M. Guimarães da Rocha (Ed. 652)

Regresso Imaginário

Crónica 10/04/2014 (Ed. 652)
• M. Guimarães da Rocha (mguimaraesrocha@hotmail.com)

A Filarmónica  Harmonia

Com a alma cheia de saudade e a boca cheia do sabor acre daqueles diospiros colocados no alto das duas árvores, continuamos a nossa marcha em direcção da Ponte. Agora víamos a curva da estrada alargada onde palheiro sobranceiro da direita, tinha desaparecido, o que nos permitia observar cada vez melhor à medida que avançávamos, o airoso espaço do supermercado LIDL, agora fazendo esquina com a nova rua, de aceso directo á estrada de Santa Cruz.

Parece que tudo ficou mais airoso e ao penetrar na Nova Avenida que nos liga à Ponte, há mesmo uma sensação quási citadina na evolução introduzida. Para os meus olhos de utente diário durante os anos quarenta e cinquenta do século vinte, foi a grande revolução urbanística local. Parece que se despiu o casaco de “Vilão” e se começou a vestir o casaco de pretensioso “citadino”. Perdeu o campesino traje de “capucha” e ganhou o fato e casaco cinzento do pequeno burguês, que povoa o terciário. Aquela nova rua encimada, como não podia deixar de ser, por uma rotunda, parece que lhe abriu horizontes e criou movimentos meteorológicos, capazes de expulsarem o nevoeiro no Inverno e a arejarem com os ventos do São Macário no Verão. Faço votos para que também expulse o movimento rodoviário para outras paragens.

Cumprindo a evolução natural neste novo Portugal, em vez de uma capela, com que os nossos ancestrais teriam preenchido o espaço mais elevado, neste local agora urbanizado, nasceu aí um supermercado estrangeiro, que vem naturalmente, abafar todo o comércio e possivelmente agricultura de subsistência local.

A Páscoa está aí a rebentar e vamos ver, enxameando o supermercado os automóveis, limpos e escorreitos, apitando como que empinados e orgulhosos do novo amplo espaço de arrumação, como cavalos relinchando após lauta refeição de milho e vinho adequada á sua posição de “cavalos cansados”. Acabam de chegar das” Lisboas e Portos”, com os seus motores quentes do esforço despendido a galgar as auto-estradas, que nos separam mais do que unem, da realidade ambiental. Os seus donos “aconchegam-nos” com esta paragem de repouso controlado. Depois abrem-lhes o vento fresco ao levantar a porta-bagagens, onde vão reforçar os carregamentos trazidos com as vassouras, sabões e detergentes, com que esperam manter limpas as suas habitações, expulsando o mofo acumulado pelos meses de ausência.

A “Festa” Pascal está a rebentar e enquanto os automóveis adornam tranquilos o local, o ambiente dos encontros de amigos são uma constante, que esvoaça no espaço até à pouco mudo e quedo em aparente saudade.

Apesar do mau tempo primaveril, a” Mãe Natureza” explode de alegria em verdes tonificantes, com majestosa floração, que inunda as narinas em sabores olfactivos únicos e inesquecíveis. Os passarinhos movidos pelos instintos primaveris, procuram materializar seus ninhos, em trabalho esgotante de força e beleza e com os seus chilreados pintam o som ambiental. É a explosão da natureza que volta em inexorável compromisso, assinado em” Notariado Celeste”.

Olhando a correr para a quinta da “Caldeiroa” à esquerda, minha visão do passado sente a quinta do Barão e o” Chão do Mosteiro “à direita, com as antigas “LEIRAS”, alinhadas como soldados em parada, umas ao lado das outras, inundadas de simetria anárquica, que só as culturas plantadas podem explicar. Aqui, são flores, ali é já o morangueiro empinado e ufano que quer dar fruto, mais além, verdejantes e alinhadas estão as batateiras verdes com alguns escaravelhos listrados incomodativos e prejudiciais, logo a seguir as canas espetadas no chão recebem o abraço total do feijão-verde, escondendo a seus pés as azougadas abóboras que o dono tem que “capar “para que cresçam e se tornem competitivas, em peso e volume com as dos outros vizinhos. Era um festival de trabalho e simultaneamente de alegria, onde os cânticos das mulheres se sobrepunham ao linguajar brejeiro dos homens. Alguns até tinham uvas de mesa moscatel, cujas ramadas faziam a delimitação dos vizinhos, não sinal de desconfiança, mas de louvor á terra, que tudo dá quando o amor e suor sobre ela transbordam.

Para mim era a beleza de uma pintura viva, tridimensional, renascentista, mas também sonora, qual filme neo-realista de Fellini.

Ali, vinte e poucos metros mais a baixo, era a nossa fronteira com os da Vila! Eram as “alminhas de Pedra” à direita de quem desce, que separava os nossos mundos de crianças azougadas em crescimento belicoso com a natureza, que explodia não só nas plantas, mas também nas gentes. A partir dali era necessário passaporte para entrar na Ponte e as desavenças inexistentes saltavam em aventuras de pedrada, que só terminava com a voz tonitruante de adulto, que passava pelo local ou ali próximo trabalhava.

Depois os mais velhos não gostavam nada que lhes namorassem as meninas da Ponte. Era quási necessária uma autorização informal dos veteranos, aprovadora das boas intenções dos da Vila, senão eram banhados na fonte do “fundo da Feira”!

Envolvido sorridentemente pelo passado, vejo ao meu lado o portão de ferro da quinta e entro pelo caminho que me conduz à “casa do ensaio da música”, mesmo no meio da propriedade, onde durante horas ouvi e vi os ensaios, apreciei a paciência do António Nazaré ensinando os mais novos, aconchegando nas pautas dos mais velhos, que nos ensaios de conjunto tentavam, por vezes, escapulir-se das regras musicais, mal escondidos numa “semicolcheia incomodativa”, a que era difícil dar a conveniente volta.

Aqui me diverti muito, apreciando a evolução séria e voluntária do ensino musical e os trejeitos que cada um tinha nessa aprendizagem de conjunto.

Ainda me recordo do velho Teles da Ponte a tocar bombo marcando os ritmos não só com a respectiva maçaneta, mas também com o dedo grande do pé, que saía ousada e amplamente das sapatilhas de corda, com que no Verão deambulava pelo Bairro.

Era um prazer ouvir a música! Era um conjunto que á noite se recriava em cultura musical procurando constantemente melhorar as suas capacidades, sem soldo, mas com vontade de saber que tudo ultrapassava, desde a distância, á chuva, ao frio e ao calor, com total ausência de comodidades nas instalações.

Tudo isto se passava quási sempre á noite, no meio da quinta, longe dos ouvidos sensíveis da Ponte ou da Vila, vivificando as plantas que envolviam o improvisado centro de ensino e treino musical.

Admito mesmo que só isto explicava as abundantes culturas de tão bons melões de “casca de carvalho”, tão boas melancias e enormes abóboras, estimuladas no seu crescimento pelas melodias executadas em cima das suas sementes.

Nunca percebi porque é que as autoridades daquele tempo só se lembravam dos homens das músicas, para as inaugurações e outras festividades políticas e religiosas!

Contudo, na Páscoa,  fazia-se  uma excepção!! Recordo o desfile musical , que atravessando toda a Vila, com paragens nas casas dos doutores, dos brasileiros, dos comerciantes ricos, que perante esta saudação fraterna sentiam o aumentar do seu ego, e a obrigação de recompensar esta demonstração pública da sua importância, contribuindo com donativos… e assim nasciam os novos “Fundos” que permitiam a aquisição de um novo instrumento, um rearranjo das “fardas”, uma nova reestruturação dos “bonés”!!!

Era um prazer velos desfilar síncronos nas procissões, ousados nas festas pagãs, altivos nos desfiles da Páscoa onde anunciavam a Primavera, aspergindo de música o ambiente onde a musicalidade era uma constante por essa ocasião do ano!

Eram mais de trinta e vinham de todos os lados da vila procurando o gozo que o domínio dos instrumentos lhes  dava, obtendo conhecimentos musicais que sempre admirei. Gostaria de me recordar de todos os que passaram e contribuíram com o seu talento para a musicalidade da minha juventude.

Recordo o Teles no Bombo, o Fernando “Porrinhas” ( o número um) na Pandeireta, o Zé Mona no Clarinete,  o Arménio no Saxofone, o Manuel Vitorino no Trompete,  o João do Miravouga no Trombone, o Armando Sapateiro no Feliscorne, o Evangelista no Contrabaixo, e muitos outros como o Zé da Caldeiroa, que foi músico da Banda da GNR, em Lisboa. Recordo mais, o Isidoro, o Pedro Coelho da Negrosa, o Ramiro de Drizes e os seus filhos, o João Chaves da Vila, e os filhos do Lima, oficial de Deligências.

Para mim no início da juventude, todas as coisas eram um festival de vida, que a Grande Guerra arrefeceu um pouco e só o Volfrâmio beliscou, com ofertas mercenárias e ousadas, á disposição de muitos, que escarafuncharam essas montanhas de Deus, alterando o desabrochar do progresso, que todos inconscientemente desejavam e não havia meio de chegar!

 

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Redação Gazeta da Beira