Quem vive em rede nunca se sente só

Maria Júlia revela-nos o segredo para ser feliz

Maria Júlia sempre viveu em Cedrim. O amor à terra  que a viu nascer levou-a participar nas mas diversas atividades promovidas pela comunidade. Hoje, com 73 anos, não é diferente. No que puder dar o seu contributo, não hesita. De costureira, a atriz, a cantora, a padeira, a catequista… Encontramos Maria Júlia nos mais diversos ofícios. Uma história de vida cheia de projetos que hoje lhe contamos no “Em Rede pela Vida”.

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Nesta edição do “Em Rede pela Vida”, fomos à freguesia de Cedrim, em Sever do Vouga e estivemos à conversa com Maria Júlia que conseguiu encaixar a nossa conversa no seu dia, enquanto terminava um leite-creme que inundava a cozinha com um agradável odor. Aqui, todos os dias são muito agitados, começam sempre bem cedo, logo depois de o sol nascer. As tarefas sucedem-se umas às outras e não há tempo para parar. “Seja lá no que for estou sempre ocupada”, garante. E é assim que gosta de estar, não se imaginava de outra forma. “Estou sempre a querer saber e a querer fazer”. É por isso que muitos vêm bater à sua parte. Muito raramente levam um não. “Estou sempre disposta a colaborar na medida do possível, tudo o que for para estimular o convívio e a união participo com todo o gosto”. Atualmente, colabora com o grupo de Teatro da Jovouga, já tem o tecido para começar a costurar as roupas das cerca de vinte mulheres que vão desfilar nas marchas de S. João, dá catequese e ensaia a música, também para as Marchas. Desafios que concilia com a lida da casa e as suas tarefas habituais.

 

“Temos que fazer algo pela nossa Terra”

O Cedrim de hoje é muito diferente daquele que conhecera na sua juventude. “Antes havia muita gente, vivíamos dias alegres. As pessoas juntavam-se para ir fazer os trabalhos do campo era uma risota pegada. Havia interajuda, diálogo e amizade. Agora, tudo desapareceu. Às vezes costumo dizer: Eu não sei onde estão as pessoas de Cedrim! Há poucos jovens, a freguesia está envelhecida. Sinto muito a falta desse convívio!”

É por isso que estas pequenas iniciativas na freguesia, promovidas pela comunidade, são cada vez mais importantes, nestas pequenas aldeias. São a única forma de não as deixar morrer, defende. “Cedrim tem que aproveitar estas pequenas coisas, temos que nos estimular uns aos outros e fazer alguma coisa pela nossa Terra, é só isso que temos”.

 

Um palco sem segredos

Atualmente faz parte do Grupo de Teatro da Jovouga, há cerca de três anos. É o elemento mais velho, algo que não a intimida. “Eles gostam de me ver lá e têm sempre muito cuidado comigo”, explica. A carreira de Maria Júlia no teatro amador é longa. Da comédia ao drama fez um pouco de tudo. “Fiz muitos, muitos papéis: Fiz o erro judicial, João corta-mar, a vingança da cigana, princesa improvisada… Fazia mais dramas, porque eu fingia o chorar muito bem, toda a gente pensava que eu estava mesmo a chorar!”

Tantos anos depois, ainda se lembra de algumas falas do seu primeiro papel, quando andava na quarta classe. Era a “Cidade” e contracenava com a “Aldeia”. Uma obra de Abílio Mesquita. “Eu começava- Quem és tu assim tão simples?- E ela respondia- E tu quem és afinal? – A nobreza da cidade! -Dizia, e ela respondia-Aldeia de Portugal.”

Hoje, quando sobe ao palco diz que é mais difícil, “eles não querem lá o ponto”, lamenta. Nada que a ponha nervosa, é com confiança que enfrenta a plateia. “Não fico nada nervosa, quando chega à primeira vez olho, depois, não me importo nada.” E se for preciso improvisar, também está cá para isso. “Às vezes, ficava um bocadito a nadar, não sabia bem o que ia dizer, mas não me atrapalhava e continuava”, garante.

Costureira de profissão e vocação

No tempo da sua juventude, ninguém continuava os estudos. “Aprender a costura era o melhor que os pais podiam dar a uma filha” e foi esse o seu destino. Todos os dias ia apreender com a sua vizinha que lhe ensinou o básico “Era muito exigente, ela dizia que gostava de mim, mas batia-me, às vezes dava-me com a tesoura. Eu não gostava nada, e deixei de querer ir. A minha mãe perguntava-me: então não vais hoje a casa da prima? Eu respondia-lhe, hoje, não vou!” E assim dizia no dia seguinte e no dia a seguir a esse. Depois de saber o essencial, começou apreender sozinha, de desafio em desafio, ia aperfeiçoando-se. “Ainda me lembro do primeiro vestido que fiz, era para uma menina… ficou muito bonito, ficou muito bem… só o decote é que estava muito largo, disse para mim mesma, nunca mais posso fazer assim”.

De vestido em vestido, Maria Júlia tornou-se uma grande costureira, conhecida em Cedrim e arredores. Ao longo da vida, fez mais de 100 vestidos de noiva. Adorava o que fazia. “Demorava cerca de uma semana a fazer cada vestido, o melhor era quando terminava e olhava para o trabalho final, sentia-me orgulhosa, gostava mesmo de olhar para aquilo quando estava feito.”

Tal como os grandes poetas, também Maria Júlia pedia a Deus para iluminar os pontos que dava. “Eu ia à igreja e pedia a Deus que me iluminasse, ao mesmo tempo que orava ia, automaticamente, desenhado todo o vestido na minha cabeça”. É uma mulher de fé algo que, segundo a sua opinião, faz toda a diferença. “Quando nós temos fé, a nossa vida tem outro sentido. Há uma convicção em nós que nos leva a acreditar e a mover-nos. Na nossa vida quotidiana, a fé faz toda a diferença”.

Hoje, no que toca à costura, já não é a azáfama de outros dias, em que muitas vezes se perdia pela noite dentro a costurar. Contudo, Maria Júlia, ainda não perdeu o jeito nem o gosto. Prova disso é o desafio que, ano após ano, vai dizendo sim: costurar os trajes das marchas de Cedrim. “São muitos dias de trabalho, mas é com muito gosto… nunca levei um tostão. Ver no dia da festa aquelas mulheres todas vestidas é um gosto enorme”, confessa.

A necessidade aguça o engenho

Não são só os dotes de costureira que dão fama a Maria Júlia. Todas as semanas, continua a tradição que iniciou em jovem e põe o pão ao forno de lenha. São muitas as pessoas que lhe vêm pedir para cozer a broa, muitas, trazem o milho. Maria Júlia não faz para fora, apenas para amigos e conhecidos que lhe vão pedindo.

Foi quase por acaso que começou a cozer a broa. Quando tinha 18 anos a sua mãe foi operada e Maria Júlia teve que a substituir em algumas tarefas. “Na altura tínhamos uma grande casa de agricultura, havia dias em que eram 18 pessoas aqui a trabalhar, nós costumávamos-lhe dar a comida. A minha mãe estava no hospital e o meu pai estava preocupado. Então e agora quem coze a broa? – Perguntava. E eu disse, eu vou cozê-la. Aventurei-me. Foi o ter que ser, era uma necessidade. Saiu bem, as pessoas gostaram, a partir daí já não me atrapalhei mais”, relata.

Uma receita de família que faz as delícias de quem prova

Para além da broa, há ainda uma receita antiga de família que é, por estes lados, muito apreciada. Um pão doce, semelhante ao folar. Maria Júlia aprendeu com a mãe que, por sua vez, já tinha apreendido com outra familiar. Sempre que amassa este doce, vêm-lhe à memória recordações da mãe. “Sei que onde ela está, fica contente quando eu o faço”.

Uma fórmula antiga, aprimorada pelo tempo que faz as delícias de quem prova. “Pedem-me para não deixar de fazer.”

“Guarda a receita em segredo ou não se importa de dar?”, questionamos. “Não é segredo nenhum, eu não levo nada para a cova, mas não é fácil a pessoa fazer sem ver!”, responde prontamente. “De fermento é a terça parte daquilo que se vai cozer. Aqui, já se deve colocar o sal. Quando está lêvedo, acrescenta-se o açúcar. Para seis quilos, não meto bem três quilos, mas anda bem perto. Depois, coloca-se o azeite, a canela e quatro ovos por cada quilo. A seguir, amassa-se bem, estende-se e faz-se os que bolos. Antes de ir ao forno é preciso dar-lhe uns cortes, depois demoram 20 minutos, meia hora a cozer. Finalmente, são untados com banha”.

“Nós é que fazemos a solidão, só envelhecemos se quisermos”.

Maria Júlia nunca casou, nem nunca teve filhos. “Tive muitos pretendentes… agradecia-lhes muitos, mas dizia-lhes sempre que não, que não estava interessada. Não era essa a minha vocação, recorda”. Apesar de viver sozinha há muitos anos, nunca se sentiu só. “Ai isso não, nunca me senti sozinha, nunca senti solidão. Nós é que fazemos a solidão e nós é que envelhecemos, só ficamos velhos se quisermos”, garante. Também para isso há uma receita. Como explica, “nunca nos podemos sentir sós, temos sempre que procurar fazer algo que possamos. Temos que trabalhar sempre, não nos podemos limitar a nós próprios. Se nos ocuparmos, se tivermos uma atividade, vamos convivendo com os outros e não nos sentimos sós”. Daqui é esta a lição que levamos. Importa, sempre, ter objetivos para prosseguir. Importa sempre abraçar desafios. Importa sempre nunca ficar só e viver em rede, em Rede pela Vida.

 

Projeto em Rede Pela Vida

Entidade Promotora ADRL

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Projeto apoiado pelo EDP Solidária Barragens

PrintRedação Gazeta da Beira