João Fraga de Oliveira

Árvores: cortadas, queimadas, “coimadas”?

 

“Num ano, não se pode limpar o que se acumulou em décadas.”

Esta frase  é do Primeiro Ministro (PM), proferida em  17/6/2018, quando e a propósito de, nesse dia, se completar um ano após o trágico incêndio de Pedrógão Grande.

Não obstante se presuma em tal frase um sentido mais geral, relembro-a aqui com um propósito mais específico: o da reflexão  da acção de “gestão de combustível” (corte de árvores e de arbustos junto a edifícios, aglomerados populacionais, equipamentos e infraestruturas viárias, visando a protecção de pessoas e bens face ao risco de incêndio) desencadeada pelo Governo no princípio deste ano.

Aliás, este processo foi claramente implicado pelas consequências  do incêndio de Pedrógão Grande, com a publicação, logo a seguir a este, da Lei 76/2017, de 17 de Agosto e, depois, para além de medidas “excepcionais” inseridas em Outubro de 2017 no Orçamento de Estado para 2018 (publicado em Dezembro de 2017), com a publicação, já este ano, do Decreto-Lei 10/2018, de 14 de Fevereiro.

É certo que esta legislação remete para um diploma (que até alteram, nalguns aspectos) com doze anos, de 2006. Mais precisamente, o Decreto-Lei 124/2006, de 28 de Junho.

E também se deve reconhecer que a publicação deste Decreto-Lei 10/2018 foi seguida de um processo político e mediático de sensibilização, tal como há que reconhecer o esforço de disponibilização de alguma informação por parte das autarquias.

Mas o que essencialmente foi destacado (e, sobretudo, ficou mais publicamente retido) disso foi a aplicação de sanções (coimas) mais ou menos pesadas para o incumprimento, em tempo (até 15/3/2018), das referidas medidas de “gestão de combustível”.

De qualquer modo, a  aplicação desse diploma de Fevereiro de 2018 no prazo nele estabelecido mostrou-se claramente inexequível, dada a natureza, quantidade e extensão dos trabalhos a realizar, a (in)existência de meios, as condições climatéricas conjunturais e, sobretudo, o condicionalismo económico e social (inclusive o demográfico) associado.

Aliás, o próprio Governo,  com o Decreto-Lei Nº 19-A/2018, de 15 de Março de 2018 (justamente no fim do prazo concedido aos proprietários das propriedade para realizarem a “gestão do combustível”), veio reconhecer isso, ao, prorrogando esse prazo (pelo menos quanto às implicações cominativas), decidir que os autos de contraordenação levantados pelas autoridades aos proprietários dos terrenos por falta de cumprimento da “gestão de combustível” ficassem sem efeito se, até 31 de Maio deste ano, (ainda) fosse dado cumprimento a essa obrigação legal.

De qualquer modo, sabe-se que, entretanto, no período entre 1 de Janeiro e 31 de Maio deste ano, a GNR já levantou 1946 autos de notícia incidindo em infracções  neste domínio (que constituem contraordenação), dos quais, até meados de Junho de 2018, em consideração para com o referido Decreto-Lei  Nº 19-A/2018, apenas 31 desses autos de notícia terão sido anulados.

Não se sabe qual vai ser o desenvolvimento deste processo coercivo, de fiscalização e sancionamento e, justamente por isso, o que se pretende aqui propor como reflexão é a ponderação e o bom senso que nisso deve imperar.

É certo que o essencial do que esta legislação que se pretende  agora aceleradamente fazer aplicar já tem (exactamente) doze anos, contido que já estava no referido Decreto-Lei 124/2006, de 28 de Junho.

Contudo, praticamente esquecida (e, mesmo, desconhecida, quer no plano substantivo, quer no inerente condicionalismo processual) que esteve durante tantos anos, face ao enorme enfoque que, na “sensibilização”, agora foi colocado na (possível) abordagem repressiva (aplicação de coimas), em conjugação com a exiguidade do tempo para proceder aos trabalhos necessários, levou  a uma aceleração em que não poucos erros e excessos terão sido cometidos.

De facto foi muito (se não quase só) no temor de sanções, sem o suficiente e oportuno enquadramento informativo e de acompanhamento no terreno (tendo em conta as realidades concretas e os seus contextos) das entidades competentes para fazer aplicar esta legislação, que muito  assentou essa aceleração que agora se imprimiu à “gestão de combustíveis”.

Ora, como já aqui se escreveu a outro propósito, é um (perigoso) equívoco pensar que acelerar é só fazer a mesma coisa mais depressa. Não é. Quando se acelera em algo a fazer, em regra, dispensa-se um mínimo de procura de informação e de reflexão prévia, “queimam-se” etapas, atabalhoa-se. Faz-se (já) outra coisa, por regra, pior. Por isso, não raro, erra-se por excesso, por defeito, ou por mal feito.

Há informação de que também neste processo não pouco  disso aconteceu pelo país especialmente no Norte e Centro.

Situações de exagero de custos e de destruição gratuita de riqueza florestal (corte a esmo de árvores), muitas vezes sem qualquer valor acrescentado do ponto de vista de prevenção de incêndios florestais e ou de protecção de pessoas e bens.

Nalguns casos, mesmo, de procedimentos desnecessariamente perdulários (como é o caso de árvores de fruto) ou, até, contraproducentes na perspectiva de prevenção de incêndios (ou, pelo menos, do seu alastramento), por exemplo, de corte de árvores que para isso contribuem, como é o caso das folhosas.

Enfim, fazendo uma outra leitura daquela frase inicial do PM, o Estado, por (sobre)acção, quis fazer acelerar em três meses e meio um processo que, por omissão, manteve praticamente parado durante doze anos.

De facto, durante doze anos, o Estado não informou suficientemente, não acompanhou e não monitorou devidamente. Até, mesmo,  não fiscalizou  e sancionou em tempo (se o tivesse feito, provavelmente, muito do que aconteceu não se teria verificado, pelo menos, no mínimo, não se teriam verificado os erros e excessos que agora ocorreram).

A omissão do Estado neste domínio (e muito especialmente na vertente informativa e de monitorização, e mesmo na de fiscalização e sancionamento), durante todos estes anos, alimentou e acentuou uma sensação de impunidade que conduziu ao agravamento acumulado da falta de “gestão de combustível” e, assim, do risco de incêndios e de lesão de pessoas e bens que o espírito de tal legislação de 2006 pretendeu prevenir.

É certo que, burocraticamente (administrativa, policial e, até, claro, se for essa a eventualidade, jurídico-judicialmente), sempre se poderá argumentar que as pessoas são obrigadas a conhecer a lei, que “o desconhecimento da lei não aproveita  a ninguém”(1).

Contudo, é preciso ter em conta o condicionalismo cultural, económico, sociológico e demográfico em causa.

Para já não falar do quanto, aplicada à letra (e, como já se referiu, aceleradamente), sem a devida harmonização de entendimentos, de processos e de procedimentos, para além de sem a necessária ponderação caso a caso pelas autoridades e entidades competentes, a aplicação de tal quadro normativo numa zona de minifúndio florestal (há pinhais que nem 40 metros quadrados têm de área), pode criar (já ter criado) situações entendidas como absurdas, injustas e iníquas.

É certo que, como já se escreveu neste jornal(2), este processo tem que ser integrado na questão de fundo que agora está a ser reconhecida como estando na base da tragédia humana, social e económica que têm sido os incêndios florestais: a falta de ordenamento florestal e, mais alargadamente, o abandono da agricultura decorrente da desertificação do interior (por razões demográficas, é certo, mas, mais do que isso, por razoes políticas, porque económicas e sociais).

E como também já aqui já se escreveu neste jornal(3), “os incêndios florestais não são (só) um problema micro, do foro individual dos (pequenos) proprietários da floresta (que, eventualmente, não a limpam e ordenam muito por incapacidade física ou económica) mas, essencialmente, um problema macro, do foro do Estado (…)”.

Sobretudo, como aqui também se escreveu, “os incêndios florestais, muito mais do que um problema militar, policial ou administrativo, são um problema eminentemente social. Nas suas consequências e nas suas causas (…)”.

Desconhece-se em que termos vai prosseguir este processo, do ponto de vista de acompanhamento e intervenção das autoridades e entidades competentes.

É claro que, sem dúvida, se presume ser feito aplicar o essencial preventivo (protecção de pessoas e bens) da legislação. Mas também (ainda) é de esperar que, nisso, se tenham em conta, com bom senso e sentido de justiça e de proporcionalidade, as realidades físicas, sociais, económicas e culturais de contexto.

É que, sendo certo que, neste domínio eminentemente social, o Estado, durante décadas, se afastou de o assumir devidamente nas suas responsabilidades pelo menos como tutor de um dos direitos constitucionais  das pessoas e da sociedade (a protecção civil, como associada, no mínimo, ao direito à vida e à integridade física), é preciso não dar mais razão a Michel Foucault quando escreveu que “quando desaparece o Estado Social, surge logo o Estado policial”.

Acresce que, devendo-se ser mais exacto, neste processo específico, não se trata de questões propriamente da “floresta” mas de questões de(as) árvores (e, quando muito de arbustos), “apenas”, concretamente, das árvores. E, como escreveu recentemente um ilustre jornalista, um mundo sem árvores é já, de algum modo, um mundo mais desumano, tendencialmente, um “mundo sem nós”(4).

Permita-se até nisto um certo argumento poético (de poesia “concreta”), recorrendo a um poeta de Lafões, sampedrense, que escreveu, certamente, em louvor de qualquer árvore: “(…) Ama-a, respeita-a, ampara-a na velhice; / Sorri-lhe com bondade e com meiguice: / lembre-te ao vê-la a tua própria Mãe!”(5)

Para que não seja ainda mais perverso o destino das árvores: antes, eram (naturalmente), cortadas; depois, passaram a ser queimadas. E agora, “coimadas”?


(1) Referência ao que estabelece o Artigo 6º do Código Civil: “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.”

(2) Edicão da Gazeta da Beira de 13/12/2017 – “Por que arde?”

(3) Edição da Gazeta da Beira de 12/07/2017 – “Fogos invisíveis – III”

(4) “O mundo sem nós” (António Guerreiro–Público, 8/6/2018)

(5) António Correia de Oliveira (São Pedro do Sul, 30/7/1879 -Esposende, 20/12/1960), poema “Mãe”.

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