Silvino o craque da bola

Em Rede pela vida foi conhecer mais um testemunho de vida

O homem dos sete ofícios já há muito conhecemos, mas Silvino Martins garante que tem muito mais. Com setenta anos vive a vida com a energia dos vinte, sempre com uma mão cheia de projetos. Desta feita, o “Em Rede com a Vida” foi a Nogueira, Pessegueiro do Vouga para ouvir as crónicas do craque da bola, do músico e do artesão. Um testemunho de vida repleto de aventuras. Uma história que vale a pena contar.

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Ouve-se o apito inicial. Começa o jogo e Silvino Martins entra com a mesma garra de sempre. Esta é a rotina de todas as terças-feiras em Pessegueiro, onde joga futsal. A paixão do futebol começou desde que se lembra, nunca passou. Nunca foi profissional, joga só pela paixão. Hoje tem 70 anos e diz que não se podia sentir melhor entre os mais novos. “Eles ainda não me disseram para eu ir embora, tratam-me com todo o carinho”. Em cada jogo dá o seu melhor, “num jogo que eu não marque um golo, já nem é jogo para mim”.

Titular indiscutível aos 70

Joga para esbater preconceitos, mas também para dar o exemplo. Como explica, “quando tinha 40 anos, várias pessoas perguntaram-me se eu não tinha vergonha de andar a jogar com essa idade e isso deu-me vontade de continuar, e dá-me vontade de jogar ainda hoje, quis quebrar este tabu. Hoje, jogo também para dar o exemplo, quero que os mais novos pensem: já que ele joga com aquela idade, eu também posso jogar”.

Para além do futsal, joga, ainda, nas Velhas Guardas do Pessegueirense, onde é também titular indiscutível. “Sou sempre titular e se for preciso jogar, jogo o jogo todo”. Atualmente é lateral direito, antes era avançado. “No começo era atacante, mas depois como achei que a idade estava a avançar, para não avançar tanto, recuei até à defesa”, brinca. Mesmo assim, como garante, “quando vou lá para frente ainda faço um golo, jogo sim-jogo não costumo marcar”. Apesar da sua posição, não costuma fazer muitas faltas. “Que eu me lembre até hoje, só fiz uma falta. Não gosto de fazer faltas, gosto de futebol limpo.”

Na marcação de grandes penalidades é especialista. Nunca falhou um penalti. “O segredo do penalti é pensar que eu vou chutar para ali, a 10 centímetros da trave. A bola se for certinha não falha!”

O lateral direito que mereceu elogios de um internacional português de futebol

Silvino acredita ser “o mais velho de todas as Velhas Guardas do país”, algo que não o intimida, antes pelo contrário. “Até me dá muito orgulho, agora até pelos adversários sou elogiado. Quando chego, sou logo reconhecido, porque eles dizem: aí está o homem, aí está ele de novo.”

Os seus talentos na defesa já negaram “golos certos”. Um deles foi ao internacional João Manuel Pinto, antigo jogador da Seleção Nacional de Futebol. “Neguei-lhe um golo a dois metros da baliza. Num canto, ele foi a cabecear para a baliza e eu tirei-lhe a bola a 20 centímetros da trave, ele foi o primeiro a cumprimentar-me.” O melhor presente, contudo, estava reservado para o fim do jogo. “Disse-me que eu levo alegria para dentro do campo e que queria chegar à minha idade e jogar metade do que eu jogo, estas palavras deixaram-me muito satisfeito!”, relata.

Adepto com Fair-Play

Fora das quatro linhas, torce pelo Sporting Clube de Portugal. No dia em que falámos com Silvino Martins ainda se viviam os festejos da conquista da Taça de Portugal. “Estou muito feliz, eu não vi o jogo, porque não estava em casa, primeiro mandaram-me uma mensagem a dizer que o Sporting estava a perder dois zero, fiquei desanimado, mas depois, telefonaram-me a dizer que tínhamos ganho a Taça”, relata.

Como adepto, Silvino garante que não costuma sofrer, mais do que vitórias, gosta é de ver bom futebol. “Não sofro nada, acho que quem tem que sofrer mais são os jogadores que estão dentro de campo. Eu sou adepto e gosto do futebol pelo futebol. Eu sou sportinguista, mas se o Sporting não merecer ganhar eu não quero que ele ganhe”, explica.

As notas do acordeão

Foi entre as notas melódicas do acordeão que ouvimos a história de Silvino Martins. Se o futebol é uma das suas paixões, a música não lhe fica atrás. Tudo começou, quando com 13 anos começou a trabalhar na alfaiaria do seu pai. “Assim que tivemos eletricidade, tínhamos o rádio sempre ligado, e eu ouvia música durante todo o dia. Ficava com as músicas todas na cabeça… ainda sei essas músicas todas de cor.” Apercebeu-se que tinha bom ouvido, pegou no acordeão e começou a explorar. Apreendeu sozinho. Depois quis saber mais e durante um ano teve aulas de música.

Nunca mais parou. Começou a fazer bailes, onde, na altura, por atuação, ganhava 50 escudos. “Era muito bem pago, um pedreiro, ou um carpinteiro, naquele tempo, tinha que trabalhar dois ou três dias para conseguir esse valor”, recorda. Durante mais de 30 anos esteve no Rancho Folclórico de Sever do Vouga, hoje continua no ativo, há três anos no Rancho Folclórico de Rocas do Vouga.

Uma habilidade aprimorada pela vida. Quem ouve, logo reconhece o talento, o som que sai do instrumento é arrepiante, tal como o são as mãos que percorrem os botões ao compasso da música, como o é, sobretudo, a alma, de quem vê a música como a forma perfeita de expressar-se e adora o que faz. Silvino, contudo diz não ser artista e apresenta o seu dom de uma forma mais humilde. Diz que apenas toca “o suficiente para não errar as notas”, até porque, como diz em tom de brincadeira, “as notas falsas dão prisão”. Como se diz no Brasil, “Toco feijão com arroz, picanha é mais difícil”.

Uma vida repartida entre dois continentes

Natural de Pessegueiro do Vouga, emigrou muito jovem para o Brasil. No coração levou sempre o sonho de voltar. Assim o fez, logo que pôde. Regressou à terra que chama de sua, onde construiu o seu próprio negócio, ao qual se dedicou mais de 32 anos. “Era mais fácil hoje, para mim, estar no Brasil, mas eu sempre tive a ideia de voltar”.

Os primeiros anos foram difíceis, começou do zero, ficou meia dúzia de anos sem voltar a Portugal. Por isso, teve que casar por procuração. “Naquele tempo usava-se se assim, o meu pai representou-me. Depois, a minha esposa veio ter comigo ao Brasil”. Hoje são casados há mais de 50 anos. “É uma data que hoje poucos conseguem alcançar”, sublinha.

Começou a trabalhar, como empregado, numa sapataria, até que a conseguiu comprar. Depois, de negócio em negócio, amealhou dinheiro para regressar a Portugal. Assim o fez, 18 anos depois. “Vim a Portugal, deixei a planta da minha casa pronta, mandei dinheiro para fazer a casa e em 81 já vim de vez”.

Depois disso já regressou ao Brasil, mais nove vezes. É dos amigos e das “peladinhas” ao final do dia que tem mais saudades. No total, Silvino atravessou o atlântico 30 vezes.

Ofícios que se extinguem

Como o pai tornou-se alfaiate. Em poucos anos ultrapassou o mestre. “Disse ao meu pai para me deixar fazer as coisas na máquina, e ele passava a fazer os acabamentos.” Antes era o contrário. “O meu pai tinha que se pôr a pau, muitas vezes tinha que lhe dizer: pai ande mais depressa, senão vou ter que ficar aqui parado.” Depois, aprendeu o ofício de sapateiro. “Quando fui para o Brasil, fui vestido e calçado por mim”, recorda.

Na altura, os sapatos eram feitos à mão. Cada par de sapatos era único e demorava longas horas a ser desenvolvido. “Era tudo à mão, já não se fazem sapatos assim. Eram raros os profissionais que conseguiam fazer um par de sapatos num dia, mas, eram sapatos para a vida, duravam pelo menos 20 anos”. Os tempos mudaram, Silvino não olha para o passado com nostalgia, “é bom que tudo tenha evoluído, sou sempre a favor da automatização”.

Quando regressou do Brasil, dedicou-se aos arranjos. Só fazia roupa e sapatos para amigos e família. Por exemplo, fez um casaco de pele para cada elemento da sua família.

Modo de vida

Nos ofícios, como na vida, sempre teve presente um princípio. O perfecionismo e a vontade de agarrar novos desafios. “A perfeição só não a tem quem não a procura, quando entregava uns sapatos tinha que ter a certeza que estavam prefeitos. Cheguei a pousar várias vezes os sapatos em cima do balção e dizer ao cliente: se encontrar algum defeito não paga, nunca ninguém reclamou”, destaca. Quanto maior era o desafio, mais gozo lhe dá querer superá-lo. “Não tenho medo das coisas difíceis”, garante.

A conversa já vai longa. Mais do que falar é de tocar que Silvino Martins gostar. Por isso, substitui o lugar de orador, pelo de músico. Primeiro uma valsa, depois uma música tradicional, termina com o corridinho da sua autoria. “Vê-se poucas pessoas com 70 anos a fazer aquilo que eu faço”, remata.

Projeto em Rede Pela Vida

Entidade Promotora ADRL

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Projeto apoiado pelo EDP Solidária Barragens

PrintRedação Gazeta da Beira