Lucília, uma mulher de armas

“Em Rede pela Vida” continua a recolher testemunhos de vida

Lucília Dias vive a vida com um sorriso nos lábios e uma simpatia contagiante. A vida foi muitas vezes dura, foram muitos os desafios que lhe entregou, sem lhe pedir qualquer licença. Nenhum foi capaz de lhe endurecer o carácter e lhe tirar a esperança de vingar. Hoje com 75 anos, continua uma sonhadora e com objetivos para cumprir. No “Em Rede pela Vida” conta-nos a sua história. A juventude rodeada de dificuldades e tradições, a vida de adulta repleta de batalhas, umas perdidas outras ganhas. E o tempo atual em que não desiste de ser feliz.

1

Lucília Dias tem 75 anos e vive no lugar de Fontelas, concelho de Sever do Vouga. Vive numa terra que o tempo mudou. Trouxe inovação, carros, modernidade. Levou o comboio, as tradições, as terras cultivadas. Levou a alegria e as pessoas foram desaparecendo. Deixou o silêncio. Hoje em Fontelas, as crianças contam-se pelos dedos. A maior parte das famílias foram para outras terras à procura de uma vida melhor. Tal como Lucília fez um dia. Lembra-se como se fosse hoje, quando entrou naquele intimidante navio pela primeira vez. Sozinha, em busca dos sonhos e de um futuro, atravessou o oceano e rumou para a então colónia de Moçambique…Já lá vamos, não é assim que começa esta história. A história começa anos antes. Na tenra idade da nossa protagonista.

O Xancas das memórias

Lucília não se lembra de brincar. Naquele tempo, era cedo que os filhos começavam a ajudar os pais. Só assim era possível sobreviver. Com dez, doze anos, ia todos os dias com o latão à cabeça, Lucília levava o leite à freguesia vizinha. Eram cinco quilómetros para cada lado. Uma viagem nada fácil dado o peso da mercadoria. “Todos os dias ia a Ribeiradio levar o leite ao posto. Era pesado. Às vezes eram 12, 13 litros, outras vezes, 27, 29 litros. Tirava-se a gordura para fazer manteiga e o queijo e depois, eu, vinha entregar às pessoas o que chamavam de “soro” e que usavam para alimentar os animais. Era esta a minha rotina fizesse chuva, fizesse sol”, recorda.

Nas suas memórias está o barulho do Vouguinha que anunciava a manhã. Um marco de um tempo que deixa saudades. “Chamávamos-lhe Chancas, dado o barulho que fazia quando passava e que tantas vezes nos pregava sustos. Ou então o “Pouca- Terra das Fontelas”. Por dia, passavam vários comboios e locomotoras. O primeiro passava logo de madrugada, acordava-nos a todos”.

O comboio aproximou Lucília de outros mundos. “Eram viagens muito bonitas, o verde das árvores, o rio Vouga… passávamos por paisagens maravilhosas. O comboio dava-nos asas. Ia muitas vezes a Albergaria ou Águeda tirar fotografias. Houve uma vez que fui com a minha colega vender azevinho com bolas, que tínhamos apanhado nos matos, à praça. Era um tempo bonito e alegre, tenho saudades desse tempo… tínhamos autonomia que hoje não temos. Hoje para irmos a qualquer lado precisamos de um carro”, recorda.

O Vouguinha também levava e trazia as cartas de amor. “Era a nossa distração. Aos domingos íamos à estação levar a carta que escrevíamos aos namorados. Havia correio, mas assim era mais fácil”. Era um verdadeiro corrupio. “Tinha que ser feito tudo muito rápido, enquanto os passageiros entravam e saíam do comboio. Às vezes, não tinham tempo de nos dar o troco, outras vezes, iam mesmo sem selo. O certo é que nunca se perdeu uma carta.

As tradições, hoje só na memória

Do passado, Lucília lembra-se de tempos de muito trabalho e dificuldades, mas também de muita alegria. As desfolhadas, o tasquinhar do linho, as vindimas… “eram o melhor que havia”. De todos esses episódios do quotidiano agrícola que Lucília participou, há uma que não lhe sai da memória. “Os rapazes, na brincadeira, colocaram malaguetas nos copos, tinham trazido da cidade, ainda poucas pessoas aqui sabiam o que era. O certo é que naquela vindima ninguém conseguiu provar o vinho. Por mais que se lavassem os copos, o sabor a picante não saía. Ficou para sempre lembrada como a vindima do piripiri”, conta entre risos.

Havia ainda as noites de S. João, padroeiro da freguesia. “Era das noites mais divertidas do ano. Na véspera percorríamos o lugar, íamos “pôr o sono”. Dizíamos assim: “Ó fulana, fica com o meu sono do serão e da madrugada que o da meia-noite quero eu”. E assim as pessoas iam aparecendo e juntando-se”. Ao outro dia a tradição continuava. “Devíamo-nos lavar nas sete fontes. Íamos tomar banho ao rio Vouga. Diziam que nesse dia abriam as comportas em S. Pedro do Sul, íamos receber as águas das Termas, as águas de S. Pedro”, explica.

O amor de uma vida

Lucília conheceu o amor da sua vida, Natalino, numa festa que tinha ido com uma amiga que os apresentou. Não sabia dançar, portanto, ficou à conversa. Logo lhe contou uma história que, como se recorda, a fez rir de imediato. “O meu marido era um contador de histórias. Sabia contá-las como ninguém. Sempre foi assim, os netos adoravam ouvir as suas histórias. Sempre que estavam com ele, pediam-lhe para contar uma. Ele nunca negava”, recorda.

Entre cartas e visitas ao domingo, depois de alguns anos de namoro Lucília casou. Começava assim uma nova vida.

Um novo mundo

Tal como muitos outros portugueses na década de sessenta, também Lucília emigrou. Partiu para Moçambique, então Província Ultramarina de Portugal, à procura de um futuro melhor que acabaria forjado por uma guerra que não era sua. “Portugal era um país muito atrasado. O único emprego que havia era na agricultura, fomos atrás de uma vida melhor”, explica.

O marido Natalino já lá estava, Lucília foi ao seu encontro sozinha. “Fi-lo por amor”. Viveu 15 dias num navio que atravessava o Atlântico, sem conhecer ninguém. Impaciente, sem saber o que ia encontrar. “Era como se estivesse fechada dentro de uma casa e não pudesse sair. Tinha dias que tinha medo. Quando o mar estava bravo, ouvia-se a água a bater nas paredes do quarto”.

Quando chegou, encontrou um mundo novo. E gostou do que viu. O clima era agradável, depressa fez amigos. “Vivia-se bem, não tinha medo. Andávamos de noite e de dia, não havia brancos e pretos eramos todos amigos”.

Lucília teve quatro filhos e fez o exame da quarta classe juntamente com o filho mais velho, Francisco. Ambos passaram. Depois, conseguiu empregar-se nos correios onde era telefonista. “Tínhamos que fazer a ligação. Dentro daquela área nós é que fazíamos as ligações. Tínhamos um quadro e colocávamos as camilhas nos números correto. Se fosse mais longe, tínhamos que pedir à central”. Lucília gostava do que fazia.

Um sonho gorado

Lucília vivia em Inhambane, a cerca de 400 quilómetros de Maputo. “Era muito mato”. Aqui viveu mais de uma década, em paz e verdadeiramente feliz. A pouco e pouco, amealhava dinheiro para regressar à sua terra. Com o 25 de Abril, a Guerra Colonial precipitou-se e os ânimos exaltaram-se. Apressou-se a mandar os filhos, na altura crianças, para Portugal, com medo que lhes acontecesse o pior. “Houve muitos distúrbios. Todos ficaram com medo. Mandei os meus filhos com a minha irmã assim que pude. Foram tempos horríveis. Caras estranhas com metralhadoras às costas entravam pelas nossas casas para nos revistar tudo. Morreu muita gente”, relata.

Lucília e o marido continuaram em Moçambique. “Tínhamos esperança que tudo melhorasse”. Com o medo de perder tudo, Lucília tentava enviar todos os meses “um pé-de-meia para Portugal”, mas em vão. Moçambique, agora independente, não deixava. Aguentaram até quando puderam, foram obrigados a desistir. Regressaram a Portugal sem nada, tal como tinham partido anos atrás. “Era impossível viver lá. Foram anos que poupamos o quanto pudemos, porque não era a nossa terra e não podíamos gastar nenhum dinheiro mal gasto. Acabámos por vir sem querer e sem nada. Até os 300 escudos que levava na carteira foram-me retirados no aeroporto”. Era o drama dos retornados.

Começar do zero

Não foram fáceis os primeiros tempos em Portugal, depois de regressar de Moçambique. Com quatro filhos nos braços e o marido doente, com o desgosto da guerra que jamais ultrapassou, Lucília não pôde baixar os braços. “Aí a vida foi muito difícil, trabalhei muito e chorei muito. Hoje vive-se melhor, a vida felizmente tomou outro rumo e fomo-nos esquecendo do passado, mas foram tempos muito difíceis”.

Trabalhou de solo a solo, regressou à agricultura, criou animais, não esmoreceu e assim reergueu a sua vida e conseguiu construir uma casa. “Apesar de muitos difíceis, até desse tempo tenho saudades, porque era um tempo que podia fazê-lo, hoje quero fazer qualquer coisa e não posso”, explica. Paulatinamente, tudo se compôs.

De Moçambique ficam as saudades. “O meu maior sonho era regressar a África e levar comigo os meus netos para que pudessem conhecer a terra em que os pais nasceram. Talvez já nem conhecesse nada, já passaram tantos anos, mas gostava muito de regressar. Infelizmente, nem sempre os sonhos se concretizam”, lamenta.

O vício de Lucília

Não há dia que passe sem que Lucília não faça, pelo menos, uma carreira de renda. O gosto pela costura e pelo artesanato surgiu cedo, quando corria para a casa da vizinha para explorar a sua máquina, e persegue-a até aos dias de hoje. Em Moçambique era ela que fazia as roupas dos filhos e até chegava a vender para fora. Era um trabalho que lhe dava e sempre deu prazer. Por isso, sempre procurou explorar, criar mais. De renda, à lã, ao ponto cruz, Lucília cria trabalho encantadores que gosta de oferecer aos seus. “Os netos têm a mala do enxoval quase cheia”, garante. Ainda hoje é assim, ainda antes de terminar um trabalho, já está a programar o seguinte.

Durante a nossa conversa, não resistiu a dar também um mimo ao nosso projeto. O trabalho em ponto cruz que ilustramos na fotografia. É esta história inspiradora, que mostra que a perseverança consegue sempre vencer, que quisemos registar neste episódio do “Em Rede pela Vida”.Redação Gazeta da Beira