“O trabalho não é uma mercadoria”

João Fraga de Oliveira

“Um dos problemas mais graves que hoje atingem o nosso País diz respeito à situação do mundo do trabalho”.

Cito a primeira frase da mensagem da última Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), realizada em Fátima, em 14/11/2013, a que já se referia o anterior número da GAZETA DA BEIRA.

É especialmente significativo que esta mensagem tivesse por título “Os desafios éticos do trabalho humano”, título a que – reconheça-se – o corpo da mensagem faz jus, pela concepção do trabalho que expressa, marcadamente humanista.

Na verdade, o trabalho é “apenas” aquilo (muito) que as máquinas não podem fazer. O trabalho é, afinal, “um olho que vê, um cérebro que pensa, um músculo que age”. O trabalho não é um mero conceito abstracto, económico, jurídico ou sociológico. É um conceito do foro essencialmente humano, visto que, concretamente, se consubstancia nas pessoas que trabalham.

Por outro lado, a mensagem da CEP afirma que “(…) o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra”, realçando, assim, a centralidade social do trabalho,

De facto, estão associados ao trabalho valores sociais fundamentais, intrínsecos das pessoas, como tal e como cidadãos, designadamente, a vida, a integridade física, a saúde, o sustento, a dignidade, a educação, a cultura, a família, a inserção, integração e participação social, a cidadania.

Outro aspecto a sublinhar é que, como se diz nessa mensagem, “não é qualquer trabalho que satisfaz as exigências da dignidade humana”, o que frisa o direito de quem trabalha a um salário justo e condições de trabalho que lhe garantam a integridade física, a saúde, e a dignidade profissional, pessoal e social. Algo (infelizmente) muito pertinente e actual, visto que, ultimamente, sob o pretexto da “crise” (da real e da que para tudo serve de pretexto), cresce a tendência, como também se alerta na mensagem da CEP, para se “promover o emprego através do cerceamento dos direitos dos trabalhadores”.

Nos últimos anos, sob o estafado pretexto do “combate ao desemprego” sempre quase só pela via da desvalorização dos salários e da “flexibilização” da legislação do trabalho (que até já as associações patronais contestam como decisivo na “competitividade” das empresas), prosseguiu-se a continuada desregulamentação do Direito do Trabalho no sentido da desprotecção legal, isto é, como refere a CEP, do “cerceamento dos direitos dos trabalhadores”.

Esta fragilização legal dos trabalhadores nas relações de trabalho, num contexto em que o desemprego “cá fora” pode ser (e está a ser) utilizado como instrumento de abusos patronais ou gestionários, é, depois, um dos factores da crescente desregulação (incumprimento da legislação do trabalho nos locais de trabalho) em vários domínios: horários de trabalho, salários, férias, direitos de parentalidade, contribuições para a segurança social, etc.

Esta mensagem é tanto mais importante quanto, se a situação no mundo do trabalho já constitui um “problema grave”, o Governo português, não só se mostra subserviente como defende as pressões internacionais (por exemplo, do FMI, quanto à contenção – e até redução – do salário mínimo nacional e às restrições na contratação colectiva de trabalho) no sentido do seu maior agravamento.

“À liberdade de mercado, sucedeu a hegemonia económica, à avareza do lucro seguiu-se a desenfreada ambição do predomínio, e assim toda a economia se tornou horrivelmente dura, inexorável, cruel”.

“O servilismo dos poderes públicos aos interesses de grupo acaba no imperialismo internacional do dinheiro”.

Lendo estas duas frases, muita gente dirá que, pelo seu “radicalismo político”, estão desactualizadas e deslocadas do tema central deste texto: o posicionamento de uma organização religiosa (a CEP) relativamente ao trabalho humano.

Contudo, enganar-se quem tal concluir. Estas citações são de duas encíclicas papais, justamente incidentes no Mundo do Trabalho: respectivamente, a encíclica Quadragesimo Anno, (Papa Pio XI, 15/5/1931) e a encíclica Mater et Magistra (Papa João XXIII, 15/5/1961).

A sua flagrante actualidade demonstra, por um lado, o quanto o trabalho humano, pela sua centralidade social, não pode ser descontextualizado do condicionalismo económico, designadamente, quanto à degeneração deste para o predomínio da especulação financeira sobre a economia como ciência (e processo) orientada para a criação de riqueza colectiva, emprego digno e desenvolvimento humano e social.

E, por outro, o quanto o trabalho humano também não pode ser dissociado (como condicionante e resultante) das opções políticas, o que explica o quanto, actualmente, uma orientação ideológica de cariz neoliberal e tecnocrática, objectivamente, desconsidera a natureza (e implicação) essencialmente humana e social do trabalho, caracterizando-o, no discurso e nas decisões políticas (por exemplo, na continuada desvalorização dos salários, no aumento da precariedade, na facilitação de despedimentos, enfim, na recorrente desregulamentação e fomento da desregulação de direitos), como um mero preço (custo) de produção, “bode expiatório” da falta de competitividade da economia.

Sublinhando a importância da mensagem da CEP, se, sem dúvida, é preciso alertar para os desafios “éticos” do trabalho humano (por exemplo, no quanto, nos locais de trabalho, prossegue a falta de cumprimento da lei e a degradação das condições de trabalho), é preciso também dar atenção (e acção) aos desafios políticos do trabalho humano, nomeadamente ao quanto nisso se verifica uma recorrente desregulamentação de direitos que constitui um verdadeiro retrocesso social e civilizacional.

Dez dias antes da publicação da mensagem da CEP, em 4/11/2013, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) apresentou em Lisboa o relatório Como enfrentar a crise do Emprego em Portugal: que caminhos para o futuro?

Ora, se da mensagem da CEP se conclui que os “desafios éticos do trabalho humano” serão a antítese da sua mercantilização e consequente desumanização, este relatório da OIT, ainda que de cariz mais técnico, articula-se, no plano dos princípios, com essa mensagem.

Não surpreende. “Os problemas graves que atingem o mundo do trabalho” a que se refere a CEP continuam a justificar que se lembre que o trabalho se consubstancia nas pessoas que o fazem, que se recorde (outra vez…) o que, vai fazer no próximo mês de Maio 70 anos (10/5/1944), foi proclamado em Filadélfia (EUA), no âmbito da OIT:

“O trabalho não é uma mercadoria”. teste

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