Rui Chã Madeira

Cão de Loiça

Da falta de gosto estilístico à irónica insipiência das tendências culturais

O objeto de decoração cão de loiça é comummente considerado, segundo os instruídos em estética, como uma peça de irrelevância artística. Pelos menos eruditos é apreciado como uma intensa manifestação de mau gosto. Pelos olhos dos letrados em arte, quem adquire o objeto e o dispõe no seu humilde lar é considerado, dado a falta de consciência crítica e pior palavra, parolo.
Não obstante, alguns artistas portugueses como Manuel João Vieira e Joana Vasconcelos utilizam o objeto como peça da sua intervenção artística. O primeiro retirou a cabeça do cão e colocou um busto do antigo chefe de governo António de Oliveira Salazar a que nomeou de “Dálmata Salazarento”. A segunda, utilizando diferentes raças, criou a instalação “A Passerelle”. Salienta-se que as respetivas obras são expostas, tanto a nível nacional e como internacional, em honrosos e conceituados espaços culturais.
Para além das tendências artísticas que submetem as opiniões e uniformizam uma espécie de conhecimento, as peças de arte atrás mencionadas são, na perspetiva de quem as concebe de forma livre e enganosamente descomprometida, uma forma de utilizar uma herança esvaziada de substância num contexto representativo e de distinto simbolismo.
Pondera-se compreender qual o interesse de um artista despender o seu tempo a produzir uma peça de cerâmica de mau gosto incrustando a face de alguém que determinou, durante demasiado tempo, a não existência de um povo. Da mesma forma, deve-se considerar o que incita uma artista em colocar diversas peças de cerâmica tosca que, através de um mecanismo rotativo personificando a ressonância amotivacional das atuais relações interpessoais, embatem umas nas outras até ficarem totalmente despedaçadas.
Pode questionar-se se tudo isto faz algum sentido e qual o seu propósito comparado com outras expressões artísticas, principalmente quando estes autores interpretam uma realidade nacional negando, dessa forma, a importação de tendências estéticas estrangeiras que para muitos intelectuais, sem perderem tempo com o seu conteúdo, consideram como de mais alto valor artístico. No meu entender, para além de quebrar com os estereótipos artísticos, os autores, assim como aqueles que têm a possibilidade de saborear estas peças, encontram-se imbuídos de uma narrativa que impele à autêntica e desprendida reflexão que muita falta faz a quem não presta a devida atenção, a quem pouco pensa e a quem sobre tudo tem opinião.
Gostos à parte, sou dono de um cão de loiça, da genuína raça dálmata, que recebe os meus convidados com uma expressão cerâmica. Regozijo-me silenciosamente quando o observam e insipidamente acham graça.

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