M. Guimarães da Rocha (Ed. 648)

Vivências dentro das repartições no edifício da Camara Municipal (continuação)

Crónica 13/02/2014 (Ed. 648)
• M. Guimarães da Rocha (mguimaraesrocha@hotmail.com)

Quem concorria ao Tribunal de são Pedro do Sul, sabia que que este tinha a classificação de Comarca de segunda, que explicava implicitamente o número de funcionários e o movimento que preenchia o tempo de trabalho dos principais advogados:- Dr. João Bandeira, residente em Moldes, Dr. José Ignácio Coelho, residente na Vila, Dr. João Tavares residente em Oliveira de Frades e os Drs. Celso Cruzeiro e  Antero Araújo de Vouzela.

Recordo que a alguns advogados de São Pedro, a minha imagem projectada da infância, associa ainda hoje figuras orientadoras de vivência pessoal, reveladoras do poder real que o advogado disfrutava na sociedade local.

Assim quando me lembro do Dr. José Ignácio Coelho, associo-o de imediato a uma pessoa de pequena estatura, de palavra fácil e vejo-o de cana de pesca, com botas altas de borracha pescando trutas nos rios locais.

Vejo o Dr. João Bandeira passar na Ponte impreterivelmente às doze e trinta, metido no seu Peugeot a caminho da sua casa e da sua quinta em Moldes. Recordo-me bem porque pelos oito anos, como jogávamos futebol na rua, sabíamos que tinhamos de interromper o jogo para remover as pedras que serviam de balizas, pois que  a essa hora passava o carro do Dr. Bandeira…assim era o volume de trânsito na época!!.

Posteriormente “assentou banca” em São Pedro, o Dr. Abílio Tavares que por cá casou e teve os seus filhos. Deve-se a ele, com o seu espírito  de   “avant garde”, a  modernização  na forma de actuar em todo o processo jurídico.

Igualmente o Dr. Jaime Gralheiro continuou na mesma senda jurídica o seu trabalho na advogacia. Foi também contudo, igualmente notável o entusiasmo e amor que sempre pôs, ao serviço do teatro, quer como director artístico, quer como dramaturgo, tanto ao nível do Concelho como ao do País.

Na época, as figuras do juíz e do Delegado do Procurador da República eram notórias no Concelho, muito embora a ocupação fugaz dos cargos que ocupavam não permitisse  que os seus nomes perdurassem por muito tempo na memória dos sampedrenses.

Em contraste, a classe médica, era bem conhecida, dada a sua permanência constante nas funções que ocupavam, em contacto diário  directo com todas as classes sociais da população, sem horário de trabalho previsível, com parcos rendimentos mas com imensa boa vontade e amor à profissão, transmitido,  muitas vezes, em trabalho não remunerado, pelo que ainda hoje os seus nomes permanecem na memória colectiva. Eram figuras acessíveis, às quais se recorria, infelizmente, muitas vezes, só em casos de urgência.

Todos ainda se recordam, certamente com saudade, dos Drs, A. Pinho Bandeira, Tavares, Aloísio Correia de Paiva e Dr. Leitão que penso que vivia em Serrazes.

Para uma “região” que chegou a ter mais de sete advogados, e um Concelho que tinha quatro ou cinco médicos, seria espectável um desenvolvimento e crescimento demográfico e fabril exuberante… e ainda hoje não sei explicar porque é que tal não aconteceu de facto!

Mas voltemos à Câmara Municipal onde pelos anos cinquenta, quási todos os Organismos oficiais, tinham a sua sede.

Esta concentração de Serviços no edifício da Câmara era de tal monta, que até mesmo a Cadeia  Municipal ficou por muito tempo instalada no r/c ( à esquerda de quem hoje entra na Câmara Municipal)!! Só com a construção pelo fim dos anos quarenta da actualmente  encerrada cadeia, é que esta insólita situação ficou resolvida. Para o seu lugar foi transferido o Registo Civil e a Tesouraria das Finanças.

Esta proximidade das repartições trazia uma convivência salutar entre todo o pessoal que labutava no edifício, facilitando teoricamente o fluir do trabalho, mas simultaneamente facilitava algumas raras picardias, ocasionais ou antigas entre as diversas repartições.

Chefiava o Registo Predial o Dr. João Bettencourt Sardinha, natural dos Açores, acolitado pelos funcionários, José Fernandes e João Dias, (neto do Joãozinho do Registo Civil, que casou com a Mariazinha Teles, da Ponte e que vive actualmente em Oliveira de Frades). O Sr. José Fernandes (Zezinho do Registo, como era conhecido) era simultaneamente um amante de teatro. Durante todo o tempo que eu “militei no Cine-Teatro São Pedro”,  sempre   o vi nas funções de “contra – regra” que desempenhava com toda a perfeição. Tinha dois filhos, bem pequenos, que brincavam nos bastidores do teatro. Rememoro a paixão de um deles pelo “Quim Patins”, desporto, que há época era tão popular como o futebol.

Posteriormente veio trabalhar para esta Repartição do Registo Predial, o Sr. José Mamouros,  de Cotos. Foi um profissional, trabalhador, inteligente, honesto e estudioso, que mercê de muito sacrifício e muita garra, sem nunca deixar de trabalhar e progredir na carreira, veio a terminar  a sua licenciatura em “Direito”, na cidade de Lisboa. Aqui está mais um exemplo do funcionário público que em São Pedro, ganhou asas e as bateu com determinação em direcção ao sucesso, que atingiu com todo o mérito.

Do elenco da Câmara Municipal faziam parte, entre outros, o Sr. Amadeu Carvalho Homem, Chefe de Repartição, tendo a seu lado o apoio do Sr. Cabral, natural de Coimbra e do Sr. António Guimarães, da Ponte (fundador e alma da Tribuna de Lafões), bem como, os Srs. Lima, Valério e Viriato, (avançado do Sampedrense), e também o tesoureiro o Sr. Manuel de Almeida Barros, natural de Carvalhais.

Na Repartição de Finanças encontrávamos, os Srs. J. Vasconcelos, irmão do Sr. Edgard, (do café Edgard) e o Sr. Fernando Figueiredo, de Moldes, grande apaixonado pela música. Penso mesmo, que foi um dos maestros da banda Filarmónica de São Pedro do Sul. O Srs. Eurico e Rebelo Pinto eram os informadores fiscais da repartição e o Sr. Moura Coutinho, de Parada de Gonta, era o tesoureiro. Posteriormente vieram trabalhar na tesouraria o Sr. Brazete e depois o Sr. Horácio Martins, de Sul.

O trabalho dentro do edifício da Câmara Municipal, processava-se num ambiente fraterno e colaborante, mau grado o ambiente repressivo da ditadura governamental e das dificuldades financeiras da maioria dos habitantes de S. P. do Sul e duma maneira geral de todo o país.

O período do Volfrâmio já lá ia há alguns anos, matizado de  algumas “estórias pitoresca”, notava-se que o dinheiro começava a escapulir-se das mãos da grande maioria. As dificuldades de comunicação entre as diversas aldeias eram grandes, dada a escassez de carreiras regulares e de transporte de auto próprio muito raro…e daí a sensação de isolamento que sentiam os seus habitantes.

Durante a Grande Guerra e nos dez/ quinze anos que se seguiram, a crise económica era visível e começou a ser vencida, com um Plano Nacional muito duro,  do que resultou um quási esmagamento das classes mais débeis, que “disfrutavam”  a escassez de quasi todos os bens  necessários à sua vida diária. Era usual, por exemplo, que o funcionário público, se deslocasse a pé  quer dentro da Vila, quer até aos arredores mais próximos, para almoçar, suportando o desagradável frio de Inverno, agarrados ao guarda-chuva, encontrando, por vezes, na marcha estugada o calor que faltava pela ausência de sobretudo ou samarra. As ” gabardines” só começaram a vulgarizar-se por essa época, passando a fazer parte do vestuário diário a partir de então.

Dentro das repartições, só o ambiente humano e de apresentação em público, era aparentemente bom, porque o frio ou calor não tinham antídoto eficiente. Aqui era o “reino do funcionário público” que tinha que se apresentar com  “ decência”, não obstante não auferir remuneração suficiente para colmatar as exigências teóricas, duma posição de contacto com os utentes, “representando a República”! Poucos tinham uma retaguarda familiar que permitisse aguentar toda esta carga psicológica, física e principalmente financeira.

No edifício da Câmara, era o reino dos “fatos virados” com o bolso do peito a ocupar o lugar oposto, e o paraíso das meias solas, “botadas” com todo o carinho e eficiência, no sapateiro da zona de habitação.

A dignidade mantinha-se mercê dum grande esforço, estoicismo e esperança de admissão e ascensão numa profissão que o “destino” impunha.

A hora de almoço, tinha variadas localizações de acordo com a morada e as capacidades financeiras de cada um. Os que viviam na Vila ou próximo, a casa era o local da eleição. Todos os restantes ou faziam refeições ligeiras trazidas do domicílio ou recorriam aos restaurantes das proximidades com contractos mensais, que ficavam  mais em conta do que refeições ocasionais.

Os restaurantes envolventes do Município, que me recorde,  eram  três ou quatro. O restaurante Salazar, instalado ao fundo das escadarias do Convento, ao qual já nos referimos em numero anterior, o” Palmilhante” que penso que estava instalado num palacete em mau estado de conservação,( tal como o seu Brazão” mandado picar pelo Marquês de Pombal (?)”), a Pensão de “Zé Caetano “próximo da cerca, da qual tenho uma imagem muito esfumada e a Pensão Coelho, instalada em edifício moderno e bem apresentado, amesendado e frequentado.

A Pensão Coelho, foi propriedade de, Joaquim Pinto Coelho e sua esposa, Albertina Nunes, (“Garrilha”), meus tios e pais de Margarida Nunes Coelho e de Idalina Nunes Coelho, casada com o Sr. Manuel Barros Mouro, exemplo de profissional brilhante, honesto, e trabalhador que se iniciou nas lidas da justiça em São Pedro do Sul e terminou como chefe de Repartição no Palácio da Justiça em Lisboa, anos depois de publicar o “CÓDIGO DE CUSTAS JUDICIAIS”         ( durante anos, a “bíblia” de todos os profissionais do Foro, entre  advogados , Juízes e Chefes da Repartição).

Os olhos dos mais idosos, afagam sempre com uma certa saudade os actos passados, com tendência , como é natural, a adocicar o ambiente real vivido. È normal ouvirmos na boca dos mais velhos –“…no meu tempo é que era bom! Esquecendo os anos cinquenta quando a vida era mesmo difícil!… sem falar da repressão e muito menos da PIDE! Falo e exemplifico com os ordenados auferidos na época, que variavam entre os 900$00, como “copista”  e os 2.200$00, como Chefe de Repartição! Isto já para não falar do pagamento da ” jorna no campo”, que era de sete escudos e cinquenta centavos! Estes valores, para os mais novos, nada dizem, por isso deixo alguns preços ocasionais do dia-a-dia:- uma bica ou um jornal, cinquenta centavos; uma viagem de comboio a Viseu sete escudos, uma refeição, seis ou sete escudos; um fato de fazenda duzentos e cinquenta a trezentos escudos, uma casa ( correspondente a duas assoalhadas de hoje), duzentos escudos. Assim, com a frieza dos números, espero ter conseguido uma maneira fácil de enquadrar o nível de vida local à época.

E vou terminar hoje a nossa conversa recordando que havia um produto de gasto diário, que em todo o reinado Salazarista nunca me recordo de ter sofrido qualquer alteração:- O pão! Quatro tostões, perdão quarenta centavos! A tradução actual em Euros é difícil se nos lembrarmos que duzentos escudos correspondem a um Euro!!! Ou seja o preço de um pão seria de 0,002 cêntimos de euro!

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Redação Gazeta da Beira