Vivências dentro do Edifício da Câmara Municipal

M. Guimarães da Rocha

Crónica 30/01/2014 (Ed. 647)
• M. Guimarães da Rocha (mguimaraesrocha@hotmail.com)

Vivências dentro do Edifício da Câmara Municipal

Ed647_DSCN6817A repartição de justiça estava dividida em duas partes “e meia”. O gabinete do chefe, com cerca de vinte metros quadrados, e a repartição propriamente dita, que andaria pelos sessenta metros quadrados. Ao entrar na repartição existia “o escondidinho”, como alguns lhe chamavam. Era um espaço de cerca de três metros quadrados delimitado por estantes onde repousavam os processos e que separava visualmente a Secretaria do público. Tinha uma pequena secretária e uma velha máquina de escrever (penso que era uma velha ROYAL) e um balcão, virado para a porta de acesso ao público.

Era aqui que todos começavam, tomando contacto com os processos, não em atitudes mais ou menos jurídicas, mas em função de “meio encadernador”, evitando que se perdesse qualquer documento. O Processo era ordenado de acordo com a sua evolução, numerando as páginas e “preso” entre duas tiras de papelão forte com menos de dois centímetros de largura e um comprimento de cerca de doze centímetros.

As tiras de papelão e o Processo, bem acomodado nos seus limites, eram perfurados com uma sovela de sapateiro e depois, utilizando agulha grande de colchoeiro, fixadas com “fio do Norte”… terminando em artístico laço, de forma a permitir a colocação de novas folhas, à medida que o processo evoluía. Sempre tive a sensação de que este método vinha da Idade Média, não sei porquê. Imaginem, como fiquei espantado quando, ainda há poucos anos, tive que tecnicamente testemunhar, como médico, em processo relacionado, com “acidente de trabalho” e constatei que o método ainda se mantem!

Com a velha máquina de escrever, colocada naquele “conclave,” procurava-se, sem nenhum método inicial, aprender a escrever, por experiencia repetitiva, de forma a conseguir bater à máquina todos os requerimentos dos processos. Era uma forma de “desenrasque”, tão característica do Português. Recorda-me que a poupança de papel era uma atitude obrigatória e por isso reutilizávamos todo o papel que por qualquer motivo se tinha inutilizado, escrevendo no verso do mesmo.

Para facilitar o serviço, existia um caderno altamente consultado e onde se encontravam os textos dos todos os requerimentos usados por norma nos processos, que líamos e quási decorávamos, de forma a tomar contacto com a linguagem jurídica e não falhar aquando da sua execução dactilográfica.

No Crime, sempre que conhecíamos os intervenientes, a nossa juventude, o nosso coração e conhecimento pessoal, pendia forçosamente para um dos lados da balança, impedindo talvez, a visão de isenção pretendida pelos olhos fechados da figura representativa da Justiça, felizmente não tínhamos voto na matéria!!!

Brincávamos com os termos aplicados aos vários processos, como era o caso do “ CORPO DE DELITO”, ao que nós por norma chamávamos “COPO DE LITRO”.

Claro que havia algumas relações engraçadas, direi mesmo habilidosas, que permitiam responder prontamente á Lei, que por vezes era demasiado cega e abstracta. Testemunhar que determinado indivíduo era ele mesmo e outras imposições quási ridículas e formais, obrigatórias à época no direito, eram feitas por “testemunhas quási oficiais” que conheciam as pessoas desde o seu nascimento, e que todos entendiam como natural. Eram sempre as mesmas testemunhas e de tal forma permaneciam nas “fraldas” da repartição, que no início eu pensava que eram mesmo funcionários. Lembro com saudade nestas funções, o Vasco “Badalo” e o João “Macarrão”, simpáticas figuras, bem conhecidas do Concelho.

O Dr. Poças, era exigente e no trabalho diário e normal, introduzia naturalmente a boa disposição em tudo o que fazia, humanizando o ambiente. Retenho a sua imagem, de Presidente da Câmara em exercício, num Verão, em que, em mangas de camisa, inspeccionava as obras de abastecimento de água à Vila, que ele, orgulhosamente afirmava ser feita com “água pura da Serra e não com água do Rio”. Parece que antevia o que veio a suceder!

Na época criticava-se esta atitude, por ser mais dispendioso trazer a água de Pinho, em vez de a colher numa tal nascente abundante, que existia, a menos de 2Km do centro da Vila, em “Vilar”, ao lado esquerdo, na estrada de Santa Cruz e que era o início de um pequeno ribeiro cujo caudal se mantinha todo o ano. Outros apoiavam-no, afirmando, que essa nascente seria para reforço, se se provasse que era necessária, pois tinha pouco declive em relação à Vila e poria problemas aos Bombeiros em caso de fogo, por falta de pressão necessária, para as bocas-de-incêndio. Dois ou três anos depois, o tempo demonstrou que a água era boa, respondeu às necessidades da época e estas dúvidas rapidamente se desvaneceram. Será que agora, com nova Administração, não seria de olhar para esta e outras nascentes, dados os problemas que a água do rio, tem trazido a todos? Com as novas tecnologias parece uma obra viável e de pequeno vulto financeiro. Não sei, mas tenho a certeza que a nova Administração Camarária, não deixará de equacionar este problema.

Na rede eléctrica foram também feitas pelo Dr. Poças, algumas melhorias embora a Vila já há muito tivesse acesso a este benefício, que penso ter sido introduzido pela firma dos “Sebastiões” com a criação da Central do “Ourino”. Era uma pequena central hidroeléctrica, com um bom lago, onde os jovens tomavam banho no Verão. No canal aferente à turbina, era normal verem-se muitos ratos e algumas pequenas cobras do rio. Como também era diariamente usual faltar várias vezes a luz, alguns segundos, durante a noite. Estas interrupções de corrente, eram de tal forma usuais que quando aconteciam ninguém se irritava e só diziam:-“ Lá entrou mais um rato na Central”, esperando calmamente que a energia voltasse! O problema só teve, finalmente, solução com a vinda da hidroeléctrica da Serra da Estrela.

Mas regressemos de novo ao Tribuna! Um determinado dia teve lugar uma audiência em plena sala de sessões do tribunal. Tratava-se de um processo sumário, no qual “a função de advogado podia ser tomada por um “Solicitador”. O caso resumia-se a uma briga, entre um abastado agricultor, duma aldeia da Comarca e um outro indivíduo da mesma aldeia. Dizia-se que o dito e abastado agricultor se tornava, por vezes violento e era dado a brigas, nomeadamente quando  a fidelidade da esposa era posta em causa!!! O dr. Poças não resistiu e foi assistir ao julgamento, e de imediato, como poeta repentista que era descreveu assim o sucedido:-

Luciano na defesa

Actuava com ardor!

Na banca dos advogados

Até parecia um doutor!

 

Ouça lá, ó testemunha

Quem é que foi desta feita

Que partiu ao…Antoninho

Aquela haste direita?

 

Eu não sei senhor doutor

Mas antes destas pancadas

O Antoninho de “Amores”

Tinha as hastes bem armadas

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Redação Gazeta da Beira