João Fraga de Oliveira*

Transição digital, teletrabalho e “direito de desligar”

“(…) Apesar de todos os benefícios do teletrabalho, é importante não sucumbir a uma cultura de disponibilidade permanente dos trabalhadores”.

Não há dúvida sobre os benefícios do teletrabalho. Salvou inúmeras vidas e postos de trabalho. (…) No entanto, comporta riscos elevados, uma vez que, com a ajuda das ferramentas digitais, promove a cultura do «sempre conectado», em que os trabalhadores estão acessíveis em permanência para fins relacionados com o trabalho.

Trabalhar a partir do domicílio torna particularmente difícil desligar-se. Com o aumento do teletrabalho, os trabalhadores tornaram-se vítimas dos seus telefones, das suas mensagens de correio eletrónico e dos seus computadores. Podem sentir-se constantemente pressionados para verificar se receberam mensagens relacionadas com o trabalho, mesmo à noite e aos fins de semana, preocupados com o facto de a sua entidade patronal lhes exigir atenção imediata (…).”

Citaram-se excertos de um documento do Comité Económico e Social Europeu (CESE) de 13/01/2021[1] assente numa audição, em 7 de Janeiro de 2021, de várias entidades e instituições (membros do CESE e do Parlamento Europeu, representantes da Comissão Europeia, da Presidência portuguesa da UE e de organizações da sociedade civil), sobre o “direito de desligar” do trabalho na União Europeia.

Também a Organização Internacional do Trabalho (OIT), no início deste ano, voltou a defender o “direito a desligar para quem trabalha a partir de casa”.[2]

O teletrabalho, de momento em Portugal legalmente obrigatório (“sempre que este seja compatível com a atividade desempenhada e o trabalhador disponha de condições para as exercer”[3]) como medida de contenção da pandemia, pode ser um instrumento organizativo e de gestão para prevenir riscos profissionais (na actual conjuntura sanitária, essencialmente, um risco biológico) e, mesmo, de conciliação do trabalho com a vida familiar. E até, como agora é evidente, uma forma de organização do trabalho que permite evitar o desemprego de muitos trabalhadores.

Contudo, pode também ser um factor de riscos profissionais e isso não pode deixar de ser também ponderado e reflectido. E agido …

Acrescendo aos riscos tradicionais (físicos, químicos e biológicos), que perduram (em muitas situações, até agravados) em muitos locais de trabalho, algo de “novo” que as “novas formas de organização do trabalho” (NFOT) e as “novas tecnologias” estão a introduzir e a provocar, ou pelo menos a acentuar, nas relações e condições de trabalho, degradando-as, são também riscos de índole psicossocial (que associam e mesmo potenciam riscos físicos, mentais e sociais, quer quanto a doenças profissionais, quer quanto a acidentes do trabalho).

Exemplos de riscos, em geral, muito associados a este contexto e são, para além do esgotamento físico e mental (burnout), o de lesões ou doenças músculo-esqueléticas, cujo risco, o de estas, no caso particular do teletrabalho, pode ser acentuado não apenas pela sobre-intensificação do trabalho mas também pela falta de condições ergonómicas do equipamento de trabalho utilizado pelo trabalhador, dado que, não lhe sendo este fornecido pelo empregador, o obrigado a recorrer a equipamento e mobiliário (para além do espaço, claro) doméstico.

Claro que, na tendência do actual contexto tecnológico, organizacional, organizativo e gestionário do trabalho, estes “novos” riscos profissionais não emergem apenas do teletrabalho mas, mais ainda, do que de “novo” no domínio do trabalho se projecta no horizonte e até já é muito realidade efectiva em decurso de certos entendimentos gestionários da “transição digital”[4] que desconsideram a centralidade humana, social, económica e necessariamente e política das condições de trabalho, da qualidade do trabalho (e do emprego, que muito se relaciona com a qualidade do trabalho ou com a falta desta), do “trabalho digno” (conceito que, desde há 20 anos, é central na missão e acção da OIT).

Neste aspecto, um exemplo marcante são as condições de trabalho realizado em e a partir de plataformas digitais. Isto, para já não falar de outras modalidades de serviços cujo sistema técnico e tecnológico assenta muito nas novas tecnologias mas cuja implantação nas actividades económicas não é tão nova como isso, como é o caso dos call centers[5]. Nos quais, aliás, grande parte do trabalho está a mudar-se de forma estrutural e permanente (e não apenas por causa da pandemia) para teletrabalho.

Assim, as aspas, atrás, na palavra “novo”, significam o quanto no domínio das condições de trabalho pode haver de contradição nas novas formas de organização do trabalho e na inovação tecnológica.

Isto na medida em que, de facto, muito destas situações de “transição digital” do trabalho (TDT), apesar de novas em termos gestionários e do ponto de vista tecnológico e organizativo, do ponto de vista de organização do trabalho face às suas consequências humanas e sociais, às condições de trabalho e de vida, em muitos casos, pouco ou nada se diferenciam das que, na generalidade dos locais de trabalho, eram regra há um século, com a “organização científica do trabalho” (OCT)[6]

Se há vertente das condições de trabalho em que isso, então e agora, é especialmente evidente é a sobre-intensificação do trabalho (que é o que, agora tecnologicamente com a TDT como antes mecanicamente com OCT, essencialmente, pode consubstanciar o trabalho “sem desligar”).

Uma outra contradição é a de, ao poder ser o teletrabalho, “salvando inúmeros postos de trabalho”, sim, um instrumento de combate ao desemprego, mesmo um suporte complementar do ideal do “pleno emprego”, pode, ao mesmo tempo, pela sobre-intensificação do trabalho, ser um factor de degradação das condições de trabalho quando, em condições de organização, duração e ritmos de trabalho sobre-intensificados, degenera em … “emprego pleno”, “sem desligar”.

Contradição também, muito associada à precedente, é a de que, apesar de se reconhecer, como reconhece o documento do CESE (e a realidade das actuais circunstâncias confirma), que o teletrabalho pode ser uma via de prevenir ou atenuar o desemprego, é este mesmo desemprego que, agora crescente, de “cá de fora”, “entra” (como sempre “entrou”) pelos locais de trabalho “dentro”, (o que, com o teletrabalho, significa também pelas casas dos trabalhadores “dentro”) e, subjectiva e objectivamente, obriga os trabalhadores, para evitarem cair (também) no desemprego, a “aceitarem”, não só salários baixos e mesmo o pagamento de custos pessoais acrescidos com esta modalidade de organização do trabalho, mas também condições de sobre-intensificação do trabalho. Este risco cresce quando o trabalhador (e concretamente o teletrabalhador) se encontra numa situação de precariedade quanto a vínculo laboral (por exemplo, contrato a termo).

A ser assim, como sempre, também no teletrabalho, as vítimas do desemprego são os desempregados … e os empregados.

É significativa a imagem (foto) que, no sítio da Internet do CESE, ilustra a versão original do citado documento: alguém, em casa, sentado à frente de um computador, a calçar chinelos de quarto e vestido com calças de pijama mas com camisa e gravata. Imagem figurativa de que no teletrabalho, a não se poder “desligar”, não vale a pena despir todo o pijama que se terá que vestir de novo mal se acabe de trabalhar. Mantêm-se assim vestidas as calças de pijama e os chinelos de quarto, se bem que se tenha de estar de camisa e gravata para mostrar ao (tele) controle (tecnológico) patronal.

Aliás, a impossibilidade de controle (“supervisão”) presencial (“biológico”) do trabalhador pelo empregador (como acontece o trabalhador é realizado nas instalações do empregador) pode, no teletrabalho, ser suprida pelo tele-controle (tecnológico) é, para além da organização do trabalho e avaliação do desempenho, também um dos factores de indução (submissão à), subjectiva e objectiva, da sobre-intensificação do trabalho.

Pelas preocupações (e pré-ocupações), não é de agora, sempre aconteceu e continua a acontecer (mesmo no regime de organização e localização clássica, presencial, do posto de trabalho) que quem trabalha tenha que “levar a casa para o trabalho”. E, também por elas (para além de que pelas pós-ocupações), há muito que quem trabalha leva o trabalho para casa. Aliás, mesmo literal e materialmente, isso acontece com regularidade por parte de muitos trabalhadores (os professores, por exemplo, mas há muito mais profissões ou situações de trabalho em que tal, por regra, se verifica).

Mas agora torna-se cada vez mais generalizada e permanente, estrutural e concreta, a indistinção e permeabilidade entre tempo de trabalho e tempo livre (ou, pelo menos, tempo de “não trabalho”), o desaparecimento de facto dos limites, da fronteira, entre tempo profissional e tempo pessoal e familiar.

Esta é, também, mais uma contradição da inovação que, por exemplo, a generalização do teletrabalho constitui quando, no que respeita a condições de trabalho, se acentua a sobre-intensificação do trabalho: o teletrabalho, podendo ser, em condições de organização, duração e ritmo de trabalho dignas, uma forma de compatibilizar a vida profissional e a vida pessoal e familiar, degenera num factor de perigosa (profissional, pessoal e familiarmente) incompatibilização das condições de trabalho face às condições de vida pessoal, familiar e social das pessoas.

Em França, há quatro anos que o “direito a desligar” já foi especificamente consagrado na Lei, sendo esta justificada, em síntese, pelas estudadas implicações sociais e no domínio da saúde do trabalho (já referidas, burnout e outros riscos de saúde associados) e da saúde pública da sobre-intensificação do trabalho, que é a negação concreta desse direito.

Entretanto, em Portugal, o “direito a desligar” tem sido e continua a ser por cá objecto de discussão pública[7] e até mais ou menos formal (inclusive no contexto da discussão do Orçamento de Estado para 2020[8]). Mas nenhum avanço regulamentar específico neste domínio houve por cá até à data.

É certo que, no plano teórico, é defensável que este conceito possa (deva) ser enquadrado legalmente pelo actual quadro normativo (Código do Trabalho e não só), tendo em conta o que este já estabelece há muito quer quanto a teletrabalho, quer quanto a organização e duração dos tempos de trabalho, quer, mesmo, quanto a outros direitos laborais, inclusive em matéria de segurança e saúde do trabalho.

Contudo, é de reflectir se não merecerão alguma atenção legislativa (mais) própria certos riscos específicos do e no teletrabalho.

Por exemplo, no que tem a ver com a segurança do trabalho, com os riscos de acidentes de trabalho (AT) que, evidentemente, não desaparecem com o teletrabalho. É que, se bem que se possa (deva), em geral e literalmente, entender que os AT em regime de teletrabalho são plenamente subsumíveis no actual quadro normativo, porque a jurisprudência sobre este assenta muito na noção clássica do “horário e local de trabalho” do posto de trabalho presencial nas instalações do empregador, pode, sobretudo numa perspectiva de (não) responsabilização do empregador e consequente (não) reparação dos AT, ser não reconhecido como aplicável.

Para além disso, é de ter em conta que, na prática, quer do ponto de vista de controle público (essencialmente, pela acção da Autoridade das Condições de Trabalho – ACT), quer do ponto de vista judicial, dado o condicionalismo técnico, tecnológico, organizativo, empresarial (gestionário), familiar e social em que a maior parte do teletrabalho é realizado, se bem que não todos mas alguns dos direitos dos trabalhadores neste domínio podem ser, dadas as razões já referidas, não só de difícil exercitação e mesmo só reivindicação directa pelos trabalhadores, como não haver garantia de eficácia, de eficiência e de prontidão na efectivação pela acção do Estado.

Enfim, tal como muito o que de “novo” (voltam as aspas) está por aí a emergir ou mesmo já em plena concretização quanto a degradação das condições de trabalho com origem num entendimento gestionário vicioso da “transição digital”, esta é uma matéria que necessita de reflexão (para a acção, claro…) quanto ao que há efectivamente a fazer. Ou a refazer. Ou a complementar.

Quer ao nível político (o que aqui, essencialmente, poderá querer dizer regulamentação, legislação laboral), quer ao nível contratual (o que aqui, essencialmente, quer dizer negociação e contratação colectiva), quer ao nível de regulação (o que aqui, essencialmente, quer dizer controle público e justiça do trabalho).

Pena é que, não sendo disso desculpa absoluta a pandemia, essa reflexão / acção já virá tarde.

*Inspector do trabalho aposentado

[1] Trabalhadores da UE devem ter direito a desligar-se | European Economic and Social Committee (europa.eu)

[2] wcms_765897.pdf (ilo.org) e OIT torna a defender ″direito a desligar″ para quem trabalha em casa – DV (dinheirovivo.pt)

[3] Decreto-Lei Nº6-A/2021, de 14 de Janeiro

[4] “A transição digital e o longo braço do trabalho” – Gazeta da Beira de 30/12/2020 – João Fraga de Oliveira | Gazeta da Beira

[5] “Emprego digno: não há cal center que corte a raiz ao pensamento” (I e II) – Gazeta da Beira de 11/01/2018 e de 26/01/2018- João Fraga de Oliveira | Gazeta da Beira e João Fraga de Oliveira | Gazeta da Beira

[6] “Para onde volta o trabalho humano?” – Gazeta da Beira de 28/04/2016 –Para onde volta o trabalho humano? | Gazeta da Beira

[7] Rejeitadas todas as propostas para regular o direito de desligar – Publico, 09/07/2019 –Rejeitadas todas as propostas para regular “direito a desligar” | Trabalho e emprego | PÚBLICO (publico.pt)

[8] “Negociações do OE trazem ‘direito de desligar’ de volta mas o acordo é difícil” – Jornal de Negócios, 10/10/2020 – “Direito a desligar” volta a estar em cima da mesa – Lei Laboral – Jornal de Negócios (jornaldenegocios.pt)

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