Conheça a história de vida de Manuel e Palmira no “Em Rede pela Vida”
Continuamos “Em Rede pela Vida”, à procura de mais peças, deste puzzle que aos poucos vamos construindo e que, quando completo, mostra aquilo que é a história de todos nós. Desta vez subimos a serra e fomos ao lugar de Salgueiro na freguesia de Manhouce. Aí encontramos Manuel e Palmira Tavares que nos contam a história que protagonizam, lado a lado, há 42 anos e que se mistura com as estórias da sua terra e das suas gentes. Entre nesta viagem connosco e conheça os segredos escondidos entre as montanhas.

A viagem é longa, mas quando os olhos veem rara beleza, o tempo para. Pela serra acima, cada paisagem é única e merece ser disfrutada. A pouco e pouco vamos subindo, o céu parece
estar tão perto. Chegámos. Daqui, parece
que quase avistamos o mundo, lá no fundo, longe, o mar, mais perto, a natureza que nos cerca. Respira-se um ar puro que nos restabelece a alma, sente-se um silêncio inspirador. Manhouce, situada no maciço da Gralheira, entre as serras da Arada e da Freita é uma aldeia singular, quer pelas suas paisagens, ao alcance de todos, quer, sobretudo, pelo seu património imaterial. Tradições, gastronomia, canções, pessoas.
Uma terra que dá vida
Vamos ao encontro do Manuel e da Palmira, no lugar de Salgueiro, onde já nos aguardam à varanda. Acenam, com entusiasmo. O sol está-se quase a pôr, sinal do fim de mais um dia de trabalho
que por aqui, como há 42 anos, começa lá para as seis da manhã, com os primeiros raios de sol. “Levantamo-nos, tomamos o nosso café e vamos para o campo”, explica
Palmira Tavares. Ainda hoje mantém a mesma rotina, as terras estão minuciosamente cuidadas, os animais todos os dias saem do corral à procura do melhor pasto, voltam no final do dia, sobre o olhar vigilante de Manuel e Palmira.
Foi da terra que sempre viveram e é a mesma terra que ainda hoje trabalham. “Tínhamos o milho, as batatas, as vacas, ovelhas o gado o leite e era assim que vivíamos. Era preciso trabalhar
de solo a solo, nesta vida é preciso lutar muito”, reconhece
Manuel.
As cantigas e a lavoura
Lavoura que era sempre acompanhada de cantigas. Cantigas que tornavam o trabalho
mais fácil, ao mesmo tempo que relatavam a realidade dos tempos. “Maçadeiras do meu linho, maçadeiras do meu linho, maçai o meu linho bem, maçai o meu linho bem, maçai o meu linho bem! Não olheis para a portela, não olhei para a portela, que a merenda logo vem, que a merenda logo vem, que a merenda logo vem! Ao almoço me dão peras, ao almoço me dão peras, ao jantar peras me dão, ao jantar peras me dão, ao jantar peras me dão! À merenda pão e peras, à merenda pão e peras, à ceia peras e pão, a ceia peras e pão, à ceia peras e pão”.
Esta é uma das muitas cantigas de trabalho
que, aqui em Manhouce, cantavam e ainda hoje cantam e que muito dizem de como aqui se vivia. “Alimentávamo-nos daquilo que produzíamos, se queríamos mais algum produto tínhamos que ir a pé com um saco até Oliveira de Frades (concelho vizinho) às compras, aqui em Manhouce não havia lojas. Depois, mais tarde, abriram umas lojitas, mas não havia estrada
, as pessoas traziam as compras nos carros das vacas”, explica
Manuel Tavares.
A evolução que tardava em chegar
Aqui a evolução chegava devagar. A eletricidade chegou com o 25 de Abril, a estrada
só foi alcatroada há cerca de 30 anos. “Não havia apoios, a povoação juntou-se e deu 400 contos para alcatroarem a estrada”, recorda Manuel.
De um casamento
arranjado a um casamento
duradouro
Manuel tem 66 anos, Palmira 74, estão casados há 42 anos. Palmira sempre viveu aqui, Manuel não vivia muito longe, vivia numa aldeia vizinha, em Vale de Cambra. Quem os juntou foi a patroa de Manuel. Palmira foi pedir-lhe concelhos “para saber se era bom rapaz”. O casamento aconteceu e perdura são até aos dias de hoje.
Pouco tempo depois, Manuel emigrou para a França, foi trabalhar
para um viveiro com mais de 170 hectares. Palmeira ficou. Uma ida, com uma volta muito ansiada. “Tinha que ser, se não tivesse ido, nunca teria dinheiro para fazer esta casa”, explica. As saudades apertavam, recorda Palmira. “Ele vinha visitar-me sempre que podia, mas não era a mesma coisa, um lá, outro cá não era vida”.
A infância e a juventude, dois caminhos que ainda não se tinham cruzado
Manuel cedo apreendeu a viver com pouco. Depois de terminar a quarta classe, “mas que vale como sexto de hoje, ou até mais”, garante, foi servir para uma casa. Aí, fazia um pouco de tudo. A patroa dava-lhe comida e dormida, pouco mais. “Nem tinha para os seus, quanto mais para mim”, relata.
Nasceu em Salgueiro, cresceu e, agora, é também aqui que quer envelhecer. Palmira recorda os seus tempos de juventude, tempos que considera bem diferentes dos dias de hoje. “As pessoas eram mais simples, eram mais amigas, ajudávamo-nos uns aos outros.”
Não eram tempos de fartura, mas as pessoas eram felizes. “As raparigas gostavam muito de cantar, mas o meu pai não achava muita piada”, confessa.
Era no leite que religiosamente ia levar todos os dias a Manhouce e nos bezerros que esporadicamente conseguia vender que Palmira e a sua família conseguiam o sustento.
O minério em Manhouce, uma atividade económica que despoletou com a guerra
Entretanto, com segunda Guerra Mundial que deflagrava em toda a Europa, surgiu na aldeia uma nova oportunidade de “ganhar alguns trocos”. Apesar de muito pequena, Palmira garante recordar-se muito bem desse tempo. “Era o minério! Andavam sempre a olhar para o chão, atentos para ver se encontravam minério, levavam uma marretita, já sabiam bem o que era. Era da cor do café. Depois, crivavam e iam vender a um vizinho aqui do lugar. Dizia-se que era para os alemães. Assim, arranjavam o dinheirito”.
Na realidade, a 2ª Guerra Mundial teve um efeito positivo para a economia da freguesia. Portugal, fora da guerra, vendia volfrâmio aos países combatentes. Manhouce foi uma das freguesias que forneceu essa matéria-prima, através da exploração das minas das Chãs.
A filha do coração
Palmira e Manuel nunca tiveram filhos, mas sabem o que é ser pais. Acolheram em sua casa uma jovem que iria ajudá-los no trabalho. Pouco tempo, depois, contudo, a jovem acabou por engravidar. Assim que teve a filha partiu para o Porto. “Não tinha condições de a criar”, confessa Manuel. O bebé ficou ao cuidado do casal até aos 13 anos. Ainda, hoje, continuam bem próximos. “Ela é como uma filha para nós, é muito nossa amiga, hoje tem 30 anos, já e casada e tem um filho, mas vem visitar-nos muitas vezes, ainda no domingo cá veio.”
Uma dor de cabeça
Apesar de feliz, o casal vive amargurado. Como relata Manuel Tavares, depois de ter a casa construída há mais de uma década, sem ter qualquer tipo de problema. Teve que ir responder a tribunal. Como explica, “diziam que uma parte da minha casa tinha sido construída num terreno que não era meu”. O Tribunal acabou por da razão à acusação, Manuel teve que destruir uma parte da sua casa. A partir daí sempre teve infiltrações em casa. Manuel e Palmira nunca se conformaram com este desfecho. Hoje, depois de tantos anos, continuam a lutar por esta causa que consideram justa. Até à Assembleia da República já foram, o casal promete não desistir.
Viver tão perto do céu
As horas já vão longas e o dia amanhã começa bem cedo. É assim a vida de quem trabalha o campo. Em Salgueiro, hoje, não vivem mais de 10 famílias, número bem diferente do passado, em que o lugar se enchia de pessoas, vida, alegria. Os jovens emigraram, “não há aqui futuro”, lamenta Manuel e acrescenta: “mas se for a Manhouce o lugar é maior e também está deserto, se for a S. Pedro do Sul o mesmo”.
Para Manuel e Palmira o futuro é aqui. “Não me imagino, ficar presa, sem nada para fazer, gosto de trabalhar e fazer a vida que sempre fiz,” defende Palmira.Redação Gazeta da Beira
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