M. Guimarães da Rocha (Ed. 657)

Um conto de vez em quando

26/06/2014 (Ed. 657)

PIOR NÃO ESTOU SR. DOUTOR..!

Ed657-DrGuimaraesRochaNaquele fim de tarde chuvoso, de Novembro de 1964, na freguesia de Odivelas, mesmo agarrada à cidade de Lisboa, o Dr. Francisco Neves e o enfermeiro José da Mota, acabavam de arrumar todos os utensílios médicos do consultório e trocavam as últimas impressões do dia, quando a campainha da porta estridentemente os sobressaltou.

Era o “Zé da Mona” um ex-doente do Dr. Neves, que grave patologia traumática, tinha atirado para o seu hospital há mais de dois anos, com resposta eficaz da ciência médica. Desde então ficaram íntimos, resultado da confiança, que nutrem pelo seu cuidador todos aqueles que sentiram “a vida a escapulir-se sem aviso prévio”.

Vinha apavorado, encharcado até aos ossos e de tal forma ofegante, que foi preciso sentá-lo e aliviá-lo do peso que a chuva tinha imposto ao seu coçado sobretudo, para entender a situação causadora de tamanha ansiedade.

Tratava-se do seu pai… estava na cama ardendo em febre não dava ”acordo de si” e, o que era mais espantoso era que, “ainda há hora do almoço estava de perfeita saúde”! Dizia o “Zé da Mona”.

Completamente atarantado e apavorado, não sabia o que fazer, vinha pedir auxílio ao amigo médico que já o tinha safado em complicada situação de saúde.

Nos anos 60 do século XX, as ambulâncias eram poucas, e o “115” nem miragem chegava a ser! Todas as preocupações do País estavam voltadas para África, onde as trombetas da guerra soavam com toda a estridência.

Havia que agir com toda a urgência. O Dr. Francisco Neves foi fazendo ao “Zé da Mona”, perguntas orientadoras de tão rápida patologia, enquanto vestia o casaco e o enfermeiro recolhia a mala de urgência das visitas domiciliárias.

Lá partiram montados no velho carro do Dr. Neves, comprado em terceira mão a prestações e, sob a orientação do filho do paciente, lá foram em direcção a Caneças. À época, era uma estrada estreita e esburacada, onde todos os veículos que a percorriam, apesar de todos os cuidados, eram por vezes sujeitos a algumas surpresas.

A urgência médica, a chuva miudinha, o cair da noite e o carro velho transformavam a curta viagem, mesmo com excessos de cuidados, numa aventura perigosa.

Pouco antes da chamada “curva da morte”, o “Zé da Mona”, com angústia expressiva, pediu para parar e estacionar na berma, pois era ali o local mais próximo da habitação. Escorregando, pelo íngreme caminho abaixo, lá chegaram á habitação, isolada de tudo e todos, onde uma luz bruxuleante anunciava presença humana.

Era uma casa térrea, de caseiro agrícola, a pouco mais de trinta metros da estrada, onde a iluminação era quase nula e o acesso difícil mesmo para quem conhecia o caminho. Naquele início de noite por vezes descobria-se algum branco da cal, que há muito devia ter preenchido as paredes. Todo o resto era uma decadência onde a pobreza extrema era rainha.

De repente, no breu daquela noite chuvosa, como por encanto, surgiu, transportando uma lanterna a petróleo, uma senhora de cerca de quarenta anos, a quem a vida acrescentara mais uma dezena, que os conduziu ao espaço da habitação, onde deitado e imóvel, permanecia o doente.

Prostrado, em velha cama de ferro, a que o colchão de folhelho ameaçava acrescentar alguma comodidade, estava um homem aparentando ter setenta anos, ardendo em febre, não respondendo a perguntas elementares e de tal forma rígido que o diagnóstico de meningite não oferecia grandes hipóteses de dúvidas.

Naquele tempo, só os bombeiros com todo o seu estoicismo, tinham ambulâncias, mas a possibilidade de comunicar com eles era difícil, pois qualquer telefone ficava distante do local onde nos encontrávamos.

Foi necessária toda a imaginação, esforço físico e a “colaboração espontânea” do velho colchão de folhelho, para conduzir o homem ao carro que o havia de transportar ao hospital de Santa Maria. A acomodação do doente dentro do veículo, foi obra de “imaginação divina”, certamente inesquecível por todos os intervenientes.

Recebidos no Hospital com toda a deferência e eficiência, quase não foi necessário contar a história, tão exuberantes eram os sinais clínicos que o paciente exibia.

Colocado com dificuldade em posição lateral, foi feita de imediato uma punção lombar, sem qualquer queixa do paciente e com o resultado esperado.

Confirmado o diagnóstico de uma forma ineludível, perante a coloração exuberante do liquor, ficou o doente internado de urgência, sob intensa terapêutica, no serviço de infecto-contagiosas.

Naquele tempo o prognóstico era mais que reservado, apesar de todos os cuidados e duma antibioterapia adequada ter sido logo iniciada.

O filho morria de angústia e o Dr. Neves tentou acalma-lo utilizando todo o manancial “argumentário” que possuía, onde a dúvida era a resposta e a cura desejada uma incerteza.

O tempo foi se escoando e já passava da meia-noite e sem qualquer meio de transporte de regresso. Impunha-se ao médico, levar o filho e o enfermeiro aos seus destinos habituais.

De regresso a casa, já bem depois da uma da manhã e enquanto comia qualquer coisa, o médico, debatia-se com uma sensação de cansaço, angústia e inexplicável bem-estar, que estas acções sempre imprimem. A situação gravíssima daquele doente deixara-o muito preocupado antevendo o pior.

Nos dias imediatos foi, ele próprio, visitar o doente ao hospital, que não era aquele onde exercia e, constatou, com agradável surpresa, a favorável evolução da patologia.

Ao quarto dia o doente começou a entabular alguma conversação escassa e ainda incoerente, mas prenuncio duma recuperação esperada e desejada. Comunicou ao filho do doente a situação, que chorando de alegria repetia insistentemente, “não sei como lhe agradecer”. Acalmou-o, aconselhou visita diária ao hospital e lá o convenceu que se havia alguém a quem agradecer era aos médicos hospitalares.

Menos de duas semanas depois o doente com todos os cuidados familiares já deambulava em sua pobre habitação.

O tempo inexoravelmente foi passando e, as preocupações do dia-a-dia de um médico, atiraram para longe as peripécias dessa noite chuvosa.

Cerca de dois meses depois, também ao cair da noite, entram pelo consultório dentro, precedidos pelo sorriso aberto do enfermeiro, o pai e o filho com aquele ar de felicidade que compensam largamente as preocupações e os desgostos que a profissão de médico, muitas vezes acarreta.

O filho abraçou o médico duma forma efusiva, exuberante e muito agradecida; o pai um pouco atrás aguardava respeitosamente.

O Dr. Neves olhou então para o doente e vendo-o com a boina na mão, cabisbaixo, olhar muito humilde, não resistiu à frase clássica e, inquiriu: -Livrou-se de boa Sr. Joaquim! Então como vai?

…após curto silêncio a resposta humilde, e em voz baixa fez estalar no médico sonora gargalhada de alegria, compreensão e carinho… PIOR NÃO ESTOU SR. DOUTOR.

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Redação Gazeta da Beira