia coisa que estava sempre presente era a política que impregnava todas as suas opiniões. Já haviam passado por tudo durante as suas longas vidas.

A segunda Guerra Mundial queimara-lhes o começo da juventude e, a política do Estado Novo que já tinha nascido quando eles acordaram para o Mundo, marcou-os com uma repressão que muito o acaso uniu.

O Afonso bem sabia que o Joaquim militara no Partido Comunista e, sentiu bem a hora da sua aderência á causa. Desde que o destino os colocara no Porto, na Universidade, naqueles quartos alugados á Dona Mafalda, gostava de discutir com ele as afirmações e contradições do Marxismo/Leninismo. Começou a sentir que ele começou a fugir á discussão, como o diabo da cruz e com aquela convicção de quem já pensa que sobre Marxismo nada mais havia para discutir, mas sim ter forças para o implementar. Ele bem continuava a provoca-lo, mas o Joaquim passou a fugir aos assuntos, com a certeza íntima, de quem já aceitou a verdade irrefutável e indiscutível, com que Estaline impregnou toda a teoria. Tomava aquela atitude de destino trágico como que, aceitando sem um sorriso, o sacrifício de futuro salvador da humanidade desigual e inconsciente.

Um dia sem avisar deixou-lhe escrito um bilhete em que dizia:- “eu vou sair por uns dias mas volto rapidamente”. Estranhou, mas ficou sem qualquer dúvida quando o pai dele telefonou, pois pretendia falar-lhe sobre a saúde da mãe!

Reapareceu cautelosamente quase um mês depois, sem dar explicações, ou por outra, dando explicações estupidas e desnecessárias, já que ninguém lhe tinha perguntado nada.

Naquela conversa balofa de fim de tarde, puxou do cachimbo e começou a fumar, com uma intensidade nervosa que não enganava. Afonso, sentado na secretária deixou-o puxar umas cachimbadas sem nada dizer, mantendo um ar sério até ele acalmar daquele esforço para esconder alguma excitabilidade. Enquanto ele sorvia o conforto da nicotina do tabaco, Afonso, á queima-roupa atirou:- Telefonou o teu pai por causa da saúde da tua Mãe.

Em cheio!- E não deixou dito mais nada?

-Não;- responde o Afonso. Só pediu para lhe telefonares. Só isso. Eu disse que te dava o recado, mas já passaram muitos dias.

Não faz mal;- vou- lhe telefonar ainda hoje, disse o Joaquim.

Fez-se um silêncio cúmplice de quem sabe bem o que está a suceder e tenta prever o futuro próximo

-Acho melhor telefonar primeiro para um familiar. Diz o Afonso.

– Porquê? Pergunta o Joaquim com falsa ingenuidade.

Tu deves saber bem porquê, não é? Não corras riscos que eles podem aparecer quando menos esperares.

-Vamos jantar antes que seja tarde. Sem dizerem qualquer palavra lá foram para a tasca do Figueiroa, onde o Artur os recebeu com a habitual prontidão.

No dia seguinte informou o Afonso que a mãe já tinha recuperado e estava tudo normalizado.

Continuou até ao fim do ano lectivo a fingir que estudava, quando a sua missão era já outra e o Afonso bem sabia qual era.

Um dia deixou, na caixa do correio um bilhete escrito em letra apressada:-Tenho que me ausentar, por razões urgentes. Obrigado por tudo e até ao próximo ano lectivo. Felicidades.

Partiu deixando todas as contas saldadas, e alguns poucos livros de Economia dispersos. A polícia política “visitou” a dona Mafalda, que de nada sabia e, vasculhou todos os quartos da habitação, sem nada encontrar. Nunca mais apareceu durante anos.

O tempo seguiu a sua marcha inexorável, a Guerra colonial do século vinte beliscou toda uma geração, o Salazar caiu da cadeira e o “vinte cinco de Abril” surgiu como uma surpresa, somente para aqueles tontos que acreditavam na imutabilidade do sistema!

O Afonso pensava que o iria rever de imediato, mas só teve notícias dele no mês de Agosto, como qualquer imigrante. Recorreu á lista telefónica para o contactar e fê-lo sem aquele ar de euforia, com que os seus correligionários aspergiam as ruas de Lisboa.

Soube então a sua estória, com passagem por Paris e Argélia e novo regresso a Paris, onde se libertou muito dificilmente das amarras políticas, começando a estudar e trabalhar.

Epopeia hoje ridícula, demonstrativa da espessura da ideologia e da dureza da realidade, com perseguições, traições e tudo mais que um filme policial contém!

O Afonso, pensou que o Joaquim vinha para ficar, aproveitando todos os sacrifícios que fizera em prol de coisa nenhuma, mas os seus ex-correligionários não lho permitiriam nunca. “Eu sou um elemento incómodo para eles e para muitos outros, pois sei demais!” Dizia-lhe o Joaquim com toda a descrição.

Vou voltar para Paris e para o meu trabalho, onde ganho razoavelmente e estou a caminhar para a reforma. Aos sessenta e seis anos reformo-me e venho viver para Lisboa. Não acredito dizia-lhe o Afonso. Vai ser difícil a readaptação. Pensa bem.

Regressou em 2006 com a Rose, sua mulher Francesa. Comprou um T4 nos arredores de Lisboa, onde se instalou, após arranjo de decoração de interiores, no apartamento que tinha adquirido. O filho e a filha, já casados, ficaram em Paris e viriam passar as férias ou quando entendessem, pois tinha quartos para todos.

A Rose, foi-se adaptando com toda a boa vontade e num esforço notável procurou enquadramento com amigos e conhecidos. No começo tudo era novidade e o apoio que lhe dava a Adelaide duas vezes por semana, era mais que suficiente.

O problema começou a ser a falta de conhecimentos, que o Joaquim, com sua vida errante não tinha adquirido, como seria natural se vivesse aqui durante aquelas trinta e cinco anos.

O Afonso convidava-o para jantares em sua casa, apresentava-lhe amigos, mas o “clique” não se deu com a maior parte das pessoas. Bem se esforçava, mas na realidade já não era Português, mas sim Francês e tinha regressado a uma terra que não era já a que ele deixara!

A Rose, mais prática e habituada a lidar com os seus alunos nos arredores de Paris, foi-se entrosando com as pessoas que moravam na sua zona de influência. Já conhecia bem o homem do talho, a florista e o dono da pequena mercearia junto á sua habitação. Começava a entrosar-se, mas faltava-lhe o domínio do Português. Inscreveu-se num curso particular e rapidamente começou a dominar o idioma coloquial. Numa reunião na Embaixada de França, conheceu a responsável pela difusão da língua e daí a começar a dar aulas de Francês foi um salto. Os conhecidos no ensino aumentaram a sua área de influencia duma forma constante e ao fim de um ano já disfrutava de conhecimentos a todo o nível.

A política democrática em Portugal começa a consolidar-se pensava o Joaquim com os seus botões, mas no seu movimento tinha muitos espaços vazios, nas suas vinte e quatro horas que os livros e vídeos não preenchiam bem na globalidade. Numa das reuniões da comunidade Francesa, conheceu um jornalista correspondente local de jornais franceses, que o convidou para fazer alguns artigos sobre política e economia portuguesa. De bom grado aceitou sem pensar sequer nos proventos que daí adviriam. A princípio foi um artigo quinzenal, para um jornal, depois um artigo político económico semanal, para outro jornal e agora apreciam mais hipóteses de trabalho.

Viera para passar uma velhice descansada, mas exceptuando, o almoço e as conversas com o Afonso á quintas-feiras começava a estar com o espaço preenchido. As coisas tinham-se ajeitado e a vinda dos seus filhos e netos em Agosto, foi um prazer total. Foram até ao Algarve e depois á sua terra ao Alentejo. Aí viu como os seus amigos de infância se dividiam em discussões políticas estéreis e, no café, os poucos comunistas recentes “olhavam-no de lado”. Tinham sentido o cheiro do poder e continuavam a rastejar junto aos seus novos senhores esperando migalhas, não se libertaram! Pensou ele.

Os seus Pais já tinham falecido e, os irmãos que tinham acompanhado a sua evolução política  e pessoal, e já o tinham visitado em Paris, receberam-no amorosamente.

Tudo parecia correr pelo melhor, quando, sem esperar tem um dos seus habituais ataques de tosse, mas desta vez acompanhados de sangue bem visível. Tomou o xarope antitússico e repousou na cama. No dia imediato foi ao médico, fez montanhas de exames e Radiografias e Ressonância Magnética. O diagnóstico era o esperado e o médico sentenciou:- Intervenção cirúrgica, quimioterapia e possível radioterapia.

Ficou abalado, pensou e, na semana seguinte voltou ao médico e perguntou _Quanto tempo tenho de vida, se não for operado? (continua no próximo número)

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Redação Gazeta da Beira