M. Guimarães da Rocha (Ed. 675)

UMA INSÓNIA ANGUSTIANTE

UMA INSÓNIA ANGUSTIANTE

Ao deitar-me tomei um comprimido que a gerontologista me recomendou, para um sono reparador mas, nessa noite sofri uma insónia que me cansou imenso e, acordei ofegante sentindo uma opressão no peito, com taquicardia e extra-sístoles difíceis de explicar. Levantei-me e fui á varanda, respirar o ar puro que vinha do parque frontal à minha habitação, preparando-me para dar um passeio no bairro. Não entendi a razão, do que fisiologicamente se teria passado, pois foi um sonho historicamente delirante talvez um tanto desorientado! Como em muitos sonhos o passado e o presente ficam imbricados e, o real e o imaginário convivem, sendo que o tempo e o espaço se confundem. Sonhei que vivia num grande país, de Primavera constante e, onde as temperaturas à hora da calma, raramente ultrapassavam os vinte e cinco graus. Os passarinhos voavam em círculos de belos efeitos e, os insectos só nos picavam para nos despertar e chamar a atenção para as belas paisagens envolventes. Nos ninhos, os passarinhos recém- nascidos, eram alimentados pelos pais, em efusiva e chilreante alegria. Nos campos os agricultores servindo-se de complexa maquinaria, transformavam as terras em jardins produtivos, regados com águas cientificamente desviadas dos regatos e, que invisivelmente fortificavam as produções, de forma ecológica.

As florestas envolventes semeadas de pinheiros mansos, alternavam com os carvalhos, os castanheiros e os sobreiros, prenhes de bolotas. Nas serras, aceiros antifogo, cientificamente colocados, tinham a seus pés extensos tanques retentores das águas das chuvas, no duplo intuito de alimentar as colheitas dos vales e, prevenir os incêndios das montanhas.

Existia uma organização de trânsito rápido, de base cruciforme, desnivelada, constituída por avenidas largas que se entrecruzavam, permitindo acesso rápido às habitações com cinco a oito pisos acima do solo. Todas elas tinham garagens, dispunham-se em bairros, que possuíam todos os apoios sociais, desde os centros de saúde, às residências de idosos, jardins-de-infância, escolas, bibliotecas, parques desportivos, vias de acesso para veículos familiares a zonas desportivas e de lazer envolventes. Era uma cidade moderna tendo os apartamentos dos prédios orientados de acordo com evolução solar. Nos extremos dos bairros, arranha-céus rondando os vinte pisos, delimitavam as esquinas, dando abrigo aos escritórios, onde se desenrolava todo o movimento, desde as oficinas de apoio, aos escritórios da burocracia electrónica, necessários à boa organização do aglomerado populacional adjacente.

Duas semicirculares concêntricas, rodeavam a cidade, facilitavam o acesso rápido de todos, ao conjunto citadino, auxiliados por semáforos inteligentes de comando centralizado. As câmaras de vigilância e controlo e os écrans informativos, completavam a organização harmónica funcional de todo o burgo. Os jardins floridos sempre presentes na vivência diária, davam acesso fácil aos parques florestais, que parcialmente circundavam toda a cidade virada para o rio, marginado por larga zona pedonal estrategicamente elaborada para o lazer. Os poucos automóveis que circulavam pela cidade, fora da organização rápida cruciforme, eram movidos a electricidade; de resto, todo o movimento comercial e industrial de apoio, se processava no subsolo, através de transportes próprios, silenciosos, imitando a abundante e bem distribuída rede de metropolitano existente. A rede arquitectónica do primitivo casario, fora devidamente preservada e integrada, dando continuidade real ao evoluir da história centenária da cidade.

Recordo-me que ao regressar a casa, me tinha sentado no meu pequeno escritório e o relógio electrónico marcava dezoito horas, do dia 25 de Abril, do ano de 2074! Activei a aminha impressora ultra rápida que me fornecia o jornal tri-diário. Começava a sentir-me ultrapassado, nos interesses pessoais. Todos os membros da família preferiam o acesso fácil e computorizado aos variados aparelhos portáteis, de informação ao segundo, que possuíam para o seu lazer e trabalho diário. Como tinha uma vida independente, era ainda bem tolerado, pelas cinco gerações que se sentavam á mesa nos dias festivos. Todos escutavam as minhas vivências passadas e, os mais idosos da família, interessadamente pareciam meditar sobre as minhas palavras.

Entretanto, devo, inadvertidamente, ter carregado num programa da minha secretária atómico/electrónica, que imprimiu em vez do jornal diário, um resumo sintético dos principais factos dos últimos cem anos. Era um sistema novo, com o qual não estava muito familiarizado, mas que desta vez me deixou ansioso, pois apresentava um trabalho histórico demonstrativo, através de imagens, da discrepância entre a evolução tecnológica, e a evolução sociológica da humanidade.

Senti um “arrepio de velho”, habituado a ver no presente toda a evolução do passado. Pensei nas maravilhosas facilidades com que “hoje, anos setenta (do século XXI), mercê da lógica urbanística e arquitectónica e, da cega confiança em todos os racionais sistemas, desde o ensino, à saúde, à finança e à economia, todo o País vive em plena Felicidade Social controlada. Olhei para a padronização imaginada e votada, onde todos conheciam o seu espaço social e, senti como toda a sociedade estava tão facilmente exposta às mãos de um ditador! Era uma fruta madura, pronta a ser apanhada, por um divulgador de promessas paradisíacas que preencheriam o que faltava:-a esperança num paraíso sem comando e pensamento único! E eu recordava-me do passado, pois eu era o próprio passado vivo, dos poucos ainda integrados familiarmente. A maioria dos idosos preenchiam os lares, que não eram mais do que depósitos de pré-morte, higienicamente assépticos, de organização lógica e hierarquizada, como cópia de primitiva concepção militar. A diversão é dispensada a horas e dias programados, o acesso à informação é controlado e, os regulamentos são francamente exigentes…nada existe sem regulamentos! A vigilância, das organizações sociais, mesmo as ditas independentes, com o aumento da longevidade de tal forma longa e complexa, tiveram que ceder á eutanásia. Esta é oficial e decidida por grupo gestor diferenciado, com toda a presença científica e religiosa variada, eleita anualmente entre todos os seus respectivos pares!

Era a angústia do acordar tardio mas febril, da informação, exigindo reformas muito urgentes, compensadoras dessas vidas cada vez mais longevas. Eram as exigências de admissão urgente, de novos jovens emigrantes, como compensação de velhas falhadas políticas de natalidade. Foi o fruto de caças aos votos, nas antigas e tolas lutas eleitorais, onde partidos, eram agencias de empregos para os seus fieis e, impreparados militantes. Tinha sido uma luta entre, a formação, a realidade e a ética, às quais se sobrepôs, quase sempre, um grupo de influência, repleto de enganosas promessas, mercê da acção de um homem, ignorante, ousado e mal formado. O tempo tudo tinha desmascarado, com as evidências resultantes das decisões tomadas! As discrepâncias entre a longevidade e a natalidade, era uma evidência insolúvel, que só a estimulada emigração jovem, mesmo estatisticamente mal disfarçava.

A ética, a moral e a vida continuavam pairando e exigindo vigilância constante! Mas de quem? É que até os vigilantes falharam. Os financeiros e políticos foram os primeiros e depois a democracia estourou?! Era o cantar de palavras fáceis, ocas e vazias, que queriam vencer a realidade. Parece que ninguém queria ver a realidade, mesmo sabendo que esta, nos conduzirá, sempre através da história, a chefes providenciais, de triste memória! Nem mesmo as “pílulas do bom senso”, gratuitamente distribuídas, tinham feito retroceder a ambição humana desmedida. Tudo ficara realmente exposto através dos anos, com as discrepâncias impensáveis das estatísticas populacionais, em que ninguém quis acreditar e, que agora obrigavam a atitudes impensáveis com reformas somente depois dos 75 anos, pois a população, com idades mais elevadas era já superiora 15%!

Os casais jovens, têm uma média, inferior a um filho! A incerteza e a ansiedade aumentaram para níveis incomensuráveis e, as medidas políticas para controlar a longevidade não mostram eficiência! Todos sabiam que atrás dessas medidas estava o dinheiro e a incapacidade de cedência para níveis de vida reais, de inferior qualidade. Ninguém queria ouvir a voz da razão! O “sacrifício de ter três filhos por casal” é egoísta e psicologicamente inaceitável pela maioria!

Caminhávamos para uma situação em que todos podiam ser controlados por uma minoria, esbanjadora de sonhos irrealistas, que iria orientar sub-repticiamente, tudo e todos a seu belo prazer?! E quem controlaria essa minoria? E quais as  consequências  duma  governação aparentemente isenta, de que só alguns iriam beneficiar? A Democracia era a solução final? Qual Democracia? Quais os “Guardiões dos Templos”? Quem os escolheria? Já todos votavam obrigatoriamente nos candidatos, um a um e, não em blocos ligados a partidos, ou facções ou outras organizações. O voto era obrigatório, militarmente controlado e imposto a todos, mas, Infelizmente, não resultou. As finanças nacionais atingiram níveis inaceitáveis!

Com a minha idade tinha dúvidas…tinha já visto como a ambição começa nas pequenas coisas e, acaba sempre na totalidade das mesmas e, eu sabia que “mandar”, só é mau, para quem tem consciência dos seus actos e, como tal inibições. O ambicioso, o fanático, o inconsciente, o ignorante, não têm dúvidas,  só certezas e, respostas para tudo. São infelizmente estes que quase sempre ganham as eleições! O Homem mesmo quando erra, nuca reconhece que errou, pois subconscientemente entende que isso, seria negar-se a si próprio!

Eram estas as minhas rápidas divagações mentais, instantâneas e subsequentes à leitura do jornal. Neste ressaltava o destaque dado nas principais notícias ao centenário da revolução em Portugal no dia 25 de Abril de 1974 – a “Revolução dos Cravos”. A história era apresentada só por imagens sem comentários. Repentinamente todo o sistema televisivo avariou e, as figuras passaram a ser indiscriminadas no espaço e no tempo! Lá estavam misturadas anarquicamente, as figuras da Revolução comunista na Rússia, a ascensão nazi de Hitler, a 2ª Guerra Mundial, as bombas atómicas de Hiroxima e Nagasaki, os campos de extermínio de Auschwitz, a destruição total de cidades alemãs, o suicídio de Hitler, a criação do Estado de Israel, a reconstrução da Europa, a Guerra Fria, Estaline, Mao Tse Tung, Honekem , a construção do muro de Berlim, a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietnam, a revolução de Cuba e uma mensagem escrita, vagarosa, repetida :- (NUNCA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE SE MATOU TANTA GENTE EM DEFESA DE IDEOLOGIAS) a que se seguiu a imagem do, Sputnik, a ida do Homem à Lua e o recente desembarque em Marte, misturado com o Avião F 21, os novos aviões Antonov, os Boeing, os Airbus, a queda do muro de Berlim, Gorbatchov! A Revolução dos Capitães, a “Tomada do Convento do Carmo” e as festas populares após o fim da “guerra colonial”. O regresso dos retornados de África,( onde não ficou um Português branco!).  Logo a seguir imagens horrendas das decapitações no “Estado Islâmico”. Apesar da minha provecta idade e, tendo efectivamente assistido a todos estes acontecimentos, não consegui tolerar as imagens anárquicas resultantes do descontrolo do aparelho. Desliguei-o e fui para a sala, ver na “T.V.de fluxo vertical”, emanada do tecto, tridimensional, com uma aparente profundidade em realidade total. Aí junto de outros membros da família, pude ver as notícias do dia: imagens do campeonato de futebol, “flashes” do último carnaval do Rio, o tempo nas praias de Copacabana, as festas em Hollywood e, progressivamente o cansaço venceu-me e fechei os olhos…!  No meu encéfalo passaram então, de repente, outras imagens… e, eu só via as figuras dos Papas, enganchadas com as imagens de Churchill discutindo com Estaline e Roosevelt, constantemente sobrepostas por atentados bombistas, promovidos em nome de DEUS, que destruíam a Torre Eiffel, o Palácio Buckingham, o Louvre, o Pentágono, a Estátua da Liberdade, a Assembleia Nacional Chinesa, o Kremlin, o Palácio Real do Japão, Brasília e Washington, enquanto no Vaticano, era içada a bandeira do Estado Islâmico e o Papa era degolado! As bombas de Neutrões e Protões, explodiam em Paris, Londres, Nova Iorque, Pequim, Moscovo, Estocolmo, Roma, tudo envolvido em ruídos progressivamente assustadores… Então despertei deste enorme pesadelo! A T.V. tridimensional de fluxo vertical,  mostrava  os representantes do novo Governo Grego, discutindo pormenores do 10º empréstimo à Grécia…!

Tudo não passara de  “UMA INSÒNIA ANGUSTIANTE”!!!

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Redação Gazeta da Beira