“O JARDIM” (São Pedro do Sul nos anos cinquenta do século xx)

Crónica 12/12/2013 (Ed. 644)
• M. Guimarães da Rocha (mguimaraesrocha@hotmail.com)

Ed644_JardimSalazarÉ sob o sol aconchegador da Primavera, que me vejo a entrar no Jardim da Vila, considerado à época verdadeira sala de visitas local. O movimento automóvel era pequeno, os habitantes preparavam- se para o almoço e todo o espaço era inundado pelo som de música que o comerciante Abel Morgado, fornecia gratuitamente a todos que por ali passavam, aproveitando para, de vez em quando, afinar a aparelhagem sonora:- ”-FU-FU-FU- Experiências da aparelhagem sonora”. Olhando para o actual edifício da Câmara Municipal, revejo o passado e Imagino o que o Sr. Abel Morgado, com a sua simpatia, não ganharia hoje, a alugar aquele ou outro actualizado amplificador sonoro, nos comícios políticos e nas festarolas que no Verão inundam todo o País.

Era uma sensação agradável que nos enchia a alma ao penetrar naqueles “dois hectares de civilização”. Um jardim onde as árvores eram rainhas, em canteiros de contornos apagados, com algumas flores mais ou menos dispersas, que derramavam um agradável odor sobre quem se sentava nos seus bancos, distribuídos quási anarquicamente, como que buscando a sombra das árvores, que com o seu porte, pareciam querer esconder o edifício da Câmara Municipal.

Relembro ainda em construção o edifício dos Bombeiros Voluntários, que não acrescentando ao local qualquer beleza, trouxe, no entanto, aos habitantes locais mais conforto e segurança. Ainda lá está hoje, imponente, pleno de “carros de apoio aos Bombeiros”, sempre prontos a ajudar a população, seja qual for o sacrifício exigido. Lembro a alegria do António Guimarães, e do Dr. Pinho Bandeira aquando da sua inauguração e recordo muitos Comandantes e Bombeiros da época. Quanto esforço, dedicação e suor não alberga aquele edifício, que provocou indirectamente, um movimento ascensional nos “Bombeiros Novos”, e, em toda a população, fez brilhar os louros da dignidade de ser Sampedrense. Foram muitos e distintos os comandantes operacionais, mas talvez devido á proximidade e estima pessoal, quero recordar na pessoa do meu amigo João Simões, o brio, o esforço, o altruísmo e a dignidade de todos os outros. Como natural de São Pedro, não posso deixar de expressar a minha gratidão e admiração pelo que fizeram e fazem no dia-a-dia para bem de todos:- OBRIGADO.

“Pegado, pegadinho”, ficava a” Tipografia Lafões”, no rés do chão da casa do Sr. Álvaro Duarte. Fazia-se ali o jornal – a Tribuna de Lafões, à época, os meus olhos brilhavam de espanto, com a destreza da colocação das letras para a composição do jornal, feita por todos os tipógrafos, sob a batuta do Maestro Álvaro Duarte. E praticamente não davam erros, como hoje eu dou, num português maltratado com que vos escrevo! (Tinham estudado como eu, na Universidade da Negrosa!)

Tive que pedir ajuda para avivar a minha memória, sobre aqueles que anonimamente trabalharam muito, em prole da história e da literatura de Lafões. Os mais antigos foram O Sr. Adolfo, que era natural de Vila Maior, tinha sido carteiro, e seu filho Álvaro Correia dos Santos. Depois veio um grupo do qual me recordo relativamente bem. Eram, o Américo Martins, da Ponte, que após o regresso da emigração, comprou a Gráfica, o Orlando Vieira de Pouves, o João Oliveira de Negrelos, o Heitor Salgueiro e o Manuel Salgueiro, da Ponte, que emigraram, vindo o Heitor Salgueiro a ingressar na Imprensa Nacional, o José de Almeida (Tarona),e o Leonel Nogueira que era o encadernador.

O maestro Álvaro Duarte era também um prestigiado músico, com licenciatura tirada no Conservatório Nacional de Lisboa, que inspirou as vocações de muitos, em todo o Concelho, apoiando sempre todas as manifestações musicais, desde a Banda até ao Grupo de Cantares de Manhouce. Era um homem de mediana estatura física e de grande elevação humana e musical, ao qual todos ficamos directa ou indirectamente a dever o despertar do interesse pela música.

Ali viveu com sua esposa, Dona Aurora, conhecida pela sua bondade e sua sensibilidade de espontânea pintora local. Recordo com saudade os seus filhos, Orlanda Duarte, que sei viver na “Grande Lisboa”, Rui Duarte meu colega da escola primária e do colégio de São Tomás de Aquino e seu irmão Telmo Duarte, (casado com Virgínia Borges (Ginínha)), ambos infelizmente prematuramente falecidos. Pelos anos cinquenta todos enchiam de alegria, o ambiente da casa. Com o Rui, após o seu regresso do Brasil, fui trocando reuniões de amizade, quase sempre na companhia da Margarida, sua esposa. Acompanhei, como todos os Lisboetas, o seu empreendimento na concepção do Rádio Cidade que chegou, a ser a estação de maior audiência em toda a “Grande Lisboa”.

O Rui e o Telmo, infelizmente, já partiram, deixando-me uma imensa saudade, no quase vazio dos amigos de infância, em que esta vida se está natural e paulatinamente a transformar.

Quantas vezes eu estive  naquela casa! Não sei, mas recordo que mercê desta convivência, o Sr. Álvaro Duarte, com toda a sua paciência tentou ensinar-me, a mim e à Isabel (João Pedro), a tocar piano! Demos-lhe cabo da paciência, sem lhe alterar o humor! Infelizmente, nesta corrida de obstáculos que é a vida, não conseguimos transpor a barreira musical, o que hoje lamento profundamente. Provavelmente estaria a tocar piano, em vez de vos estar a torturar com estas “croniquetas do passado”.

De imediato, mesmo na mediana do jardim, ficava a “casa da Miquinhas Soares”, palacete com dignidade arquitectónica notável, tão notável que hoje o “envolveram em vidro”, provavelmente para se não deteriorar! Nesta “casa apalaçada” viveram a Miquinhas Soares, como era “ternurentamente” conhecida, e a Maria do Céu que casou com o Horácio Martins (de Sul), que todos conheceram bem. Na Primavera e Verão a casa era envolvida por muitos elementos herbáceos, que ao florir realçavam o belo porte granítico da escadaria de acesso. Era uma linda e digna habitação. Agora o que é?- Não consegui obter esta informação, mas vejo por lá alguns carros comerciais e recordo que há anos esteve ali colocada uma placa com os seguintes dizeres “ESCOLA JOÃO PECULIAR”. Esta placa obrigou-me a recorrer aos tratados de história de Portugal, para descobrir a imponência da figura histórica que muito honra a nossa Cidade e que eu desconhecia. Trata-se da figura diplomática mais importante nas negociações que consolidaram a nossa nacionalidade.

Logo após deparávamo-nos com uma casa de belíssimos azulejos e telhado com inclinação nórdica. Vivia aí, à época o Sr. António José Bandeira Carvalhas com a sua esposa, Dona Esmeraldina e filho, meu amigo, Carlos Carvalhas, que foi presidente do P.C.P. no período difícil da substituição do líder carismático Álvaro Cunhal. Não vou apresentar ou falar do Carlos Carvalhas que é, sem dúvida, a figura desta Cidade, mais conhecida em todo o País. Recordo com saudade o seu Pai, Antonio José B. Carvalhas comerciante, fundador da “Discomer”, casa que, durante muitos anos, forneceu quase todas as mercearias espalhadas pelos três concelhos. Foi um bom comerciante e uma pessoa respeitada em todos os concelhos de Lafões, que ajudou a desenvolver.

Em frente ficava a casa do Dr. Aluízio Correia de Paiva, conhecido médico local, que aqui vivia com sua esposa Dona Maria Helena e os seus filhos. Era uma família numerosa que vou tentar trazer á memória de todos. Vamos começar pelo sexo feminino:- A Maria Helena, que há muito não vejo, o mesmo sucedendo com a Beatriz que foi minha colega no colégio São Tomas de Aquino até ao 5º ano e a Maria Amélia a mais nova, infelizmente já falecida. No sexo masculino recordo o meu Colega Dr. João Correia de Paiva, médico psiquiatra do Hospital Júlio de Matos, que infelizmente já não está entre nós, o Aluízio Correia de Paiva, que também foi meu colega no colégio e cedo emigrou para São Paulo, onde me dizem ser notável comerciante, o Guy Correia de Paiva que penso viver na “Cidade Invicta” e o “Dr. José Correia de Paiva”, distinto Juiz Conselheiro, que julgo residir no Porto.

A casa de habitação faz esquina com a rua Serpa Pinto e a rua de Camões apresenta arquitectura com amplas janelas, rasgadas em sacadas de belo efeito. É uma excelente peça arquitectónica, ainda hoje muito bem conservada.

A rua paralela ao jardim encontrava-se, como hoje, limitada pelas mesmas casas de primeiro andar, que criam em conjunto, um belo efeito estético, envolvendo o visitante numa agradável e repousante harmonia. Este agregado habitacional sobe pausadamente cerca de cem metros, vindo “a morrer na rua do cemitério”. A visão conjuntural é a mesma, e o povoamento humano fez a sua natural transição. Daquele tempo tenho a imagem duma família, vivendo quase no início da rua, numa casa com as janelas aconchegadas de “avental” de azulejos, mas que, praticamente, só era habitada no Verão. Nunca tive a honra de conhecer esta respeitada família, mas recordo-me duma “estória” interessante passado por esses anos.

O carteiro, Sr. Sargento amável e muito estimado por todos os habitantes, tinha uma memória elefantina, dado que a grande maioria das ruas não tinham nome nem numeração e ele distribuía cartas e pequenos volumes, com precisão cirúrgica, por todos os habitantes, cujos nomes e moradas não lhe escapavam. Ora estando o grupo dos mais novos habitantes do “Bairro de Camões”, ali nos bancos em amena cavaqueira, viram o Sr. Sargento, com uma carta na mão a aproximar-se, fazendo a sorrir a seguinte pergunta:-Os meninos sabem quem é o” Dr. Já Come” que deve morar aqui no jardim? Um silêncio interrogativo passou por todos, até que um, disse, apontando para a casa com os azulejos:-“ eu sei Sr. Sargento …é o Dr. Jácome que está cá a passar o Verão. Soube tardiamente que era um prestigiado pediatra de Lisboa, que nunca cheguei a conhecer. Posteriormente fui informado que a casa era propriedade da Sr. Dona Cristina Pombal, de respeitada família, que vivia normalmente em Lisboa, e que também nunca conheci.

Próximo dessa casa vivia o falecido comerciante Sr. Francisco Barros, com sua esposa Dona Margarida Barros, que tive a honra de cumprimentar há cerca de um mês, quando estive em São Pedro. Os seus filhos eram provavelmente dos mais conhecidos em Lafões, dada a alegria e simpatia, que todos pareciam irradiar. Eram da minha geração, talvez entre dois a sete anos mais novos, com os quais mantive boas relações de amizade. Vamos tentar recordá-los, naquela casa sempre com a “porta aberta para todos os Amigos”.

A Dulce Barros pintora, licenciada pela Escola de Belas Artes de Lisboa, que se dedicou ao ensino da arte. A Magui Barros que penso viver na cidade de Lamego, o Celso Barros, que seguiu o ramo comercial e vive na “cidade Invicta”, O Victor Barros, mais novo, cujo trajecto perdi, que julgo habitar em Coimbra e se dedicar ao comércio.

Deixei propositadamente para o fim o Dr. JOSÉ BARROS. Acompanhei-lhe o trajecto, no início da sua vida, bem de perto, principalmente aquando do regresso da guerra em Angola e depois de longe, na sua vivência em Coimbra. Vi-o viver o drama dum pai que ama o seu filho portador de grave patologia. Acompanhei a luta inicial em Lisboa e depois em Coimbra. Senti o seu amor paternal e acompanhei a sua determinação na transição da Agricultura para a Medicina. Venceu todas as lutas para depois, se embrenhar na construção das soluções actualmente possíveis e viáveis, para todos os doentes com aquele ou outro tipo de patologia idêntica. Foi o impulsionador de uma obra cuja dignidade e amplidão todos os Sampedrenses deviam conhecer e admirar. Foi uma luta diária constante, que lhe granjeou o prestígio que gozava na cidade dos Doutores. Partiste cedo demais, amigo, muito cedo, acredita.

ZECA:-“Bem-hajas” por tudo e pela obra que deixas-te ao País.

Considero que, uma obra desta envergadura merece, no mínimo, ser destacada e apontada como exemplo, e a tua pessoa deveria, quanto a mim, ter uma justa homenagem, tanto ao nível local como nacional.