A Rua Serpa Pinto (anos50)

Crónica 14/11/2013 (Ed. 642)
• M. Guimarães da Rocha (mguimaraesrocha@hotmail.com)

A RUA SERPA PINTO (anos 50)

Com o crescimento natural da cidade, a centralidade sofreu alterações mas apesar de tudo a rua de Serpa Pinto ainda é hoje o ponto de passagem principal para quem tem que recorrer aos serviços Camarários, Tribunal, Finanças e outros registos burocráticos locais. Naqueles anos de cinquenta, era a artéria aorta da povoação, onde estavam sediadas as principais casas comerciais, com as mais variada estruturas, e também a via de acesso a todo o” terciário local”. A rua começava junto à rampa de acesso á igreja e à capela de Santo António, com a loja fazendas e atoalhados do Sr, Américo Correia de Paiva, que  agregava algumas representações bancárias. O prédio tem hoje a mesma estrutura arquitectónica, embora mais actualizada, mas a estrutura humana é completamente diferente. Na rampa onde termina a rua direita, estavam sediados os carros de praça, alinhados dum e doutro lado da mesma, sempre prontos e às ordens dos fregueses, Eram os carros do Zé da Rita, do Pernicas, do Angelo, do Euclides, do Acácio Trinta e do Manel da Cobertinha. Nomes que eram muitas vezes alcunhas reveladoras do carinho com que a população os tratava pois os entendia como anjos da guarda, dispostos a acudir a alguma aflição de saúde ou outra qualquer. Pela Primavera a imagem singularmente dura e vazia do Inverno desvanecia-se e era preenchida pela presença humana, beijada pelos raios solares, que a medo pareciam chamar ao seu encontro todos os habitantes. Ali mesmo, em frente da porta da casa comercial, juntavam-se ocasionalmente os amigos, com poder real efectivo, ou consuetudinariamente aceite, trocavam opiniões entre eles abrangendo certamente toda a plenitude da problemática local e possivelmente Universal. Estas simples reuniões ocasionais, sob o sol aconchegador da Primavera, tinham eco até ao começo das chuvas e do frio. Durante a semana após a missa, era o ponto de reunião de alguns políticos, de braço dado com o imenso poder do clero local. Frequente era ver, junto à porta, em pleno passeio, apanhando o sol matinal, o Sr. Cónego Izidoro dos Santos Faria em conversação amena com o proprietário e o Dr. Sales Loureiro, que à época era o Presidente da Camara e Director do colégio São Tomás de Aquino e o Sr. José Augusto de Almeida, mais conhecido popularmente pelo “Pedra Azul”. Bem vestidos, altivos exibiam descontracção natural, num raio que abrangia todo o movimento, desde o passeio frontal ao café Edgard, passando pelos táxis contíguos e a Igreja. O pessoal que permanente borbulhava na entrada da rua, em direcção às diversas repartições Camarárias ou Estaduais, ao comércio local, ou simplesmente se dirigia à Farmácia da Dra. Elvira Coelho, tinha que passar mesmo defronte dos conversadores matinais, a quem cumprimentavam com cordialidade beirã. O movimento de automóveis era reduzido e nas suas rondas de vigilância diárias a pé, os agentes de autoridade, cumprimentavam militarmente os representantes do poder local presentes. A paz parecia irradiar uma bênção, que aspergia todo o bucólico ambiente. Algumas vezes, a este ocasional foco do poder local, agregavam-se outros elementos de reconhecida notoriedade, em aparente amena conversação. Era a ponto de passagem obrigatória para os que tinham alguns afazeres, legais e o ponto de entrada para quási todas as trocas comerciais, cujas casas se expunham por ambos os lados da rua, oferecendo os seus préstimos e muitos variados produtos. Na casa imediata ao Correia de Paiva, pontificava a ALFAIATARIA BARÃO, com nome plenamente sedimentado em todos os concelhos de Lafões, fama artística no Distrito de Viseu e com fregueses em Lisboa e Porto! Era uma escola artística de alta-costura para confecção de homem e para fatos e casacos de senhora. Estou a rever com toda nitidez, o Pai Amadeu Correia Teles e o filho Fernando Correia Teles. Bem altos, possuidores de porte senhorial, confirmando o epíteto profissional de “Barão”. Lembro alguns artista que lá trabalharam com O Zé Mona que emigrou para o Rio de Janeiro onde se destingiu como alfaiate costureiro e como músico exímio no seu saxofone, o José Caldo que emigrou para a Alemanha e o Alfredo Salgueiro ( Chora) da Ponte que foi sempre um distinto profissional. Todos conservavam este tratamento distinto nas suas relações humanas e alguns que lá trabalharam, prolongaram o seu saber em várias cidades de Portugal e estrangeiro. Ali aprendia-se uma arte, em ambiente de respeito pelo mestre, que se assemelhava às vivências dos ateliers das “Escolas de alta-costura”. Na vizinhança desta escola de alta costura, pontificava o barbeiro António Silva.  Tinha já na sua loja duas cadeiras modernas, e como frequência  quási todos os habitantes das proximidades. Como todos os barbeiros, era muitas vezes o local de cavaqueira e de tertúlias de alguma juventude de são Pedro. Tinha dois filhos na mesma profissão, o António que emigrou para África e o Cerílio que deu continuidade à barbearia. Depois deste comércio, digamos trivial… era o reino do ouro, da prata e dos relógios, na Ourivesaria Matos. Havia aqui uma certeza de conhecimento profundo dos produtos transaccionados, apoiados em segurança financeira bem consolidada. As transacções cumpriam um ritual tradicional, dado pela certeza da valorização constante dos produtos adquiridos. Dentro da ourivesaria vivia-se quási um ambiente místico, a que a beleza das filhas do proprietário, acrescentavam o perfume de pitonisas oraculares. A maior ourivesaria era a do Sr. Aires Correia de Almeida, com montras mais opulentas e chamadoras da curiosidade e interesse dos passantes.  O sr. Aires era casado com a Dona Eurídice e no estabelecimento estava quase sempre presente a Leninha Carvalho que casou com o meu amigo Luís Raposo e lá está para o Canadá com toda a família. Penso que na época eram as únicas ourivesarias locais, que dadas as características eram bem afreguesadas, principalmente aquando das festas civis, religiosas, aniversários, casamentos e baptizados. Não me recordo do movimento no auge da febre do volfrâmio, mas posso imaginar quão louca deveria ter sido!! Do outro lado da rua, uma farmácia moderna, sob a orientação da dra. Elvira Coelho, pontificava pela evolução técnica e atraía pela localização. Ali se fizeram técnicos farmacêuticos de reconhecido mérito dos quais só me recordo do Zé Maria da Ponte, que julgo que foi trabalhar numa farmácia na cidade do Porto. Pertencente à mesma família Marques da Costa, encontrávamos paredes meias, uma casa comercial onde aos preciosos livros de variada estirpe, se juntava o conhecimento em chapelaria masculina. Era um local onde eu parava com alguma frequência, para conversar com o filho do dono, e meu amigo e colega desde a juventude Dr. Calos Marques da Costa. Praticamente de seguida no mesmo lado da rua, tínhamos o estabelecimento de mercearias finas do sr. José Pereira. Recordo vagamente a figura do sr, José Pereira e esposa D. Ema, e lembro bem os seus filhos o sr José Pereira, hoje comerciante com casa aberta para venda de pratas e outros metais preciosos, na rua da Misericórdia em Lisboa, e sua filha Zezinha Pereira que foi funcionária da Caixa Geral de Depósitos. Era o estabelecimento que entre outras coisas, dominava também o negócio das sementes na agricultura, não só devido aos seus conhecimentos pessoais, mas também pela  variedade e qualidade das sementes apresentadas. Estou convicto que praticamente todo o Concelho recorria pela Primavera a esta casa comercial, para a resolução de alguns seus problemas agrícolas. E era de tal forma assim que o proprietário era conhecido na praça pelo carinhoso nome de “Zé da Borralheira” (sinónimo local de alfobre). Logo a seguir nesta correnteza de lojas comerciais, vinha um antigo, amplo e bom estabelecimento de panos, camisas e atoalhados, bem conhecido pela” LOJA DOS CUSTÒDIOS” .-Armando e Fernando Soares-. Como o Povo nestas pequenas vilas punha a todos uma alcunha, os donos, que não possuíam fartas cabeleiras, possivelmente desde novos, eram popularmente conhecida pela loja dos Custódios carecas. Na época o desconhecimento científico, de que a esta característica capilar está quase sempre associado uma maior riqueza em testosterona, pode ter trazido alguns constrangimentos amorosos aos supracitados . Foi uma loja muito conhecida, bem afreguesada e de nomeada, dada a popularidade, o bom gosto e a honestidade de todos que nela trabalhavam. Recordo o sobrinho, o João Soares excelente companheiro de paródias da juventude, que emigrou para o Brasil. Em frente ficava a prestigiada Pensão Comércio dos mesmos proprietários. Antes da Pensão do outro lado da rua, ficava o estabelecimento comercial mais falado na época  “CENTRO COMERCIAL ADELINO § SILVA”. Era fundamentalmente constituído por três sectores principais: 1)-O CENTRO:- que fazia o reabastecimento de todas as mercadorias pelas lojas das aldeias. Tinha nos seus escritórios de controlo e vendas o JOSÉ DIAS que todos conhecem e o JOSÉ CARVALHO que posteriormente foi trabalhar para a Anadia, infelizmente já falecido. 2)-A Loja de retalho (mercearia) chefiada pelo Sr. João de Deus (Dionísio) 3)-Serviços bancários e Seguros- Sob a gerência do Sr. António Silva (Mamouros) – com o controlo de movimento feito pelo António CARVALHAIS. Dada a sua antiguidade, centralismo posicional, variedade de produtos e tamanho, parecia-me uma casa com freguesia garantida, porque bem adaptada aos hábitos e condições de fortuna da população. Tinha um sector bem delimitado na estrutura do estabelecimento, dedicada à banca e penso que também dos seguros. Neste sector pontificava o Sr. António Silva (Mamouros) que com o seu metro e oitenta, seus fatos requintados, seu porte altivo o ar reservado, deixava a todos os fregueses uma sensação de respeito e segurança. O Sr. Dionísio foi um artista musical, ocupou o lugar de regente da música e foi um dos principais elementos dos que repuseram as Festas da Vila. Mas a pessoa que parecia dominar em todo aquele grande estabelecimento, era o Sr. Adelino Pereira. Homem já entrado na idade, que todos pareciam respeitar e admirar, pela sua maneira de estar e pela bondade aureolar que irradiava. Aos meus olhos, era uma figura paternal, do qual só se pode esperar um carinho quando dele mais se necessita. Amante da sua terra, defendia-a com “unhas e dentes” em tudo que lhe era possível. Contava-se uma história exemplificativa da sua bondade, amor à terra e do seu espirito aberto à juventude e à inovação… mesmo aquela que não conhecia em profundidade, mas que sentia ser o caminho do devir, e no seu entender uma ideia a apoiar, por trazer prestígio á Vila. O futebol era um desporto novo no local, longe dos jogos tradicionais da sua juventude e do qual só praticamente conhecia algumas poucas regras pelos jornais e nada mais. Desconhecia-lhe as manhas e a correspondência daqueles chavões ingleses, que eram, para ele palavras de difícil aplicação ao desencadear do acto desportivo. O clube de futebol da terra era constituído por amadores, amantes da modalidade, que rivalizavam com as vilas vizinhas, nas várias disputas que o campeonato obrigava. Mas era tudo muito dispendioso! Não havia dinheiro para os equipamentos e os jogos eram pouco rentáveis. Um dos jovens jogadores, astuto, conhecedor do amor à terra do Sr, Adelino Pereira, conseguiu que ele aceitasse a chefia total do clube, com as implicações financeiras resultantes. Lá ia o senhor simpaticamente até ao campo da Pedreira, assistir aos jogos (aos seus olhos demasiados confusos e complexos), cumprindo o seu dever de responsável. O Clube estava em maré de azar e as vitórias, alimento do prestígio local, não apareciam. Não ganhavam os jogos, mau grado o dinheiro gasto nas bolas e no renovado equipamento. Marcavam poucos golos, alguns em “off-side” e outros com faltas mais gravosas. Quase nunca de um” corner” ou de um “free-kick”, resultou vantagem no resultado para o São-Pedrense. No final do jogo, o Sr. Adelino perguntava paciente e sistematicamente:-Ganhámos? E a resposta era invariavelmente a mesma: – Não senhor Adelino, perdemos! E a cena repetia-se, no final de todos os jogos. Homem prático, mas desconhecedor dos meandros do jogo, tentava esclarecer este problema:-Mas perdemos sempre, porquê? São os “Back`s”  Sr. Adelino, respondeu o secretário, faltam-nos bons “Back’s”. Mais aliviado e pensando ter solução imediata para o problema, o Sr. Adelino exclamou: – Com raio, se o problema é esse, fica já tudo resolvido!! Ponham lá mais dois ou três” back´ s” que eu pago!- O que eu quero é que o São-pedrense ganhe! É uma “estória bonita”, que deve ter um fundo de verdade, e que revela um enorme amor à sua terra e aos seus conterrâneos, contrastando em quási tudo, com o que actualmente vemos no futebol e na actuação dos seus dirigentes!