João Fraga de Oliveira
Mapa Judiciário: uma “rebolação” no Guiness Book?
Mapa Judiciário: uma “rebolação” no Guiness Book?
“Uma reforma que é uma revolução” (ministra da Justiça, SIC, Jornal da Noite, 1/9/2014, dia da entrada em vigor do “Mapa Judiciário”).
Liguei a televisão mesmo em cima. Veio-me logo à ideia o Vinte e Cinco de Abril, única revolução que conheci (e vivi) mesmo. E corri para a estante, pensando cá para comigo, cartesianamente (como se exige num pensamento judiciário, ainda que “revolucionário”): ministra da Justiça, “revolução”, 25 de Abril, logo, Constituição (as constituições são as “reformas” gerais que, em regra, resultam das revoluções).
E lá abri o livrinho (capa vermelha e verde, onde está escrito “Constituição da República Portuguesa) nos artigos (2º e 20º) que me pareceram mais “fundamentais” para a pasta da srª ministra: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático…”; “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais (…) não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.”.
Voltei a correr para a srª ministra (na televisão, claro), para confirmar se era disto que falava. Já só lhe ouvi: “Uma reforma como já não se fazia há 200 anos”.
Fiquei “espantado”. Afinal, a tal “revolução” da srª ministra não era o 25 de Abril. De certeza. Essa foi só há quarenta anos (pouco para destaque ministerial). Aliás, mesmo não se considerando a “outra”, há 88 anos (em 28 de Maio), mesmo o Cinco de Outubro (de 1910) que nos deu a República não foi “há 200 anos”. E a que tirou do poder o Miguel (não o “doutor” mas o de Vasconcelos, bem entendido), essa, em 1640, já foi há muito mais de 200 anos.
E mais “espantado” fiquei quando me lembrei que, nesse dia, logo às oito da madrugada, na rádio Antena Um, já a srª ministra me tinha espantado o sono, dizendo para o jornalista: “Vai ficar espantado! Só custou trinta e sete milhões”.
Martelando-me isto tudo na cabeça (como se levasse com o martelo de um juiz) e à hora (21H) em que – dizem os cientistas – se inicia no nosso corpo a secreção de melatonina (substância que, grosso modo, induz o sono), pronto, “espantou-se-me” mesmo o sono toda a noite. À espera de, de manhã, ver se lia ou ouvia (ou até se via, com os devidos cuidados, é claro) algo sobre a tal “reforma-revolução-barata-de-espantar-que-já-não-se-fazia-há-200 anos”.
Afinal, não vi nada de “revolucionário”. Havia uns camiões da tropa, sim, mas sem nada de canhões ou autometralhadoras, só com papelada atada com cordéis. E, mais, pelo que li e ouvi, a “revolução” da srª ministra, apesar de barata (de “espantar”!), logo no primeiro dia “revolucionário” (tem continuado até agora), degenerou em “rebolação”.
Com (quase) tudo a “rebolar”: 3 milhões e meio de processos (alguns, dizem, andam por aí “perdidos” e outros terão icado bastante “mutilados” da “refrega”), 80 milhões de documentos, 120 milhões de actos processuais (três recordes, de certeza), cadeiras, secretárias e, já mesmo com os funcionários a funcionarem, “rebolaram”, com pó por todo o lado, placas de tecto, paredes, contentores “e tudo” (como concluiria Almada Negreiros). Para já não falar nos juízes e magistrados (são menos), alguns dos próprios funcionários passaram a “rebolacionários” crónicos, a “rebolarem” todos os dias dezenas de quilómetros.
“Quem” se mostrou “indisponível” para “rebolar” foi o “Citius”. Apesar de, por nome, ser “célere” (do latim citius, celeridade) e de lhe ter sido dado um “fortificante” de 570.000 euros para ficar “novo” (como o BES), parece que é uma prova viva (apesar de quase morto) de que, por vezes, o nome não é a coisa nomeada. E deve ser por isso que, com esta “rebolação”, apesar de “célere” de nome, se tornou ainda mais vagaroso que a Justiça em geral. E, finca-pé, o “Citius” não arreda pé do sítio, esse contrarebolacionário.
Mas, para além de degenerar em “rebolação”, a “revolução” da srª ministra, pelas possíveis consequências de retrocesso social que implicará, é de prever que degenere em involução: fecham 19 tribunais (aumenta de 79 para 98 o número de municípios sem tribunais) e 27 perdem valências (desapareceram para longe, só que, para parecer que não, assim como com palavras se pode “dar ao vento uma aparência de solidez” – como escreveu George Orwell -, apareceram, no mesmo sítio, as secções de “proximidade”).
As pessoas utentes da Justiça (vítimas, lesados, testemunhas, réus, etc), sobretudo no interior rural (onde progressivamente desaparecem os transportes públicos), a terem que fazer agora viagens longas (ou pelo menos mais longas, não só em distância mas também em tempo, despesas, risco e desconforto) para terem “acesso ao direito e aos tribunais”, como recomenda (desde 2 de Junho de 1976) o tal livrinho de capa vermelha e verde.
Até parece que a srª ministra se esqueceu do livrinho (pelo menos dos tais artigos 2º e 20º), pois que, com a sua “revolução”, o estado de direito, afinal, “encontra-se suspenso” (é o que diz o Sindicato dos Funcionários Judiciais, clamando por um Conselho de Estado) e, quanto ao acesso aos tribunais, estes, “na sua esmagadora maioria, estão impossibilitados de administrar a Justiça” (diz a bastonária da Ordem dos Advogados).
Enfim, parece que a tal “revolução” degenerou, não só numa grande “rebolação” mas, mais grave, numa involução. Objectiva e subjectiva.
Involução objectiva, pelas possíveis consequências de (maior) desertificação do interior decorrentes do fecho urbanoconcentracionário (também) dos tribunais. Assim, com maiores dificuldades de acesso aos tribunais, é provável que vá havendo cada vez menos processos e, em decurso da avaliação “processométrica” do tal Mapa Judiciário da srª ministra, qualquer dia, fica apenas um tribunal “megapolivalente”. Em Lisboa, claro.
E então quando se ouve e lê que nos tribunais anda tudo outra vez “a ser feito à mão” e muita gente (outra vez) “aos papéis”, não se pode deixar de reconhecer – contra factos não há argumentos – que, objectivamente, estamos, sim senhor, perante uma involução. Ainda que “revolucionária”.
Depois, involução subjectiva, visto que é de prever que vá aumentar (para além da existente, com a carestia da Justiça) o sentimento de insegurança e impotência perante as injustiças e ilegalidades. E, daí, o risco de (auto)inibição de exercício de direitos. Ou, mesmo, o risco de começar a fazer “jurisprudência” a justiça pelas próprias mãos (como nas revoluções).
Uma involução subjectiva, sobretudo, pela (maior) descredibilização de algo que é, talvez, o principal pilar da Democracia: a Justiça.
É certo que, alguns “operadores judiciários” (magistrados, funcionários e, mesmo, advogados), para além dos deputados (e “comentadores”) “maioritários”, destacam nesta reforma do “Mapa Judiciário” um objectivo de maior celeridade e qualidade da Justiça em decurso do estabelecimento de objectivos de resultado /tempos a atingir e, sobretudo, de uma maior especialização dos magistrados na matéria dos julgamentos. Mas a questão que se coloca é se, para esses propósitos, era “inevitável” (mais uma “inevitabilidade”?) a concentração dos tribunais e dessas especializações em desfavor do interior, pois que a sua concretização depende muito menos do fecho de tribunais que da existência de suficientes competências judiciais e, pelos órgãos próprios (claro!), da distribuição, organização e gestão dessas competências.
De qualquer modo, uma reforma do sistema de Justiça, mormente uma reforma que é uma “revolução”, não pode ter por principal objecto e objectivo as pessoas da Justiça mas, sim, muito mais, a Justiça das (e para as) pessoas.
E depois, será que, para fazer na Justiça esta “revolução” de (alegada) eficácia era mesmo precisa, não podia ser mesmo evitada, tanta ineficiência, tanta involução, enfim, tanta “rebolação”?
Aliás, só “rebolação”? Não. Também, segundo certas opiniões qualificadas, “caos”, “pandemónio”, “trapalhada”. A srª ministra, ao vir pedir “desculpa” (estão na moda as “desculpas” ministeriais) diz que não, que nunca houve “caos” nem nada disso, que tudo isto não passa de um “transtorno”. Talvez acredite demais que o nome é a coisa nomeada e, assim, que tem muito mais valor o nome dado a uma coisa por uma ministra do que o nome dado a essa coisa por mim (e isso, é óbvio, tem sim senhora), por representantes da Associação Sindical de Juízes, do Sindicato dos Funcionários Judiciais ou, mesmo, do poderoso (porque está no poder) partido político CDS / PP.
Enfim, pelos vistos, parece que a srª ministra, apesar de dizer que assume as “responsabilidades políticas” (o que é isso?…), considera que vai (quase) tudo bem na sua “revolução”, impressionando-se pouco com estes “percalços” (outro dos termos que usou) “caóticos”, “involucionários” e “rebolacionários”.
Vangloria-se é de fazer uma “reforma que é uma revolução” como “já não se fazia há 200 anos”. Será que é para ficar no Guiness Book?
A ser assim, apesar de haver dúvidas de que a maioria dos portugueses aprove, como prémio pelo bom comportamento no cumprimento das suas ordens, a troika (o FMI e o BCE, já que a Comissão Europeia anda um pouco torcida com os ingleses) até pode, em Londres (sede do Guinness World Records, actual nome oficial do Guiness Book), para isso meter uma “cunha”. Uma cunha “revolucionária”.Redação Gazeta da Beira
Comentários recentes