João Fraga de Oliveira

O trabalho sem o homem?

Com a Web Summit aí a concentrar (quase) todas as atenções, parecem ter toda a lógica títulos de imprensa como estes: “Fábricas sem seres humanos”; “Os robôs vão roubar-nos os empregos”; “Tenho um robot na mesa ao lado e o meu patrão é um algoritmo” .

Enfim, a teoria, em voga, do “fim”, do “desaparecimento” do trabalho.

Ora, vendo bem, não é só agora que o trabalho está a “desaparecer”. Há muito que ele anda “desaparecido”. Não apenas pelo muito desemprego que (ainda) grassa mas por outra razões mais sub-reptícias mas também perversas.

Sim, agora, é o discurso da robotização que, dia sim, dia sim, é alimentado empresarial e mediaticamente (e até politicamente) , anunciando o “fim do trabalho”. Nada de novo. Mas até aqui o que tem sido o debate sobre o Emprego? Quase exclusivamente, tem assentado numa “visão de mercado”, numa concepção quase só mercantil (ou, quando muito, contributiva ou fiscal, porque do trabalho tributárias) e ao nível macroeconómico do “mercado de trabalho”.

Sim, o debate sobre o trabalho tem-se baseado quase só em estatísticas que, de tão evidentes pela sua abstracção, “cegam” para o que do Emprego é o essencial objecto e objectivo: as pessoas.

Esta desumanização do conceito de emprego e de trabalho, é, aliás, coerente com a do conceito de “empresa”, cada vez mais reconhecida e avaliada apenas pelo seus resultados financeiros e cada vez menos pelo valor económico e social e interesse público da sua produção (bens ou serviços) e pela quantidade e qualidade do emprego que cria e mantém. Exemplo disto é o de muitas empresas cotadas na Bolsa que, ao despedirem trabalhadores, vêem as sua acções subirem na cotação bolsista.

Redutora, esta concepção do emprego e do trabalho não deixa ver aquilo que é a sua essência não apenas humana e social mas, até, económica: as pessoas que realizam (e as condições em que realizam), nos locais de trabalho, .o trabalho real e concreto.

Por isso, não espanta o estado a que chegámos (com as consequências humanas, sociais e económicas daí decorrentes), por exemplo, no domínio da precarização das relações de trabalho, em que aquilo que a Lei sempre admitiu só como excepção (a contratação a termo ou por trabalho temporário) foi, de facto, nas empresas e até na administração pública (onde, agora, está a ser corrigido), transformado em regra.

Por isso, não espanta tanto “esquecimento” político (para já não dizer oposição empresarial) das consequências para as pessoas que resultam da (ainda) não correcção (“reversão”) da eliminação ou diminuição de direitos e inerentes condições de trabalho por força de (des)regulamentação laboral dos últimos anos (para já não referir os Códigos de Trabalho de 2003 e de 2009, que disso não ficam ilibados, sobretudo, as alterações que foram introduzidas neste último em 2012 e 2013).

Enfim, a análise e perspectiva do trabalho (ainda) continua por restar predominantemente focada apenas nos conceitos macroeconómicos dos rating de “competitividade”, nos quais, inclusive, a segurança do emprego, valorização do trabalho e a melhoria das condições materiais e sociais em que este é realizado, em vez de serem reconhecidas como sendo factores de produtividade e de qualidade (logo, de “competitividade”) da produção (bens ou serviços), são consideradas pelos empresários como uma “atrapalhação”.

“Fim do trabalho”? Não. Cada vez mais trabalho. Sobreintensificado (em ritmo e duração), ainda que clandestino (não declarado documentalmente) subdeclarado (só parcialmente documentado), dissimulado (como nos falsos “recibos verdes”), imaterial, invisível, mas trabalho. Trabalho de pessoas por conta e a favor de outrem.

Mas, enfim, talvez esta “falta de percepção” do trabalho real e concreto tenha uma explicação histórica. É que a qualidade do emprego, as condições efectivas em que (onde, quando, como, com quê …) as pessoas realizam o trabalho nos locais de trabalho, tem sido um tema quase “tabu” na sociedade portuguesa.

Os poderes instituídos fogem “a sete pés” da sua análise integrada e sistemática (e não apenas de retórica pontual ou de conjuntura, económica, social ou política).

O poder político (não propriamente o actual mas o poder político em geral), porque talvez se “envergonhe” do quanto, por acção ou omissão (desregulamentação e desregulação de direitos, desvalorização de salários, etc), tem, objectivamente, promovido a degradação da qualidade do emprego.

O poder judicial, porque, (também) neste domínio (a Justiça do Trabalho), tem sido muito lento e pouco eficaz.

O poder económico, porque não lhe interessa mexer publicamente naquilo que, como efectivo empregador (directo ou indirecto), é o principal responsável.

O poder mediático, a comunicação social, quer porque não tem tratado este tema com profundidade e seriedade (salvo raras excepções), quer porque também tem  – e muito – dentro de portas  (inclusive entre jornalistas) muita precariedade e degradação das condições de trabalho (que, aliás, se reflecte na progressiva falta de qualidade da comunicação social).

O próprio movimento sindical carece de acentuar no seu discurso e acção as condições de trabalho (com especial ênfase para as de saúde, segurança e de dignidade) e não “apenas” as condições salariais e de “carreira” profissional.

“O trabalho não é uma mercadoria”, como, desde há muito (10 de Maio de 1944 – Declaração de Fiiladélfia), está consagrado no primeiro princípio da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

E também não é um mero conceito abstracto: económico, jurídico, sociológico ou filosófico. O trabalho é “apenas” aquilo que as máquinas não podem fazer, “um olho que vê, um cérebro que pensa, um músculo que age”. E, portanto, consubstancia-se nas pessoas que trabalham. Com o que tal implica de repercussão humana (saúde, integridade física, vida, dignidade, realização pessoal …) e social (Família, Emprego, Segurança Social, Saúde Pública, Educação, participação social e política …) e, necessariamente, económica e política.

Contudo, do que precede, para além do que de desumanização é escondido na “caixa negra” dos locais de trabalho nas empresas (e na administração pública, na central e especialmente na local), no discurso (político, económico, académico, mediático, técnico, até científico … ), vai sendo, no (do) Emprego, escamoteada, a essência do trabalho: as pessoas.

E, assim, vai sendo construída e alimentada a perversa e desumana ilusão, a mentira, do trabalho sem o homem.

Nota: Uma versão mais desenvolvida deste artigo foi publicada, em 11/10/2017, no jornal electrónico Esquerda.net: http://www.esquerda.net/opiniao/o-trabalho-sem-o-homem/51313

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