Luís Machado Luciano (Ex-Director de cirurgia do Hospital S. Bernardo Setúbal)

O médico junto ao doente é um ato terapêutico

Em 1968, quando da “primavera Marcelista“ dizia-se ter havido uma abertura à informação o que iria permitir uma participação cívica sem qualquer controlo pela censura.

Como é evidente apareceu logo um Jornal, creio que com o nome “Crime” que, por liberdade de imprensa, entendeu divulgar escândalos, crimes e outras maldades.

É evidente que, ontem como hoje, os temas: Saúde, médicos, mortes por negligencia, Hospitais etc. foi o alvo preferencial por ser, em parte, verdade mas sobretudo por sensacional e de grande impacto ao acusar, direta ou indiretamente, o Governo perante a estrutura Hospitalar e seu funcionamento permitindo ataques ao Secretário de Estado, Ministro do Interior e, como é evidente, ao Presidente do Conselho de Ministros.

Comentários, em grandes títulos de primeira página, ajudavam a grandes tiragens e os ardinas a anunciarem bem alto, nas praças de Lisboa, a ultima grande novidade.

As novas gerações não sabem, porque por isso não passaram, o que eram as estruturas hospitalares nessa época, mas era ali, que se aprendia a boa prática clinica metódica com observação cuidada e atenta do doente na perspetiva dum diagnóstico que permitisse uma atitude terapêutica eficaz.

Os exames complementares eram escassos e os Hospitais, deficientemente apetrechados, funcionavam em instalações deploráveis ultrapassando, em muito, o que hoje se possa imaginar.

No mundo, dito civilizado para a época, esboçava-se já outra prática adivinhando-se o surgir dum mundo novo de tecnologia promissora com métodos de apoio diagnóstico que, em poucos anos, ultrapassou o que se poderia imaginar:

Apoio laboratorial, imagiologia, novas atitudes terapêuticas e medicina de intervenção em todas as especialidades

Quanto à observação do doente, passou-se do “ Homem opaco para o Homem transparente” e, a partir daí, fazer o bom uso dos novos métodos é ser: sábio e inteligente nas suas aplicações.

Hoje a prática desta medicina tecnológica é outro Mundo e, pode dizer-se, imprevisível naquele tempo.

Ao diagnóstico chegava-se mediante observação cuidada e minuciosa, aparelho a aparelho ou sistema tudo registado em história clinica na perspetiva de diagnóstico provisório que nos orientasse para a terapêutica possível, na esperança ou na certeza de cura.

Em resumo: o doente era minuciosamente visto sendo evidente a proximidade do médico ao doente: a fala, os olhos e as mãos era tudo o que havia para o servir, no combate à doença. O doente sentia-se protegido e o médico era o seu amigo e o seu salvador. Pode dizer-se que o médico junto do seu doente fazia e continua a fazer parte da eficácia e porque não da eficiência terapêutica.

A hotelaria e tudo o resto, se existissem, era muito bom mas seria secundário.

O tal jornal entretinha-se a recolher senão mesmo a estimular queixas para denuncia e era assim que com grandes títulos de primeira página, como hoje, aumentava as vendas do seu produto dizendo-se, como hoje se diz, sem qualquer intervenção da censura.

Havia que procurar um culpado!

Era eu um jovem interno de cirurgia à procura da técnica e do saber para operar e, sempre que, no Banco do Hospital de S. José, o Cirurgião chefe de equipa, nos escolhia para realizar um ato cirúrgico, para nós, era um encanto, uma responsabilidade e o delegar de competência num jovem que se iniciava. Deste modo fui escolhido para operar um caso de apendicite aguda.Com muito cuidado e sempre com um bom ajudante cumpríamos as rotinas, com maior ou menor dificuldade e, após todo aquele bom sucesso, o doente acordava e, pouco tempo depois, era transferido para o que se chamava SOB, serviço de operados do banco, ou seja, um depósito de doentes aguardando vaga, no nosso serviço, para serem transferidos.

Ali estariam algumas horas, alguns dias ou dali nem saiam até ter alta, diretamente, para a consulta externa.

O S.O.B era um salão enorme, esconso com pouca luz ou nula à noite com teto e janelas inclinadas entrando frio por todo o lado., camas alinhadas, delimitando corredores onde procurávamos os nossos doentes. À noite era indiscritível: a comida era trazida em grandes panelões de alumínio e despejada em pratos, de alumino também acompanhados de uma caneca para líquidos e o pão era colocado em cima de um guardanapo de papel. A água era servida, quando solicitada, para não se entornar e, no meio daquela confusão toda, ouviam-se gemidos e pedidos de socorro durante toda a noite. Debaixo da cama encontravam-se os sapatos do doente e uma arrastadeira de recurso.

Nós, jovens cirurgiões, ali íamos várias vezes ao dia ver os nossos desgraçados doentes por nós agredidos na intenção de lhes fazer bem mas sentíamo-nos, em parte, culpados de tudo aquilo à nossa frente. Geralmente, estava ao serviço um enfermeiro muito experiente que humanizava um pouco aquilo tudo e, ao acompanhar-nos, sentíamos segurança na resolução dos problemas, que iam surgindo, ao dar-nos, sempre, pequenas sugestões que, modestamente, aceitávamos.

O meu doente era um rapaz novo. Estou a vê-lo na cama alinhada no corredor central no meio de muitas outras em corredores diferentes. Era por mim visitado várias vezes ao dia com medo de que alguma complicação surgisse ou algo de grave me tivesse escapado naquilo que, para mim, era já uma cirurgia de alguma dimensão e responsabilidade; sentia-me também responsável por lhe ter provocado sofrimento. Conversava, observava-o com muito cuidado na presença do senhor enfermeiro e saia descansado, aguardando a oportunidade de o transferir ou dar-lhe alta, curado, com seguimento na consulta externa.

Todos os “Democratas”! Liam a imprensa que dizia mal do governo já que isto era dizer mal do ministério do interior e, por arrastamento, de tudo o resto.

Assim: comprei o jornal e comecei a ler e, com grande espanto meu, verifico que o artigo, de mal dizer, era escrito pelo doente que, com que com tanta dedicação, acompanhava preocupado com a sua cura, o seu sofrimento e o possível bem-estar.

O artigo dizia: “condições de instalação deprimentes, a cama é uma enxerga com colchão de palha afundado ao meio, para me defender do frio, que entra por todos os lados, tenho um lençol e um cobertor todo roto; luz escassa senão ausente. Toda a noite se ouve gemidos, pedidos de socorro e de água a toda a hora; por cima da minha cama passeiam-se ratos e baratas: uma vergonha imperdoável” e mais dizia: “a minha sorte é estar a ser tratado por um médico que cura com os olhos

Fiquei descansado, havia alguém que via em mim, na minha fala, nas minhas mãos e nos meus olhos o desejo de bem servir. É verdade que sempre assim tentei fazer usando tudo o que me ensinaram, o que sabia ou o que, por vezes, improvisava aprendendo. E, de repente, pensei: Com os olhos não se matam baratas ou ratos ou mesmo seres microscópicos responsáveis por doenças, hoje bem caracterizadas, com terapêuticas bem definida em “guide lines” mas com a fala, as mãos e os olhos mata-se o desespero, a angústia e ilumina-se a esperança.

Os hospitais, de hoje, são modelos de instalações, apetrechamento instrumental e laboratorial que permite um rigor no diagnóstico e na atuação terapêutica indiscutível mas talvez lhes falte a terapêutica de proximidade, do médico ao doente que, como no meu caso, foi essencial para matar as baratas e os ratos que deixaram de ser problema para o meu querido amigo e doente.

Pensem nisto.

Hoje, os médicos, não olham os doentes não os curam com os olhos, com as mãos ou com a fala, orientam-se por guide lines necessários para o rigor do diagnóstico e orientação terapêutica. Curam-nos, por vezes, mas, talvez, os tratem mal.

Ao Pensar nisto façam as duas coisas e passam a ter uma consulta com atuação mais correta, por ser mais humana.

O doente, na sua fragilidade, precisa disto.

Os registos informáticos? São uma maravilha mas o doente ou a doença não são a continuidade de registos anteriores feitos, por vezes, meses ou anos, antes mas são sim: uma realidade daquele momento. Sempre aprendi, foi assim que me ensinaram e ensinaram bem, que se deve tentar ignorar os diagnósticos anteriores, porque podem não estar corretos ou estarem mal elaborados e, isso, pode induzir-nos ao erro. Deve dizer-se, ao doente: “Ignore a doença que julga que tem e conte a sua história atual” isto vai permitir chegar a um diagnóstico provisório, elaborado com a nossa inteligência, responsabilidade e saber. Depois registe a história pregressa que pode ou não interferir no diagnóstico atual e é este que, de momento, deve ser encarado. Reúna os exames complementares que julgue necessários, para um diagnóstico definitivo e orienta uma terapêutica na perspetiva de cura.

Hoje, ninguém se aproxima do doente; a voz, as mãos e os olhos desapareceram a não ser para olhar o ecrã do computador e as mãos para o click com os ratos que, agora, se passeiam, não sobre as camas, mas nos écrans pesquisando as profundezas do saber tornando-se, assim, parceiros privilegiados da doença e da terapêutica.

A ser assim e, porque os hospitais diferenciados se querem e já que os doentes passam a ser instrumentos de investigação, numa pesquisa permanente, seria bom facilitar ou mesmo estimular o contacto com os médicos amigos ou de família com interesse em olhá-los, vê-los e ouvi-los dando-lhe esperança e fazendo-os acreditar no tratamento.

Abram as portas de todos os serviços a qualquer hora aos médicos amigos que desejam visitar os doentes.

Mas não é assim.

O rato do computador ainda não disse que assim é melhor e isto não consta do” guide line

Um médico quando se desloca a um hospital, e não são muitos os que o fazem, para visitar o seu amigo doente, é mal tratado.

Por experiencia própria, já fui várias vezes impedido de entrar e, se se diz ser médico, ainda é pior, vem o senhor segurança, o senhor agente de autoridade, a senhora enfermeira de triagem e, nada os demove, “ordens são ordens “isto é igual para todos” mas, os médicos, não são iguais a todos, os médicos sãos os doutores que tratam os doentes e, por quem, os doentes querem ser tratados. Todos os outros, doutores dentro dos hospitais, não dizem nada aos doentes e estes devem ser soberanos ao querer ser tratados, e bem, por quem lhes dá segurança

Que falta de coragem em dizer que o médico junto do seu doente é um ato de eficácia e eficiência terapêutica e, como tal, ao identificar-se tem livre entrada esteja o doente, na sua intimidade, a ser lavado ou onde estiver é uma visita de urgência que ninguém deve impedir.

Que estupidez é esta de ter medo de dizer que os médicos não são iguais a toda a gente?

Dentro dum hospital, eles são intervenientes diretos no tratamento e no esclarecimento da doença.

O que é isto dum segurança dizer que as normas são para cumprir e ninguém tem coragem para corrigir este disparate.

Perguntem ao doente, que deve ser soberano na decisão sobre a sua doença e na sua tristeza, se quer ver o médico seu amigo.

Como toda a gente tem medo de mandar então manda o polícia

Senhores: os Diretores não são para mandar são para dirigir orientações lógicas e inteligentemente acordadas, mandando que se cumpram. Não tenham medo de mandar e protejam os doentes destes absurdos estúpidos

O segurança não trata os doentes por isso não deve cumprir normas cegas para executar “em todos.” Os médicos não são “todos”. Os médicos são diferentes são os doutores que, dentro dos hospitais, tratam os doentes

Setúbal 12 de Fevereiro de 2012

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *