Francisco de Almeida Dias

Rubrica Portugal é mátria

Let your heart be light

Next year all our troubles will be out of sight…

Estes versos, que hoje fazem parte do nosso património afetivo comum, ouvidos e entoados de novo, ano após ano, nesta quadra, apareceram em Meet me in St. Louis (Não há como a nossa casa), um daqueles musicais cheios de sentimento em technicolor, produzidos pela Metro-Goldwyn-Mayer, no caso, para o Natal de 1944. Foi durante estas filmagens que o realizador Vincent Minelli iniciou a sua história de amor com a encantadora Judy Garland, que, interpretando Esther Smith, cantava para consolar a irmãzinha “Tootie” (Margaret O’Brien) na iminência da mudança da cidade do Missouri, onde todos se sentem felizes, para Nova Iorque, onde o pai acabava de ter uma oportunidade de trabalho. O final é feliz, claro: a família não partirá e para a história do cinema ficou mais esta cena intimista e preciosa entre as irmãs, ao som da bela voz de contralto de Garland – que haveria de levar às lágrimas as tropas americanas em serviço durante a II Guerra, quando para elas a reinterpretou na Hollywood Canteen.

Em Portugal, a 23 de dezembro desse mesmo ano, surgia o primeiro “Natal dos Hospitais”, iniciativa do jornal Diário de Notícias, inspirado no anterior “Natal das Crianças dos Hospitais”, promovido pela poetisa Lutegarda Guimarães de Caires (1873-1935). Setenta e cinco anos depois dessa edição de estreia, serve a ocasião para recordarmos a sua primeira apresentadora, Mirita Casimiro, descendente de sampedrenses e símbolo mesmo, que se tornou naqueles anos, da mulher beirã, ao lado do que era então o seu marido, o grande ator Vasco Santana (1898-1958).

Desde o casamento, a 14 de agosto de 1941, na capela dos Duques de Cadaval em Sintra, Mirita e Vasco fizeram furor nos palcos do país, em revista e opereta, encarnando uma espécie de “Bucha e Estica” à portuguesa: dois verdadeiros ídolos populares, com sucesso sempre garantido, atestado hoje pelo que a imprensa nos deixou, não havendo infelizmente registo cinematográfico dessa parceria. E, nesse quarto Natal de casados, bem próximo da casa onde viviam (na Rua Carlos Mardel, 14), ali estavam os dois, sobre um palco improvisado, no entretanto demolido Hospital de Arroios, à Praça do Chile, em Lisboa, presidindo a «uma linda hora de felicidade e de alegria», de «sorrisos e de emoções discretas, de gargalhadas francas», provocadas pelas «grandes damas dos palcos portugueses, os artistas mais queridos das plateias lisboetas, vedetas do cinema, do music hall e da rádio, gente hilariante do circo e as mais formosas vozes da canção», como nos conta a reportagem dessa ocasião.

Enquanto esperavam a consolatória entoação de Judy (e haveriam de esperar até 18 de junho de 1946) os portugueses fragilizados, não pela guerra, mas pela doença, podiam ir gozando Mirita. Aliás, entre Judy, nascida Frances Ethel Gumm, numa cidadezinha do Minnesota, a 10 de junho de 1922 e Mirita, nascida Maria Zulmira Casimiro d’Almeida em Espinho (por acidente, terra de veraneio e de exibições tauromáquicas da família viseense, com origem no Bairro da Ponte, aqui em São Pedro), a 10 de outubro de 1914, muitos sãos os traços biográficos comuns: o virem ambas de famílias dedicadas às artes, o terem-se distinguido precocemente em cima dos palcos pela sua voz (de contralto, as duas) e pela sua verve artística, e depois também a vida intensa e pouco feliz nos amores e a morte dramática, a poucos meses de distância – a americana a 22 de junho de 1969, aos 47 anos, em Londres e a portuguesa a 25 de março de 1970, aos 55 anos, em Cascais.

Mirita, como Judy, foi atriz, cantora, dançarina e artista de vaudeville. Mas, evidentemente, o star system português dos anos Trinta e Quarenta pouco tinha que ver com a “Era de Ouro” dos musicais de Hollywood. Todavia – honra seja feita a Leitão de Barros, realizador, e aos autores revisteiros José Galhardo, Alberto Barbosa e Vasco Santana (então ainda apenas candidato a marido) – compreendeu-se logo em 1937, a dois anos da sua estreia nos palcos lisboetas com os cantares da Beira, na revista “Viva a Folia”, que Mirita era um caso único e que merecia um filme feito “por medida” para si: Maria Papoila. [Este facto vir-se-ia a repetir apenas 10 anos volvidos para Amália, com Fado, História de uma cantadeira, realização de Perdigão Queiroga.] Na verdade, ainda que muitos hoje possam já não identificar exatamente Mirita Casimiro, não creio que haja quem seja incapaz de entoar o célebre mote de Maria Papoila:

Adeus ó terra, adeus linda Serra de Estrela a brilhar

Adeus aldeia, que eu levo na ideia não mais cá voltar…

 

 

 

O divórcio de Vasco Santana em 1946, apenas 5 anos volvidos sobre o início de um casamento tempestuoso, fez-lhe terra queimada em redor, no meio teatral lisboeta. Depois de muito tentar lutar contra as dificuldades com que então se embateu, resolve partir para o Brasil em 1956, onde estará até 1964, anos de atividade intensa, como irá relatar a Jorge Segurado, numa longa entrevista hoje disponível on line nos arquivos da RTP, apenas três semanas depois do regresso e ainda com algumas inflexões brasileiras no sotaque (https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-mirita-casimiro/). Do Brasil voltará diversa: com um segundo casamento falhado – com o antigo atleta e jornalista desportivo João Jacinto, que lhe deu a sua única filha, Maria, dita Mariquita – mas mais bela; Mirita foi também entre as portuguesas uma precursora das operações plásticas, e, com o importante “nariz Casimiro” reduzido a metade, os seus olhos fundos pareciam maiores e ainda mais brilhantes.

No país irmão faz teatro, rádio, televisão – de que a imprensa brasileira da época deixa notícia – e, de toda essa atividade, destaca-se a divulgação de escritores e poetas portugueses, o que certamente burilou a sua sensibilidade e a preparou para o próximo, inesperado, fantástico ato final da sua vida. De facto, a viragem que então faz na sua carreira é notável, e deve-se ao convite do jovem encenador Carlos Avilez: do teatro popular ao teatro empenhado, ei-la no palco do Teatro Experimental de Cascais, logo em 1965, protagonista de A Casa de Bernarda Alba de Federico García Lorca. Foram apenas três os anos em que deu provas de extremo profissionalismo junto aos colegas da nova geração (todos os dias chegando pontualmente ao ensaio, impecavelmente preparada, depois dos habituais café com leite e meia torrada com manteiga, a que no Porto ainda hoje se chama “uma mirita”, em sua recordação); todavia, de novo, anos tão fulgurantes, que depois da sua morte e até hoje o TEC de Cascais traz o nome de Mirita Casimiro. Um acidente de viação a caminho do Porto truncou o seu regresso e a sua reconquista do publico português no fim do ano de 1968, acabando por morrer, profundamente abalada por mais esse revés do destino, cerca de 15 meses depois.

Na conclusão desta quadra natalícia, reevoco um Natal de há 75 anos e duas lindas mulheres que o tornaram mais belo com a sua arte e desejo aos leitores da Gazeta um muito feliz ano de 2020.

Francisco de Almeida Dias

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