A CÂMARA MUNICIPAL

M. Guimarães da Rocha

646_p06_RegressoImag-CamaraRevejo a imagem da Câmara Municipal retida pelos meus sentidos, ao subir os degraus que separam o Jardim da rua Serpa Pinto aí pelos meus dezoito anos.

Lá estava ela imponente, transpirando uma segurança calma, mas efectiva, dentro dum equilíbrio arquitectónico que transmite a falsa ideia de um edifício estudado para uma sede do poder local. As janelas de granito apagavam-se perante uma varanda de arquitectura dominante, que se sobrepunha a uma entrada drasticamente autoritária, para quem buscava o apoio fraterno sob a asa do poder. Sentia-se perfeitamente o enxerto arquitectónico, feito sob o apoio tutelar do antigo convento, que talvez tenha perdido o seu ar piedoso e ganho a imponência autoritária da chefia.

Naquele bloco, onde o granito é rei, presente-se a tentativa que se buscou na segurança da pedra, que a mesma transmite ao sair do aconchego do branco da cal das paredes, para demarcar as enormes janelas e a varanda que parecem feitas para os grandes momentos da comunidade, como se fossem um sinete em lacre de real documento.

Classificar o seu estilo arquitectónico, não me é fácil dado o meu pueril conhecimento desta ciência, mas leio alguns especialistas que afirmam ser uma construção “Barroca de cariz Franciscano” (no convento e no claustro) estando as restantes fachadas a denunciar um cariz neoclássico. (Dr. Nazaré de Oliveira, Alexandre Alves, e outros).

Nas minhas memórias, este edifício conservou a mesma impressão positiva, duma vivência pessoal intensa durante cerca de um ano e um aspecto profundamente negativo, ligado ao incêndio de 1967,com o falecimento do meu amigo Manuel Farreca, muito estimado por todos.

Sinto ainda hoje o mesmo “friozinho que nos invade o ser”, quando a responsabilidade se aproxima e nos pode alterar a vida, ao lembrar a minha entrada na repartição de Justiça local sob a orientação do Sr José Barros. Era um homem, trabalhador, estudioso e respeitado por quem fui muito bem recebido.

Mas apesar de tudo, seria uma potencial nova vida que iria encetar e da qual, desconhecia totalmente os seus conteúdos e meandros.

Mal eu imaginava que este “friozinho”, que foi uma “brincadeira” deste primeiro “pseudo-exame profissional”, se viria a repetir  durante toda uma vida de responsabilidade que acabei por trilhar.

“Neste momento difícil da vida nacional”( onde é que eu já ouvi isto?), sem qualquer pretensiosismo ou intensão política, talvez seja conveniente, recordar aos mais novos, o “futuro” que esperava todos os que acabavam a quarta classe ou o quinto ano do liceu, sem possibilidades de “dar o pulo” para fora da Vila, pelas mais variadas razões.

Feito o quinto ano liceal, no Colégio São Tomás de Aquino, para continuar na senda do conhecimento, era obrigatório recorrer ao liceu ou a um colégio, sempre longe de São Pedro. Sabemos hoje que muitos, por razões monetárias ou outras, não podiam frequentar o colégio local, e aos mais ousados, só restava um “Emprego Público” ou privado. Ambos eram de difícil acesso, pois o movimento financeiro era diminuto. O Comércio seria o mais procurado, pois o parque industrial resumia-se a algumas fábricas de madeiras, à hidroeléctrica, moagem de farinhas, e pouco mais. Duma forma simplista esta situação explicava a vivência local de minifúndio, tendo sempre como miragem o recurso à emigração!

Na tentativa de entrar na função pública, começava-se logo após a quarta classe ou depois do quinto ano liceal. Recorria-se às repartições oficiais, quási todas dispersas dentro do edifício Camarário, a fim de fazer a preparação para o próximo concurso oficial.

Este espaço da vida, sendo uma “situação transitória de favor”, permitia constatar o brilho inteligente de alguns, que posteriormente explodia, através de esforço pessoal noutros locais, por onde ficavam colocados. Fazendo este percurso temos diversos conterrâneos que tiveram a coragem e capacidade de fazer depois, cursos superiores brilhantes, escrever livros que profissionalmente ainda hoje são citados, ou atingirem o cume das suas profissões, tendo sempre como base o trabalho e a honestidade. Para todos eles vai o meu profundo respeito e admiração.

Entrei nesta “Repartição de Justiça”, chefiada pelo Sr. José Barros onde o trabalho estava organizado em duas Secções:- A 1ª Secção sob a chefia do Dr. POÇAS de Figueiredo e a 2ª Secção sob o comando do Dr. Almeida RAPOSO Pocinha. O Sr. José Costa natural de Joazim, Vila Maior, trabalhava com o Dr. Raposo e o Sr. José Ribeiro de Abreu, de Pouves, trabalhava com o Dr. Poças. Posteriormente foram substituídos pelo Sr. Adolfo Barbosa (Termas) e pelo Sr. Licínio de Oliveira da Vila. O Sr. Manuel Barros Rolo, de Cotães, trabalhava directamente, com o Sr. José Barros chefe da Repartição.

Os “Oficiais de Diligencias” eram o Sr. João Lima e Sr. António Nazaré de Oliveira (maestro da Banda Filarmónica Harmonia de S. Pedro do Sul).

Aqui entrava-se às 9 horas e trabalhava-se até terminar o serviço do dia, que teoricamente era às 5 da tarde, mas podia prolongar-se até às 8 ou mais, em casos excepcionais. A filosofia subjacente, era não deixar trabalho acumulado para o dia seguinte. Era quase um ponto de honra para todos. Parece que este pensamento não é o actualmente seguido em todo o País, não sei porquê, ou talvez adivinhe.

Pensava eu, como possivelmente, a maior parte dos meus conterrâneos, que aqui tudo era feito em silencio, de cara fechada pensando somente no trabalho, sem poder emitir qualquer parecer menos ortodoxo. Nada disso. Aqui todos eram responsáveis e responsabilizados pelos seus superiores hierárquicos, mas o ambiente de trabalho era agradável, ou não trabalhasse aqui o Dr. Poças de Figueiredo. Era uma nova “Escola de Ensino Profissional“, com professores bem preparados e vencedores em concursos Nacionais, onde se aprendia e faziam amizades para a vida.

O Dr. Poças além de Chefe de Secção do Tribunal era também Presidente da Câmara, sem remuneração, como era uso nesse tempo. Dominava a palavra e a escrita como espadachim domina o florete.

Ao Tribunal de São Pedro vinham quase todos os advogados das comarcas vizinhas. O Dr. João Tavares, homem culto, (Sacerdote e Advogado) tinha um leve defeito na voz, pelo que era conhecido como o “Dr. Fanhoso” de Travanca (Pinheiro de Lafões)

Bom exemplo da franca camaradagem que se vivia nestas épocas era o jantar de Natal  que o Dr. João Tavares oferecia aos funcionários do Tribunal, da Conservatória e do Notariado. Ele nunca estava presente, deixando as tarefas  de escolha do menu e do respectivo pagamento da sua execução, ao Dr. Poças. Nesse ano o jantar foi no restaurante do Salazar, localizado ao fundo das escadas do Convento, e do menu constava, entre outros pratos, arroz à Valenciana. Consomado o repasto, o repentista poeta, Dr. Poças, enviou a conta ao anfitrião ausente acompanhada dos seguintes versos:-

Bom doutor João Tavares

Bem sabe que os Salazares

São de espírito financeiro!

Por isso aí vai a conta

Que não é de grande monta

E mande p`ra cá o dinheiro!

 

Salsichas do Izidoro

Todos dizem eu adoro

E que bem fazem ao peito!

Com mostarda e salada

A boa rapaziada

Ficou toda de “pa.”feito!…

 

Sobre esta e outras facetas do saudoso Dr. Abel Poças, bem como de outras vivências e pessoas que passaram pela nossa vida, iremos tratar no próximo número.