O historiador de Rompecilha

Nesta edição do “Em Rede pela Vida” conheça Arlindo Coelho

 

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Arlindo Coelho nasceu e sempre viveu aqui, em Rompecilha. Um lugar no fundo do vale, na freguesia de São Martinho das Moitas, S. Pedro do Sul. A sua história de vida cruza-se com as da sua freguesia. Tradições, lendas, músicas, costumes, pessoas… há muito para contar. Desta vez, em “Rede pela Vida” revela-nos a história de um homem que teve a vida como escola e nunca se cansou de apreender.

Chegamos a Rompecilha, uma pequena aldeia que se impõe entre as montanhas. Ao ar livre, tendo como pano de fundo uma paisagem encantadora, estivemos à conversa com Arlindo Coelho. Tema, puxava novo tema, respostas inspiravam perguntas. Um diálogo entusiasmado, só interrompido pelos habitantes que chegavam depois de um longo dia trabalho no campo e não deixavam de nos desejar “as boas tardes”. Simpatia, cada vez mais rara, é ainda tão genuína aqui.

A escola da vida

Com 71 anos, Arlindo aqui nasceu e de cá não saiu, exeção feita aos três anos de serviço militar obrigatório em Lisboa. Na escola primária tirou a quarta classe, na escola da vida, um doutoramento. Durante toda a sua vida, sempre carregou alguma tristeza por não ter conseguido estudar mais. “Era filho único, os meus pais não queriam que eu saísse de perto deles”. Desgosto só amenizado quando conseguiu dar à suas três filhas estudos superiores. “Na medida em que eu não ultrapassei a quarta classe foi para mim uma grande vitória”.

Arlindo sempre procurou saber, numa busca incessante que jamais acaba. “A minha vontade de saber é inesgotável, sempre fui um curioso”, confessa. Recentemente, voltou à escola e fez o nono ano nas Novas Oportunidades, já estava inscrito no décimo segundo, mas o programa encerrou.

Encontrou novas formas de chegar ao conhecimento. Autodenominado de “autodidata” foi bebendo aqui e ali desta poção mágica que é o saber. Um dos temas que mais lhe interessou foi a história da sua terra. Arlindo recolheu o máximo de informações possíveis, hoje o seu espólio é de causar em inveja a qualquer historiador. “Relativamente à história da freguesia, não sei se haverá alguém que tenha na posse tanta documentação como eu”, defende.

Rompecilha, o nome por detrás da lenda

Quanto ao nome da aldeia, “Rompecilha”, Arlindo Coelho conta-nos uma lenda antiga que passou de geração em geração. “O nome Rompecilha é muito esquisito, eu tenho andado a estudar o porquê deste nome. Como sabe, Rompecilha fica numa baixa e havia um sardinheiro que, em tempos, trazia a sardinha num burrito e aqui era mais cara que nos outros sítios. A justificação do sardinheiro era esta: aqui tem que ser mais cara porque o burrito rompe as cilhas todas a descer e a subir a encosta”. E assim a terra ficou conhecida como rompe cilhas, que se foi adaptando, com o tempo, para Rompecilha.

Arlindo Coelho, contudo, tem outra teoria. “Um dos primeiros habitantes desta terra foi o Sr. Rompecilhas, eu inclino-me mais para aí”.

Uma aldeia com uma história centenária

O passado intriga-lhe e é por isso que não se cansa de investigar. Garante que Rompecilha tem já uma história centenária. Como prova, em casa, diz guardar um escrito em latim, que remonta ao século XVI. “Uma espécie de foral” que com ajuda da filha, doutoranda em História, decifrou. Há, contudo, referências mais antigas, no século XVII, na Enciclopédia Luso-Brasileira, acrescenta.

Como explica, “no início a aldeia era propriedade do Convento de S. João de Tarouca e na época do Marques de Pombal foi entregue a quatro pessoas, foram construídas três casas muito grandes, a mais antiga tem da data de 17 e qualquer coisa… basicamente a aldeia era toda pertença dessas quatro famílias, todas elas ligadas à família Gomes Dias e Dias. As outras pessoas que estavam para além dessas quatro famílias viviam todas em sistema de arrendamento das terras”.

Como acredita, em Rompecilha, estão marcas evidentes da passagem dos soldados, nas Invasões Francesas em Portugal. “Na altura as pessoas tinham baús de lata onde escondiam as suas coisas, como sabe houve muita pilhagem nesse tempo. Ainda hoje tenho cá esses baús, têm sinal claros que estiveram embalados e enterrados muitos anos”, explica. Como garante, muitas marcas há também de refugiados da Guerra Civil Espanhola que escolheram Rompecilha para se abrigar. “É essa a razão por termos várias expressões espanholas no nosso vocabulário. Nós dizemos “anda lá para “riba”, “cerra-me” aquela porta, eu “quitava” de fazer aquilo…”

Pedaços da sua história

Durante séculos e séculos, Rompecilha foi palco de muitas histórias. Entre elas a história de vida de Arlindo Coelho. “A minha casa era a das mais ricas da aldeia, ou melhor, das menos pobres. Era filho único e muito ligado às tradições. Vivíamos da agricultura de autossubsistência, o poder de compra era reduzidíssimo. Se tivessem o que comer comiam se não tivesse passavam fome”. Não eram tempos fáceis, eram tempos em que muitas vezes, como relata, o nosso protagonista, “uma sardinha tinha que dar para dois”.

Arlindo, como a grande maioria dos da sua terra viviam do que a natureza lhe dava. O milho era a base da alimentação. “Na minha criação as pessoas davam tanto valor ao milho quanto isto: nós estávamos a comer um bocadinho de pão do milho, se ele caísse ao chão nós beijávamo-lo e comíamo-lo, tal era a devoção e a importância que o milho tinha”, recorda.

Rompecilha e a produção de azeite

Para além do milho, em tempos, a resina também teve uma grande importância na aldeia. A família de Arlindo tinha mais de duas mil bicas. Os tempos mudaram o pinheiro foi substituído pelo eucalipto e a produção, a pouco e pouco, terminou.

Também o azeite assumiu, em tempos, grande importância na economia da aldeia. “A aldeia era autossuficiente em azeite”, refere.

O processo era moroso. “Quando chegava à altura própria, apanhava-se as azeitonas e colocavam-se no lagar. Depois as azeitonas eram moídas, através de um sistema rudimentar. Quando ficava só uma massa, era metido em seiras. Assim que entrava no lagar era uma questão de três horas até estar pronto. Era muito diferente do azeite que compramos hoje, tinha muito mais qualidade”.

Todos os anos, Arlindo Coelho produzia cerca de 20 almudes. O azeite não era só usado na alimentação, era também usado na iluminação. “Houve em Portugal uma época de racionamentos. Nós só tínhamos dinheiro para comprar X petróleo e não chegava, por isso, usávamos as candeias de azeite. Ainda tenho a minha pronta a funcionar”.

Ciclo do linho de uma necessidade a uma tradição

A produção do linho, mais do que qualquer outra, tem grande tradição na aldeia, faz parte das memórias de várias gerações. O processo era longo e exigia minúcia. Era a lida do campo que requeria, saber e paixão. Era a lida do campo, no qual o trabalho, com tanta facilidade, se misturava com o convívio e com as cantigas que se iam inventado.

O ciclo do linho têm inúmeras etapas. Até chegar ao tear, havia muito que fazer. “Semear; ripar; tirar as sementes e depois empossar, o linho ficava submerso cerca de 8 dias. Depois, era amassado e ia para o tear”.

Hoje, em Rompecilha continua-se a plantar o linho e a recriar o ciclo, “hoje, faz-se só como recordação, é para manter a tradição”. Uma iniciativa que para além de matar as saudades aos mais velhos, vem dar uma lição de história aos mais novos.

Amor, guerra e religião e as músicas que inspiravam

Todas estas memórias trazem nostalgia de um tempo que passou. Arlindo Coelho acredita que aos poucos as aldeias vão perdendo a sua identidade. “Antigamente, as pessoas eram muito mais criativas. Na altura, as pessoas tinham que criar, nas suas terras, os seus meios de se divertir, não era por acaso que quase todas as aldeias tinham o seu grupo instrumental, não era por acaso que não havia semana que não houvesse bailarico. Havia as chamadas microculturas. As músicas desta aldeia não tinha nada a ver com as da aldeia vizinha. Enquanto nós hoje, temos aquilo que eu posso chamar a massificação da cultura. Hoje se for àquele café (aponta para o café da aldeia) ouve a mesma conversa que ouve num café em Lisboa”, lamenta.

Também Arlindo, como muitos do seu tempo, fazia parte de um rancho. Chamava-se Grupo de Danças e Cantares de S. Martinho das Moitas e era um fator de união de toda a freguesia. “Chegou a ter 40 pessoas, os instrumentos mais usados era um realejo e o pífaro”, recorda.

O canto da aldeia, com explica, estava sempre relacionado com três temas: amor, religião e guerra. Arlindo ainda tem as letras na ponta da língua não hesitou em cantar para nós: “Pra onde vais Maria Augusta; Pra onde vais tu a chorar; Vou ver o meu amor; Está na taberna a jogar!”.

Grupo de Danças e Cantares é hoje, apenas, uma recordação. “Deixou de ter elemento há já alguns anos. Deixa-me muito, muito, muito triste. Eu continuo a ser um apaixonado pela contradança”.

Um capítulo de uma longa história

A conversa já vai longa, o sol apressa-se para dar ligar à lua. Jacob, o cão de Arlindo, companheiro de muitas viagens, está a ficar impaciente. Por hoje, a conversa fica por aqui. “Só contei um terço daquilo que tinha para dizer”, garante Arlindo. Fica um capítulo de uma longa história. A história que Arlindo Coelho protagoniza, a história dentro de tantas outras que conta aqui na primeira pessoa. Não fosse ele um verdadeiro contador de histórias.Redação Gazeta da Beira