Pessoas ou obreiras?

Crónicas do Olheirão

A nossa sociedade está a caminhar para uma modo de organização no mínimo estranho e perigoso.

Numa colmeia ou num formigueiro cada elemento não existe por si só e os indivíduos funcionam como células de um corpo maior.

Quis a evolução da vida que os indivíduos da espécie humana desenvolvessem, mais do que qualquer outros, a consciência da sua existência individual e que sejam dotados da capacidade de tomarem decisões individuais mesmo contra o seu grupo.

Essa consciência de que cada individuo é uma entidade com valor próprio tem levado a que desde a Grécia antiga se tente afirmar a importância da pessoa como elemento essencial da sociedade.

Houve imensos progressos nesse percurso, sobretudo nos séculos XIX e XX, contudo este início do século XXI parece estar a levar-nos por um caminho de grande retrocesso.

No discurso político os indivíduos estão a perder importância em favor de entidades coletivas e são, claramente, reconhecidos mais direitos e menos obrigações às empresas do que às pessoas.

Parece de facto impor-se a conceção dos  seres humanos como peças subordinadas aos interesses de organizações das empresas como se fôssemos obreiras numa colmeia.

O estado e o governo foram, durante anos, vistos como elementos centrais da proteção dos direitos individuais.

Hoje não é preciso um grande esforço para  vermos o estado e os governos como protetores dos interesses das empresas, ainda que isso os leve a reprimir os direitos das pessoas.

O expoente deste modelo é a China onde um partido comunista  está claramente ao serviço das  empresas e, sempre que necessário, pronto a reprimir os mais básicos direitos das pessoas.

Esta forma de pensar tem já manifestações na legislação e nas políticas concretas do nosso e dos outros governos.

Há exemplos, verdadeiramente, notáveis.

Os fundos de investimento imobiliário, que no essencial se dedicam a negócios especulativos, não pagam IMI como pagam os cidadãos pelas suas casas.

Se uma casa for comprada por uma empresa offshore não paga imposto. O que tem sido aproveitado por pessoas, com capacidade para criarem essas sociedades, para comparem casas de luxo sem pagarem imposto.

Esta situação constitui de facto uma dupla isenção de imposto, pois  o dinheiro da empresa offshore, muito provavelmente, está lá porque não pagou outros impostos que devia ter pago.

As compras e vendas de ações ou de participações em empresas também não estão sujeitas aos mesmos impostos que outras transações com património.

A reforma do IRC, que tem como único objetivo diminuir os impostos sobre os lucros das empresas, é feita num momento em que o IRS aumentou brutalmente.

A única grande reforma que este governo fez foi reduzir os salários e os direitos laborais reforçando a posição das empresas e fragilizando as pessoas.

O argumento a favor destas políticas é que se destinam a atrair capitais e investidores e que se não lhe dermos essas vantagens eles vão para outro lado.

As empresas são uma forma de organização social que visa facilitar a vida das pessoas e não entidades que derivem de alguma ordem divina e estejam acima das pessoas.

Os governos estão tão focados nas empresas que obrigam os próprios cidadãos a transformarem-se em empresas para tratarem da sua vida. Daí os empresários em nome individual, as sociedades unipessoais, etc…

Numa perspetiva de curto prazo este recuo dos direitos humanos parece justificável pela crise. O meu receio é que de recuo em recuo até escravatura venha a ser justificável para assegurar a rentabilidade das empresas.

• Mário Pereira

——————————————————————————

Mais artigos

Marketing ou abuso de posição? (Ed. 641)
As autárquicas também foram um voto de esperança (Ed. 640)
Eleições em Oliveira de Frades (Ed. 639)