Nazaré Oliveira

Um convívio / patuscada de um grupo de amigos sampedrenses (parte II de III)

De pé e da esquerda para a direita: António Silva, Dr. António Tavares, Manuel Borges, José Gamaliel, Dr. Abel Poças, Dr. José Inácio Coelho, Francisco Monteiro de Barros

 

(continuação)

ABEL POÇAS: Era Escrivão do Tribunal e foi Presidente da Câmara Municipal. Com ele convivi quando eu era um jovem praticante na Secretaria Judicial, na mira de ingressar na Função Pública, que acabei por não seguir. Depois, quando ele, na qualidade de Presidente da Câmara, em 1 de Julho de 1950 (tinha eu 21 anos) me deu posse de Proposto do Tesoureiro Municipal, função que só exercia nos impedimentos do Tesoureiro Manuel Barros, de Carvalhais. E por pouco tempo, porque entretanto segui outro rumo. Mas com o Dr. Poças continuei a ter contactos cívicos e sociais, bastantes para captar os traços fundamentais da sua personalidade, a que não eram estranhas as influências da vida académica coimbrã. Mais tarde, fui professor dos seus dois filhos.

O Dr. Poças tinha uma figura física inconfundível. Ou melhor, o único perigo que havia era confundi-lo com Vasco Santana, de quem era um autêntico sósia. Era um homem bem disposto, comunicativo, amigo de uma boa patuscada, arguto, repentista, com veia poética cáustica sempre pronta para a paródia jocosa, como seta dirigida a um alvo visado. Um exemplo:

Algum tempo depois de o Dr. Poças ter deixado a Presidência da Câmara, com a aposentação do Dr. Roque Machado, a nova Câmara abriu concurso para o lugar de Médico Municipal. Sete médicos se perfilaram. Gerou-se polémica. Pressões daqui, pressões dali, politizou-se o caso. A decisão foi-se protelando. A nomeação do médico tornou-se uma história de vila, discutida à mesa do Café, na praça pública e até nalgumas conversas de família, como se estivesse em causa um problema de interesse  nacional, talvez porque, em matéria de escolhas e eleições nacionais, nesse tempo, pouco havia que discutir. Até que o impasse se resolveu a favor do candidato preferido pela Câmara. E o Concelho até ficou muito bem servido com o Dr. Pinho Bandeira (que também está na fotografia que motiva esta crónica).

A disputa não escapou à veia poética e satírica do Dr. Abel Poças, que fez uma versalhada de que já não me lembro na íntegra, mas ainda reproduzo em parte:

 

Dona Câmara de São Pedro

Sete médicos mandou vir;

Foi um parto aos repuxos,

Ao cabo de muitos puxos,

Sempre acabou por parir!

 

Já me não lembro do resto, mas sei que tinha muito humor.

O Dr. Abel Poças também cultivava a música. Fazia parte do Grupo Coral Sacro, constituído por meia dúzia de sampedrenses amadores da Bela Arte: Dr. Poças (cantava e tocava órgão), Zeca dos Moldes, Amadeu Teles (Barão da Agulha), Zé do Pico, António Teles e Manoel de Oliveira (meu Pai, que cantava e tocava flauta). Recordo-os a cantar o Miserere nas capelas onde estavam armados os Passos, na Semana Santa, desde a Capela de S. Sebastião à de S. Bartolomeu, passando pelas de Santo António e das Paulas. E na Igreja Matriz, nos ofícios das Endoenças, na Quinta-feira Santa, e na Missa da Ressurreição. A Igreja enchia-se para ouvirem a cantoria, no latinório que infundia solenidade e pouco entenderiam mas de que gostavam. Era bonito! Outros tempos!

JOSÉ INÁCIO COELHO: Era mais vulgarmente conhecido por Dr. Zé Plico, por ser descendente da família Plico, última proprietária do Solar da Lapa.

Era advogado na comarca e exercia em toda a região de Lafões. Irónico e de palavra fácil, algumas vezes ouvi as suas alegações e parece-me ainda vê-lo, na barra do tribunal, seco de carnes, embrulhado na sua beca, e ouvir-lhe a voz de timbre metálico que me fazia lembrar a voz de António Menano, cantando o fado de Coimbra.

O Dr. José Coelho tinha um hobby: a pesca. Era um dos mais famosos pescadores de trutas, em terras de Lafões. A sua figura era única: umas calças de pelica, botas de borracha, uma camisa e um barrete de pescador, a cesta das trutas a tiracolo, empunhando a cana de pesca, parecia um pescador da Noruega. Mas ele não pescava só trutas do rio. Também ia pescando trutas de duas pernas, que lhe iam aquecendo o coração. Sempre aberto a novos afectos, tinha fama de mulherengo, para o que muito contribuía a sua gabarolice. Mas nisso seriam “mais as vozes do que as nozes”.

Já numa fase mais avançada da sua vida, convivi bastante com ele, quando, em 1971-72, estive a montar e a dirigir a Escola Preparatória, então criada. Ele era encarregado de educação de uma aluna, filha da sua última companheira de vida. O Dr. José Coelho ia com frequência à Escola, muito cuidadoso, conversava comigo e seguia com zelo o percurso escolar da jovem, como se sua filha fosse.

A seguir ao 25 de Abril, o Dr. José Coelho voltou à ribalta sampedrense, com uma actividade política em que queimou os últimos cartuchos, numa polémica jornalística, na Tribuna de Lafões, nos tempos agitados do PREC, entre o “velho” Dr. José Coelho e o “jovem” Dr. Jaime Gralheiro, colegas de profissão mas adversários de ideias. Era o passado conservador e o presente revolucionário. Durante muito tempo, a polémica alimentou o periódico local. O Dr. José Coelho dava aos seus artigos o título de “Jaime Gralheiro, o Cornetim”. Mas no número seguinte lá vinha a resposta. Era uma espécie de luta de galos, com parada e resposta. Ora agora cantas tu, ora agora canto eu! Se descontarmos os lugares-comuns, que abundavam de parte a parte, pouco ficava de doutrinário, que menos os preocupava do que a promoção pessoal. Mas os leitores gostavam e riam com os epítetos com que mutuamente se mimoseavam. Quem ganhou foi a Tribuna de Lafões!

FRANCISCO MONTEIRO DE BARROS: para todos, o CHICO BARROS. Era comerciante com Loja de Fazendas e outros panos, na Rua Serpa Pinto. Nesse edifício, funcionava também, à época (princípios dos anos 40), o Centro de Explicações da D. Adelaide Zagalo, onde dezenas de jovens iniciaram os seus estudos secundários, antes da fundação do Colégio de São Tomás de Aquino. Anexo ao estabelecimentos de fazendas, era a Barbearia do Cardoso, um dos fígados da terra.

Chico Barros era um homem simpático, por natureza e por sintonia com sua esposa D. Margarida Mendes Barros, a “Velha Senhora” que ainda vive com mais de 100 anos e boa saúde física e mental. Foram progenitores de vários filhos, dois dos quais me passaram pelas mãos como alunos. Não é demais recordar o seu malogrado filho Dr. José Mendes Barros, cujo drama familiar o levou a abandonar uma carreira para se fazer médico especialista, na tentativa de salvar seu filho atingido por paralisia cerebral, e se tornou impulsionador de uma instituição de relevância nacional — o Lar Integrado Dr. José Mendes Barros — que a morte impediu de continuar.

Chico Barros e António Zé (outro comerciante de prestígio) foram os parceiros que não deixaram morrer o Cine-Teatro cujos filmes eram o único espectáculo que se podia semanalmente desfrutar em S. Pedro do Sul.

(Continua)

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