Reflexões sobre a vida e o mundo

António Bica

Ed652_DrBicaO José Pereira por acasos favoráveis e desfavoráveis licenciou-se. Em que ciência não vem ao caso. Nasceu em casa de poucos haveres, mas onde não se passava fome. O conduto (em regra a carne do porco da casa e as sardinhas) sempre foi dividido com parcimónia e bem acompanhado com pão de milho, batatas ou feijões e couves ou grelos.

Na casa vivia um velho que aí arribara vindo de Manaus, no Brasil, para onde fora nos últimos anos de colheita da borracha, o tio Alberto Terrochão. Sabia ler e escrever e em pormenor romances como o Amor de Perdição e o Judeu Errante e contos sem fim. Desfiava-os nas noites de Inverno se muito instado e estimulado por garrafa de vinho.

Tinha o José Pereira os seus sete a oito anos, no fio de conversa de que perdera memória, o tio Alberto Terrochão questionou-o: “Ouve lá, que está atrás do céu?” Respondeu o rapazinho: “Não sei.” O velho Terrochão esclareceu-o com ironia: “Não sabes que são trancas velhas?”

O José Pereira guardou a questão para um dia resolver como ele lhe havia ensinado: “Para o que não perceberes mais tarde encontrarás resposta”.

Pela idade cabia-lhe guardar cada dia no baldio da aldeia as duas dezenas de ovelhas e cabras da família. Passava o dia na serra atento ao chocalho da cabra que capitaneava o rebanho como generala. Ouvindo-o, sabia onde parava e o rebanho que sempre a seguia. E, se o cãozito que acompanhava o rebanho não dava sinal de lobo ou estranho a rondá-lo, tudo corria bem.

Nos muitos dias que passava na serra ia remoendo as histórias e contos que ouvia, a razão e a sem razão dos medos que os mais velhos punham aos rapazinhos com fantasmas, diabos, inferno e o fim do mundo. Sobre o tamanho do céu não deixou de remoer as palavras do tio Alberto: “Atrás do céu há trancas velhas.”

Repensando concluiu que o céu não pode ter limite. Atrás dele sempre alguma coisa há-de haver; mais atrás outra ainda; e sempre sem fim.

Mais tarde, nas leituras, veio a saber que pensadores da antiguidade clássica haviam raciocinado de modo semelhante. Isso e o espírito de autonomia que foi assumindo deram-lhe ousadia para pensar pela sua cabeça, desprendendo-se do que muitos outros têm por certo por não porem em dúvida o que lhes dizem.

Chegou à conclusão de que não há padrão para a verdade: “Se há quem ouse pensar pela sua cabeça, porque não hei-de também pensar eu? Alguns atribuem o seu pensamento a inspiração de Deus, mas sendo Deus justo e igual para todos, porque há-de favorecer só alguns quanto à sua inspiração?”

Nesta linha de raciocínio o José Pereira abalançou-se a pôr por escrito o que ia pensando com base no que observava, na troca de opiniões e em leituras.

Já velho, tomado de doença que em breve o levaria ao túmulo, confiou-me o que foi escrevendo com a recomendação de não o tornar público antes de partir sem regresso, talvez sentindo que admirava a sua independência de espírito e que o seu pensamento não divergia no essencial do meu.

 

O que se segue é da autoria do José Pereira:

«O ser humano (homem e mulher) é indivíduo que só sobrevive em colectivo, isto é integrado em comunidade humana. Da sua estrutura genética resultam pulsões de defesa do indivíduo (sem indivíduos não há comunidade), que segundo critérios éticos se designam egoístas e objectivamente se podem designar autodefensivos, e de defesa do colectivo (e subcolectivos) que cada indivíduo integra, porque sem ele não sobrevive, e segundo os mesmos critérios se designam altruístas e solidários.

A complexa actividade que o homem individualmente e em colectivo sempre foi obrigado a desenvolver, procurando incessantemente alimentos, agindo para os obter, defendendo-se dos outros homens, dos animais e dos fenómenos naturais sentidos por ele como perigosos, constitui a sua experiência e memória individual e colectiva. O homem é sobretudo um laborador, actuador com o seu corpo, em especial as mãos com os instrumentos que foi criando, sobre o meio em que vive para melhor o utilizar em seu proveito, ao serviço da vida de cada indivíduo e do colectivo, humanizando-o, isto é moldando-o ao que considera ser sua necessidade; e também um comunicador com capacidade natural para transmitir aos outros humanos e mesmo aos outros animais sobretudo por muito variada gama de sons, mas também por gestos e outras expressões corporais, factos, conceitos, pensamentos e emoções.

Além disso os humanos são a espécie animal mais capaz de raciocinar em abstracto, isto é de interligar factos presentes com outros passados e com factos por si imaginados (hipotizados), e de autoconsciência, isto é de conhecimento de si com consciência da sua individualidade e da diferença em relação aos outros humanos e aos demais seres, pelo que sempre procurou debruçar-se sobre si e o mundo que o rodeia para se entender e a ele e usar esse entendimento em seu benefício individual e colectivo.

Porque os fenómenos que ocorrem no meio de que faz parte interferem na sua vida, cada humano individualmente e em colectivo procurou sempre agir de modo a evitar que aconteçam, se desfavoráveis, ou a suscitar o seu acontecimento, se benéficos, afastar as suas consequências desfavoráveis e fazer surgir as favoráveis.

Quando agir sobre a natureza ultrapassa a capacidade humana, o que acontece na maior parte dos casos, procurou no tempo passado e ainda hoje em grande parte consegui-lo por práticas rituais, o que corresponde a atitude mágica. Essa atitude predominou nos colectivos humanos por muitas dezenas de milénios e ainda hoje frequentemente, nomeadamente institucionalizada nas liturgias religiosas. Porque pela observação da generalidade dos acontecimentos os humanos verificam ser antecedidos e seguidos por outros, tenderam e ainda hoje tendem a admitir que acções intencionais suas possam fazer acontecer ou evitar factos para eles favoráveis ou desfavoráveis, como a chuva, terramotos, doenças, a morte, a boa sorte e outros.

Desse modo os humanos, durante o muito longo período paleolítico estimável numa centena de milhares de anos, sempre visaram dominar a natureza, procurando provocar factos considerados para si benéficos, ou afastá-los, se nocivos. A convicção de que certos actos rituais levariam a que acontecessem determinados factos pretendidos reforçava-se com os ciclos dos fenómenos naturais: chamando a chuva, surgiria decorrido tempo mais ou menos longo; se procurassem afastar doença, ela acabaria na maior parte dos casos por deixar o indivíduo ou o colectivo; se quisessem a morte do inimigo, ela aconteceria tarde ou cedo. Mesmo que o fenómeno desejado não ocorresse, ou não se evitasse o acontecimento de fenómeno indesejado, era e é sempre possível atribuir isso à incorrecta prática do acto destinado a provocar ou a afastar o fenómeno, isto é a deficiente execução da prática mágica, ou a insondáveis desígnios superiores não explicáveis. Essas práticas designamo-las por mágicas.

Com o neolítico, que ocorreu há cerca de doze mil anos em relação à data actual, os povos agricultores e pastores continuaram as práticas mágicas, porque se manteve a necessidade de procurar agir sobre a natureza de modo a fazer acontecer o favorável e afastar o nefasto: chamar a chuva, expulsar a doença, quebrar o ânimo dos inimigos, dissipar as tempestades e outros acontecimentos.

O conhecimento empírico dos fenómenos biológicos, astronómicos, climáticos e outros que condicionam a actividade dos colectivos humanos e a vida dos indivíduos levou, pela capacidade de raciocinar em abstracto, à progressiva figuração das realidades naturais e desses fenómenos atribuindo-lhes personalidade semelhante a humana. O sol, a chuva, o vento, a tempestade, a lua, os planetas, as constelações, os montes, os rios, as nascentes, as florestas, as grandes árvores, as pedras que se evidenciam na natureza, a noite, o céu, a terra, o fogo, os vulcões, o mar, as marés, os lagos, os seres humanos do seu colectivo falecidos passaram em regra a ser personalizados como espíritos ou deuses. Cada uma dessas personalizações passou a ser destinatária de preces, sacrifícios, ofertas e outras práticas rituais destinadas a torná-la benfazeja ou a aplacar a sua ira, atribuindo-lhe personalidade e estrutura psicológica correspondentes às dos humanos. Assim os espíritos e os deuses foram criados pelos humanos à sua imagem e semelhança, relação que foi invertida nas narrativas míticas de criação do universo, como no Génesis: «Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. (…) Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou”». (Génesis 1. 26, 27). Pelas narrativas míticas humanas foi atribuída aos deuses a criação do universo.

Desse modo foram criadas relações complexas entre estas personalizações e delas com os homens, frequentemente representando, sob forma de explicação do universo, valores históricos do colectivo. É o que se designa por mitos, explicações de carácter emocional, portanto de aceitação não racional. Adere-se emocionalmente a elas, acreditando-se serem verdadeiras sem se exigir a sua compreensão racional. É adesão por fé.»

Nota: A transcrição neste texto e em posteriores do escrito pelo José Pereira obteve o acordo dos familiares.Redação Gazeta da Beira

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