M. Guimarães da Rocha (Ed.653)

S. Bartolomeu da Ponte

Crónica 24/04/2014 (Ed. 653)
• M. Guimarães da Rocha (mguimaraesrocha@hotmail.com)

O São Bartolomeu da Ponte

Ed653_BrPonteAo deixar a “casa do ensaio da música” e atravessando o portão da quinta do “chão do mosteiro”, deparávamo-nos com o “Bairro da Ponte “. O casario começava logo, mal acabava a ponte do rio Sul e calmamente espalhava-se no monte como mancha de tinta em mata-borrão. Bem agarrado à ponte e plasmado nas faldas do monte sobranceiro, parecia aconchegar-se à terra, protegendo-se dos ventos do São Macário que a fustigavam no inverno. A Ponte do rio Sul era o elo que a ligava e simultaneamente a separava da Vila, saltando sobre aquele pequeno rio que, por vezes, em muitos aspectos da vida local se parecia transformar em oceano. Polvilhada de habitantes, onde a juventude e a esperança eram reis, palpitava em ideias e rivalidades, mas também de actos festivos, de acordo com a beleza da paisagem e o pulsar da natureza, vivificada pela abundancia em água que por todos os lados a rodeava. No inverno encolhia-se no aconchego da lareira, mas mal despertava a primavera, a alegria do canto envolvia todos desde os passarinhos aos humanos, em explosão esperada durante os meses de frio.

Era um prazer para os olhos ver aquele presépio humano quando se parava junto ao portão da quinta. Não era a Natureza que era madrasta, mas antes heranças sociais, que procuravam coarctar toda a explosão natural dos tempos em constante mudança, que muitos se recusavam a admitir.

Mas o Povo mantendo a tradição, inconscientemente sentia a sua força na mobilidade humana, que ia desde as feiras às romarias anuais. Aí “os da Ponte” estavam sempre presentes, quer compartilhando a audição musical quer no jogo do pau, “brincadeira” perigosa que exigia destreza e muita coragem e inconsciência.

Nesta “arte” o Custódio “Bicho” era rei! Ajudante de camionista, mal via a briga, gritava para o Viana:-“Pára Viana que quero dar a minha cacetadinha”… veio São Félix e as coisas correram mal!!… ainda não tinha acabado de sair da camioneta, despreocupado e com pressa de entrar na briga, levou logo uma cacetada. Surpreso e encolhido pela dor, subiu com dificuldade para o veículo enquanto exclamava.-“Vamos embora Viana, que já cá levo a minha pancadinha”!

Havia como que uma interpenetração da natureza com a realidade, buscando sempre a faixa escapatória que as unia.

Quem não se recorda das Festas de Primavera e Verão?

Da Senhora da Guia no alto do monte, onde as rivalidades locais convergiam em misto de amizade e conflito. Era vê-los subir o monte acompanhando a estrada romana, com os seus farnéis e varapaus, em alegria pagã comungando com a tradição religiosa.

Da Santa Eufémia, mais próxima da Vila, a fé era afagada pelo sabor do cabrito assado ou da galinha acerejada que preenchiam os bons recheados farnéis!

O Santo Amaro mais para o lado das Termas, a devoção cumpria o seu rito também de braço dado com a música e um bom suporte alimentar. Afora este dia festivo o Santo era relegado para o esquecimento, aconchegado na sua modesta capela.

E muitas outras festas das quais lembro o São Macário, que era o ponto de união com os concelhos limítrofes, Castro Daire e Arouca. Retenho a imagem das procissões sobre o escalvado das serras que vistas de longe, pareciam carreiros de formigas de várias cores, dependentes da irmandade que as apoiava. Era uma beleza espectacular, onde as montanhas reduziam o homem á verdadeira dimensão da sua real natureza.

À medida que vou descendo na estrada, hoje avenida, antevejo claramente a ponte, a minha casa, a Pensão Rio Sul, com o Nelson, a Laura e a Isabel, ao lado do pai Madanelo e da mãe Armanda, olhando o ambiente festivo do São Bartolomeu. Relembro o 23/24 de Agosto e adivinho, as aplicações festivas com lâmpadas de várias cores que se estendiam até ao alto da feira. O dia havia começado com a habitual salva de foguetes pela manhã, bem cedo.

A passagem para o lenteiro do rio estava emoldurada por um desses “festões festivaleiros nortenhos”, de vivas cores, bem iluminada, dando abrigo a uma porta com bilheteiras, que controlavam as entradas para a festa que se iria desenrolar no lenteiro do rio, onde pontificavam as filarmónicas e posteriormente as orquestras, debitavam música popular, proporcionando os mais variados bailaricos. O caldo verde com chouriço saltava nas barracas, acompanhado do prego, da bifana e do queijarão do vinho de Lafões, saciando todos os fregueses. A noite atingia o seu auge pela meia-noite, com a exibição do fogo aquático, do senhor Manuel de Figueiredo de Nespereira Alta, sempre aguardado com grande espectativa.

Normalmente havia mais um coreto para as “Bandas Filarmónicas”, na ladeira próximo da casa do Dr. Alberto Dias. Era um local muito popular, onde a “feira da erva “era mais visível. Era assim chamada pela predominância dos  vendedores de sementes que enfileiravam  lado a lado com os comerciantes de melões e melancias.

Durante o dia os foguetes estalavam no ar e a músicas divertiam e animavam a festividade tradicional que se cumpria.

Mas quem “movia”, realmente, a população a participar nestas folias, eram as necessidades de diversão, ao tempo demasiado controladas pelos poderes públicos, mas que, nada podiam fazer contra uma tradição arreigada em São Pedro do Sul e concelhos limítrofes, e muito menos contra as hormonas que incomodavam os mais novos!

Recordo com saudade, o sabor das melancias e melões de casca de carvalho á venda em todo o arraial. Ouço ainda a música da aldeia de Pascoal, que durante toda a noite, aquecida pelo vinho e pelo entusiasmo transbordante da população, que não parava de dançar em seu redor, dizia no final, já de madrugada:- “Tocar melhor pode haver… mas quem toque mais e mais alto não há!”

Para quem tenha dúvidas da sua popularidade transbordante, escute a abalizada voz do Dr. Nazaré de Oliveira, conhecido professor e historiador, que a 30/10/91, na “Tribuna de Lafões” nos transmitia o conteúdo do quinzenário regional “Povo da Beira” de 1927, onde eram descritas Garraiadas processadas a quando das festas de São Bartolomeu.

Contava ele o que constava do “Cartaz das Festas”:

– “Empresa: Dr. Barros, Casimiro e Lima”.

“Cavaleiros:- filhos do distinto cavaleiro tauromáquico José Casimiro, com brilhantes triunfos em “praças hespanholas”, farpeando também a cavalo, os filhos do empresário Sr. Pereira de Lima”.

“Lide a pé:-destemidos amadores desta Vila, coadjuvados por artista de renome”.

“Forcados:- capitaneados pelo José Resadeiro”.

As corridas foram abrilhantadas pela “Banda dos Bombeiros Voluntários” de São Pedro do Sul.

“ Local da Garraiada:-Largo da Cerca” (mais ou menos onde hoje se situa a vivenda do falecido Sr. Serafim Branco).

Eram tudo famílias locais conhecidas:-O Dr. Manuel Barros (de Pouves), os Casimiros e a família Pereira de Lima (da Ponte). Corridas realizadas “no domingo dia 21 e terça-feira dia 23” (1927) “tendo agradado geralmente pelas cenas hilariantes e picarescas que é costume darem-se e como realmente se deram”. Parece que na primeira corrida os cavaleiros Joaquim e Fernando Pereira de Lima, por falta de colaboração dos animais, pouco puderam fazer, mas já na segunda corrida Fernando Pereira de Lima, brilhou “metendo alguns ferros com arte, recebendo ovação estrondosa e delirante”.

O Dr. Manoel de Barros escolheu a capricho o gado da sua ganadaria, que permitiu a César Cardoso,  amador apaixonado, fazer a “sorte da cadeira” e a Joaquim Leite) -o Aviador-  “mostrar a sua destreza e valentia”. Atuaram ainda o Avelino Gracindo e o “Pedrinho”. A direção da corrida, foi de António Ribeiro “Ribeirinho”, (que se encontrava nas Termas em tratamento)… E tudo isto já se passava há 87 anos!!!

Depois até ao início dos anos cinquenta, tanto as festas do “São Bértolo”, como “A Feira da Erva”, talvez com o apoio da “mão escondida do volfrâmio”, mantiveram a dignidade esperada, vindo o seu brilho a decair paulatinamente com o andar dos tempos e o aparecimento das novas tecnologias de difusão sonora. No entanto, com maior ou menor esplendor e brilho as festas de São Bartolomeu, sempre se realizaram todos os anos.

Como serão este ano?! As pessoas, apesar da crise, ainda saberão divertir-se com a vida, e resistir ao chamamento comodista do sofá e da televisão?

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Redação Gazeta da Beira